sábado, 31 de dezembro de 2016

Carta ao defunto 2016



Quando se vira a página para descobrir a contracapa da agenda, define-se que é algo novo que começa. E celebra-se. Começa tão cedo a celebração que ainda é feita na cabeceira do ano moribundo. Chamam-lhe “velho”. Que desrespeito! E ele cala-se, recordando que nem toda a sua existência se pejou de dor.
As pessoas não querem saber! Procuram a novidade das páginas ainda virgens de um novo ano. Apregoam que nelas mora a mudança. E vestem-se de esperança. Falam de sonhos. À beira da cama onde definha o ano que acaba.
Levam cuecas azuis e chapéus com números e óculos ridículos (como as cartas de amor) para o meio da rua. E celebram. Como celebraram antes. O novo começo. O término do ano. “Bom ano novo!”, gritam de euforia, antes mesmo das badaladas. E todos se riem. Na cara do ano que termina. E, que os olha, complacente, despojado de dias que lhe provem o valor e de forças para defender os seus esforços.
Meu querido ano 2016. Não serei escrava das tuas memórias, mas tão pouco me juntarei à amálgama mais ou menos amorfa que te celebra a morte. Trago-te em mim para o ano que começa…
Enquanto morres, sento-me a teu lado. Para recordar aquele dia de Janeiro, no qual me sentei à mesa farta para celebrar o aniversário da Mariana e onde ri até chorar com as histórias. Amizade e plenitude e compreensão. Na voz doce do André, vinda do escritório, ouvi nascer parte do “Via” e, nas lojas de perfume, reforcei a minha capacidade de falar sem medo da minha própria voz. Esse Janeiro, vou levá-lo comigo.
Mas foi Fevereiro. O Fevereiro onde vi mais um livro nascer. Onde fiz maratonas pelos stands de automóveis para tentar arrendar um que não me drenasse a conta. Sem fazer muito caso, celebrei o amor com um jantar corrido no centro comercial no Dia dos Namorados. E recebi a exclusividade nas mãos, com a garantia de que seriam muitos os dias passados em Cascais…
Estavas lá, meu doce 2016, quando, em Março, celebrei o Dia do Pai à distância, vestindo o meu melhor sorriso em torno das maravilhas da Hermès. E acompanhaste-me na direta que fiz com o meu companheiro, enquanto eu trabalhava na escrita e ele fazia nascer “Os elementos”, à espera das 4 da manhã: a hora de levar os meus pais ao aeroporto e o meu sobrinho ao sonho infantil da Disney.
Foi um mês de encontros. Recebi, no mesmo aeroporto e com as mãos aquecidas em copos de café, o sorriso jovial do meu irmão. O mesmo que me anunciou, dias depois: “Vais ser tia!”.
Entrei em Abril com a notícia. Preparada para a receber como quem recebe a Primavera, que tardou a ser quente mas veio em flor. E, de Abril a Maio, o trabalho que me fez ausente, uma vez mais, no Dia da Mãe. Um dia adiado mas que não desmarcámos, apenas para que eu pudesse vencer e dobrar mais um dos meus objectivos pessoais. Ainda em Maio, deixaste-me, meu querido 2016, viver dias cor-de-rosa. Com um sorriso no rosto e um aroma a Omnia no ar.
Junho. O mês de mim. A pertença eterna que tenho a quem me fez, a quem me ama, a quem me quer. A tarde em família. A maluquice. A foto da praxe. E a noite com o Helder e a Tânia. Copos virados e riso nos lábios. Fogos coloridos no ar. Alegria. Depois, o orgulho na Leonor, que dançou como quem faz piqueniques no sol britânico.
Houve o mês em que viste o amor fazer anos. O meu Julho. Regado a sangria e francesinha e piza fora de horas. E a feira, feita na rua, com nome de alho e aroma frutado. Um aroma que me levou às cores da maquilhagem que se somava, por fim, às minhas qualificações, mesmo a tempo de Agosto… que chegou com a minha avó.
Conversas cheias e doces, sobre a mesa, ao pequeno-almoço. Café com leite e pão com manteiga. Noites de cinema em casa. O francês e o português, remexidos e atabalhoados. E o trabalho. Tanto. Da escrita. Dos perfumes. Do grupo de investigação. E os concertos que, em simultâneo, eram tocados pelas mãos dele. E os parcos dias a apanhar amêijoa como se fosse ouro na Foz do Arelho. Os dois banhos – um de piscina e um de mar. O sol.
A visita da Leonor, que fez morrer Agosto e nascer Setembro. O aniversário do Ramiro. O aniversário do Helder. A idade de quem nunca me envelhece. À medida que a minha mãe se afeiçoava a um gato, eu decidia adotar um. Uma. A Samhain. Menina de olhos doces e pelo negro que, em Outubro, cruzou a soleira da porta e se fez família. E, além da Samhain… o Samhain! O jantar, a festa, a celebração, os amigos, as preces. O apagar, no caldeirão, da mancha que fizera deste um mês passado na Neurologia B dos Hospitais de Coimbra. O agradecimento pela vida e pela permanência do amor.
Novembro. Trago de Novembro o sabor do aniversário da minha mãe e da minha sobrinha, então mais nova. E da conversa junto ao fogão. E do abraço. Que mudou tanto. É um sabor a cheesecake que amarga um pouco no final… numa nova ausência, no dia da Marisa… que se colmata em textos e mensagens e chamadas. Mas nunca basta.
De Novembro a Dezembro. Um esfumar de memórias no cansaço. Trabalho. Natal. Festas do pijama por entre fotografias. Mesa recheada de tudo. De quase todos. E a notícia de uma nova sobrinha na distância. Com os olhos verdes e o rosto dos pais. Celebrou-se tudo. Por entre trabalho e trabalho. Em redor da mesa, o amor. Um amor que vinha de trás e que se contemplou também em ti.
Sento-me à cabeceira. Vivi contigo tudo isto, meu querido 2016! Foi assim que me fizeste crescer. De permeio houve brigas e desentendimentos. Contas para pagar, dificuldades. Mas não te desejo a morte precoce nem quero que te substitua um ano melhor.
Quero que partas em paz. Sabendo do teu papel. E que deixes entrar o ano que nasce com orgulho nos teus feitos.
Foi um feliz ano novo. Tal como profetizava a morte de 2015. Foi um feliz ano novo. Porque, quando começou assim, novo, eu tratei de o fazer feliz.
Até sempre, meu querido 2016. E obrigada por me teres levado nesta louca aventura de 12 meses cheios e inesquecíveis.


Tua até às badaladas,


Marina Ferraz



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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Nas terras altas


Ouvi dizer. Vai haver chuva nas terras altas. Nas… terras… altas. Nas terras do céu? Será lá, onde moram os Deuses? E, se chove nas terras divinas, o que podemos esperar nós, meros mortais, sem controlo nem razão? Ouvi dizer. Vai chover. Nas terras altas.
Vai chover. Mas quem é que controla a chuva? Se, sobre as cabeças etéreas do que se faz dogma se sente o cair das gotas do tempo, quem pode dizer que é rei do firmamento?
Vai chover. Nas terras altas. Sobre as casas. Sobre os carros. Sobre as árvores e os penedos e as rochas e os rios. Sobre as cabeças dos Deuses. Todos eles. Seja qual for o credo.
Talvez, sobre os divinos ombros, façam surgir um guarda-chuva feito de fio de ouro e raio de sol. E talvez não saiam molhados da tempestade. Mas não podem travá-la. Já disseram. Vai chover. Nas terras altas.
Ecoa o trovão. Soa. Ressoa. Penetra os meandros da cidade onde as raízes alicerçadas fazem crescer prédios e moradias. A floresta é de cimento e betão. Faz soar mais seco o raio, à medida que deixa de ser luz e passa a ser som. E, atrás dele, o murmúrio miúdo. Contínuo. O principiar invernal de uma cascata fina, feita de lágrimas-nuvem.
Todos nós. Homens e Mulheres. Sediados na morada que assenta em vales e montanhas. Orando aos Senhores das Terras Altas. Louvando os Senhores das Terras Altas. Mas disseram. Ouvi dizer. Vai chover. Nessas terras. Lançaram avisos e alertas. Dizem que vai ser pior lá. Nas terras altas.
Do outro lado. Fora da janela. Fora de mim. A chuva. O trovão. O aviso. O alerta. Gotas que se formam no vidro. Desenhos que se criam à medida que as gotas se acumulam e escorregam. Gotas. Rios. Pensamentos. Enclausurados atrás dos meus olhos. Loucos. Fixados na chuva que cai. Abertos. Demasiado abertos para não criarem estranheza entre os que se dizem normais e sãos.
Mas a louca quer saber: por que razão é que chove lá? Nas terras altas. E por que razão pedimos o impossível a quem não consegue, sequer, travar a chuva? Quem é este Deus, tão pequeno e susceptível à tempestade?
Pergunto. Ninguém responde. A voz da rádio insiste. Vai chover nas terras altas.

Talvez a chuva seja Deus. Um Deus que chora. Como eu. Um Deus que é louco e incontrolável. Um Deus que cai e ascende. Em todo o lado. Até nas terras divinas. Até nas terras do céu. Até nas terras altas.



Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Além do que se vê



Ela não parece ter grandes sonhos. Acorda impaciente e segue o dia desejando a hora de dormir. Não se olha ao espelho. Ou olha de relance, enquanto passa as mãos pelo cabelo de forma atabalhoada e sai pela porta. No seu rosto, quase nunca há maquilhagem. Costuma haver sorrisos. Alguns. Mas nem todos são verdade. Alguns são. Mas esses reservam-se para alguns momentos e algumas pessoas. E escondem mágoas. Se escondem… Escondem justamente os sonhos. Milhões de sonhos. Aqueles que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ter muita força. Avança pelas ruas, de mãos abertas e vazias. Gosta mais de dar do que de receber. Trata toda a gente com uma cordialidade que se faz formal na informalidade de palavras simples. Aponta as culpas às circunstâncias e diz que não mudaria nada. Não é exatamente verdade, embora também não seja mentira. Ela simplesmente convenceu a sua própria mente a acreditar. E avança. Pelas ruas. De mãos abertas e vazias. Sorrindo. Parece ter a idade do mundo e metade da idade que tem. Tudo ao mesmo tempo. Pesam-lhe nos ombros decisões e vontades. E medos. Ela tem muitos. Mas quase nunca os diz. Luta contra eles. Uma luta inglória que ganha, aos poucos, usando a força. A desmedida força. Aquela que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ter muita vontade. Em conversas que dizem pouco mais do que nada, ela desvia exércitos de perguntas e faz o mundo acreditar que o universo do que é comum lhe basta. A casa. O carro. A rotina. Levar os filhos. Fazer o jantar. Envolver-se em atividades. Faz toda a gente pensar: é o que lhe basta. E, num primeiro olhar é. Mas não. Não é! Nos pontos aperfeiçoados dos seus bordados há a vontade de romper grilhetas. E nas palavras de incentivo que deixa, em conselho, a quem pede, há a vontade de mudar o mundo. Ela contenta-se com pouco. Mas quer muito, na sua vontade. Naquela que ela não parece ter. Mas tem.
Ela não parece ser especial. Caminha pelas ruas, como qualquer pessoa. Segue a rotina. Envolve-se nas histórias da família. Molda a realidade das tarefas, ora com obsessão, ora com desapego. E vê televisão, deitada no sofá, debaixo da manta. E lê livros de fazer chorar. E ri com publicações idiotas das redes sociais. Como a maioria, camufla a dor debaixo de uma camada densa de apatia. Finge não se importar. É tudo um bocadinho cinzento. Mas é o mal dos monstros. Debaixo da camada cinzenta, correm sonhos e vontades, há mares de força e entendimento. Formam-se arco-íris de sentimentos e sensações. Debaixo do que se vê, ela vai desbravando mato, à procura do que nem todos sabem que existe. E olha ao espelho, para dizer a si mesma que se ama – ainda que não ame -; e olha para os filhos para dizer a si mesma que venceu; e olha para as tarefas para dizer a si mesma que, por um dia, o cansaço não levou a melhor. Em cada um dos seus pontos, ela faz mais do que desejar a quebra das cordas que a amarram. Ela rompe-as. E, por maior que seja a mágoa, ela levanta-se. Por maior que seja a dor, ela sorri. Por maior que seja a tristeza, ela dá o melhor de si a toda a gente. E é isso que a torna especial. Especial como ela não parece ser. Mas é!
Ela pode até não parecer especial. Até pode. Porque, no meio desta amálgama de gente que povoa o mundo, ninguém parece. Mas, Deuses, são os sonhos, a força e a vontade que ela não parece ter que lhe dão brilho. E é um brilho maior do que o Sol. Um brilho que ilumina as ruas onde ela caminha, de mãos abertas e vazias. Segurando os fios que tecem a ténue hipótese de, um dia, o mundo se tornar um lugar melhor para viver.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Quem o é


O primeiro foi por coragem louca,
O segundo porque pôde ser,
O terceiro porque tinha a liberdade
O quarto por direito,
O quinto por sentido de dever,

O sexto foi por imitação,
O sétimo, por influência,
O oitavo na pressão de ser,
O nono porque não pôde escolher,
O décimo foi por intimidação.

Veio quem fosse porque outros eram:
Foram vinte, foram trinta, foram cem...
O primeiro foi-o por coragem louca,
Hoje, quem o é, é coisa pouca;
Hoje, quem o é, não é ninguém!

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Costurei





Costurei. Na minha condição. De bicho. De mulher. É para isso que servem as mulheres. Para costurar.

Comecei por bordar a ponto pé-de-flor o sonho de não ser. Porque o sonho de ser estava estampado de origem no tecido de mim. Bordei o sonho de não ser essa mulher que é apenas o que se diz que a mulher pode ser.

Ponto a ponto. Vai à frente e volta atrás. Recusando-me a ser flor. Recusando-me a ser ponto. Recusando-me a ficar aos pés de seja lá quem for.

Mas bordar a ponto pé-de-flor esse sonho de não ser não foi suficiente. Bordei a cheio o desejo de não ficar no vazio convencional das coisas limitadas. E não! Não mantive o ponto dentro das fronteiras. Ultrapassei-as de propósito. Farta de barreiras. Farta de normas. Farta de limites.

Borde a recusa a ponto cheio. Um basta. Um chega. Não quero estar vazia!

Bordei. Bordei a rechelieu o grito que traçou as minhas próprias fronteiras. Em redor das minhas formas e dos meus vazios. Em redor das minhas próprias convenções, que se faziam ervas daninhas e proliferavam no centro das histórias que também era eu a criar.

Bordei. A ponto cruz. Fiz cruz sobre as coisas atiradas, insistidas, dissimuladas, intrínsecas e estapafúrdias. Tracei. Cruz atrás de cruz, feito rasura sobre o que se dizia que eu devia ser. E de cada cruz fiz estandarte. Não! Não sou essa mulher que se diz! Não sou essa mulher que se limita! Sou outra coisa… Sou algo que nasce e ascende, que cria novos limites. Sou quem quiser ser.

Costurei. Como se quer que uma mulher faça. Só que à minha maneira. O que descobri? A agulha é uma espada. E o que está roto, a precisar de remendo, é a sociedade.




 Marina Ferraz

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