terça-feira, 28 de julho de 2020

Relato sobre um rosto imperfeito




Para a minha avó


Este é o rosto dela. Perdoem, de antemão, pelas rugas. Mas permitam que vos apresente. O rosto. Este rosto. O rosto dela.

 

 

Quis mostrar o rosto a pormenor. Notem como, nele, se notam manchas do sol de muitas Primaveras e traços que se cruzam, alinhando com meridianos e rotas planetárias.

 

Ali, no canto inferior esquerdo do olho, também ele esquerdo, poderão notar uma confluência de linhas, no sítio onde as lágrimas formaram rios e oceanos. É um ecossistema único no mundo. Trata-se de uma espécie de território aquífero aonde nasceram muitas memórias e alegrias, todas elas parte intrínseca de um ciclo de vida equilibrado e são.

 

As alegrias nunca atacaram as lembranças nem vice-versa. E, se notarem, olhando com atenção, agora proliferam as segundas. Mas a culpa foi das mágoas despejadas por mão humana, sem que este rosto o pedisse.

 

 

Este é o rosto dela. Perdoem, de antemão, pela expressão magoada. Mas permitam que vos apresente. O rosto. Este rosto. O rosto dela.

 

 

Este rosto nasceu em Outubro. Mês das maravilhas, das missões e dos antepassados. Mês de véu fino, de contemplação, de serenidade, de colheita. Quando nasceu, este rosto não sabia que teria cascatas. Também não sabia que teria risos. Mas, sem mais para fazer, no primeiro contacto outonal com a vida, chorou. Foi o primeiro de muitos choros mas um muito mais assumido do que os outros.

 

Este rosto tem o dom do silêncio e da abnegação. É generoso e altruísta. Gosta do silêncio da Natureza. Adora pastéis de bacalhau e azeitonas. Principalmente pretas. Tem uma história para contar sobre todas as coisas de que gosta. Usualmente, essas histórias penduram-se nos lábios e contraem os olhos, deixando mais evidente a ruga que traça a relação entre os oitenta e nove anos de contos vividos em primeira mão.

 

 

Este é o rosto dela. Perdoem, de antemão, pelo olhar distante. Mas permitam que vos apresente. O rosto. Este rosto. O rosto dela.

 

 

Este rosto viu nascer uma filha. Três netos. Quatro bisnetos. Foi fiel a um homem que amou, ainda que ele não a tenha amado em igual medida. Foi fiel às irmãs e aos irmãos, amando-os de forma igual e entendendo-os de formas diferentes. Ainda fala com saudades dos pais e da rigidez de uma cultura firme e severa.

 

Este rosto ainda não ultrapassou as grilhetas dos pais e já não o fará. É o rosto que representa, de forma mais fidedigna, a expressão “parece mal”. Mas, compreendam. Este rosto aceita outras coisas. Como a boca solta da neta que fala sobre sexualidade como se fosse de culinária e diz, no mínimo, três asneiras por frase. Consegue rir-se com ela. Amá-la. Exatamente como ela é. Mesmo que sejam tão diferentes.

 

 

Eu sou a neta deste rosto. Aquela que tem a boca solta e impropérios na língua. E, hoje, apresento-vos o rosto. Este é o rosto dela. Perdoem, de antemão. Mas, para mim, ele é perfeito.

 



Sigam também o meu instagram, aqui

terça-feira, 21 de julho de 2020

Sete mil anos

Fotografia de Astro Photography

1997

Foi nas Portas do Paraíso. Há alguns anos. Gentes que eram seita numa fé cega. Crentes de outros mundos. Persuadidos pela voz que avisava. Não há outro meio de evacuar a Terra. Quiseram ir. E foram. Vidas ceifadas debaixo da luz da estrela que passava. Almas ofertadas à fé oca. Queriam ir na cauda do cometa.

 

2020

O cometa passou. Estava quente a rua e fria a alma. Porque as ruas veraneantes estão pensadas para ser quentes. E a alma não tem temperatura além da que se imagina que tenha. O cometa passou. Disseram-me. Agora. O cometa passa agora. E, depois, só daqui a sete mil anos.

 

Não sou seita nem sou cega. Mas tenho, para mim, o espaço descurado de uma fé. E pensei. Ele podia, quem sabe, levar. Não a mim, que ainda tenho um ou dois poemas por escrever. Não a mim, que ainda tenho corpos para envolver nos braços. Não a mim, que quero ler pelo menos os clássicos e semear uma ou duas plantas aromáticas, destinadas a morrer sem fruto no fundo das minhas panelas. Mas o amor. Raios. Ele podia levá-lo.

 

Não enviaria o amor na sua cauda por nenhum motivo errado. O meu amor é um amor que merece o universo porque apenas este o iguala. Imagino a felicidade desse amor, vivendo a aventura da viagem milenar, antes de retornar ao mundo dos homens. Imagino o meu amor ficar leve na viagem e sorrir. No meu peito, ele arde e pesa. Quer tudo o que eu não lhe posso dar. Universos-corpo. Universos-partilha. Universos-sonho.

 

Por isso, levantei-me levemente no toque do despertador. O toque das quatro matutinas artérias que iriam subir a serra para libertarem esse sentimento que pede universos que eu não posso dar. E olhei o nascer de sol e o pôr de lua. Por tanto tempo... Inebriada com as linhas do nascer do dia e com o brilho astral dos planetas mais próximos e com o vento nas árvores sob a luz morna da lua quebrada. Olhei. Olhei em busca desse cometa que não vi. Porque havia estrelas e havia planetas e havia lua e só.

 

Sem encontrar essa cauda de cometa na qual podia prender o meu amor, voltei para casa. A cabeça na almofada. Som e sonho de uma música tocada por Bethoven nas noites de sonatas ao luar. Acordei para descobrir que a estrela tinha cauda. Para descobrir que, nela, eu não enviara nada, senão a contemplação inerte e feliz de uma hora de plenitude.

 

1997

Foi nas Portas do Paraíso. Gentes que eram seita. Fé que era cega. Persuasão e vontade. Fuga ansiosa deste mundo louco. Almas ceifadas coletivamente. E a partida, na cauda do cometa.

 

2020

Olho o céu. Mesmo no local onde estava a cauda do cometa. O dia quis amanhecer sem que sacrificasse o amor.

 

Olho o céu. O meu amor vivo, contemplando o infinito, a pedir universos que não posso dar-lhe, porque me escapa a vontade, em alguns dias e a possibilidade em todos os outros.

 

Olho o céu. O meu amor vive. Sinto que é ele que me diz, desalentado. Eu queria ir na cauda do cometa. Tento acalmar-lhe a ansiedade. Tem calma, talvez daqui a sete mil anos…




Sigam também o meu instagram, aqui

terça-feira, 14 de julho de 2020

A construção da desumanidade

Havia uma borboleta branca dentro da clínica. E uma pandemia nas ruas. E mil regras. Prendendo-me à rua como a prendiam ao interior de um edifício onde fatidicamente haveria de morrer, se ninguém fizesse nada. E a segurança pedia: não sejas humana. E as regras diziam: não sejas humana. E a senhora da clínica rosnou-me: não sejas humana. Estávamos ali, todos nós, a construir a desumanidade.

 

A clínica fica no centro de um jardim primaveril. Tem as suas árvores, a sua relva impecavelmente tratada, as suas flores, os seus insetos engraçados e as suas esvoaçantes borboletas e abelhas, livres de preocupações. Cá fora, tem pessoas como eu. Definitivamente sem liberdade e com preocupações que adensam, com o rodar do ponteiro, à medida que os nossos familiares, abandonados no interior, fazem sozinhos a jornada que lhes cabe, de gabinete em gabinete, de exame em exame.

 

Cada um de nós, nos bancos do jardim impecavelmente tratado da clínica, tem a sua própria história. Esta é a minha. Dentro da clínica, naquela tarde, estava a minha avó – desolada, ansiosa e só – e uma borboleta branca - a morrer aos bocadinhos no sufoco de um vidro, a partir do qual podia vislumbrar o sonho de um destino que devia ser o seu. Duas coisas me angustiavam: não poder ver a minha avó e poder ver o voo incessante da borboleta contra o vidro, imaginando a ansiedade louca da minha anciã e assistindo ao término lento da vida de um ser vivo que podia ser salvo com o abrir de uma janela ou duas mãos cautelosas e abnegadas. Ambos os problemas se resolviam com, literalmente, o atravessar da mesma porta. Mas havia a pandemia. E eu era, agora, escrava da rua, escrava das regras. Dona da mais profunda sensação de impotência.

 

A borboleta esvoaçou. Contra o vidro. Sombra de alvoroço, de pânico, de ansiedade. Contra o vidro. Continuadamente lançando-se nessa busca pela liberdade. Insistindo como apenas os instintos mandam. Uma pessoa teria desistido. Mas a borboleta esvoaçou. Branca nas suas asas e lívida na minha imaginação. Sobra da tortura límpida, translúcida e transparente dos nossos vidros desumanos. Nós só sabemos criar regras e  barreiras. E agora mais… com desculpa.

 

O meu coração estava situado no limiar entre a laringe e a traqueia. E ditava-me que, cumprindo a promessa que fizera à minha idosa, irrompesse porta adentro e fosse o ombro de que sabia que ela precisava. Ditava-me que, cumprindo a promessa da minha alma, irrompesse porta adentro e salvasse a borboleta. Mas as regras – essas para a segurança, alegadamente – impediam-me de colocar um dedo dentro do espaço impecavelmente desinfetado da clínica. As regras diziam que me conformasse. Com a desumanidade do mundo.

 

Aguentei, como dá para aguentar. Sentindo ferver nas veias a noção de que foram séculos de avanços para voltar tudo atrás num vírus. E o fervor do sangue nas veias ditou a sentença e eu cheguei à porta, implorando para, pelo menos, alguém fazer alguma coisa para ajudar a borboleta que, mesmo estando a um passo de mim, estava a mil anos-luz. Insistiram. Eu não podia entrar. Mas suponho que, mesmo com máscara a cobrir a linha reta dos meus lábios coléricos, se tornava possível assistir à fúria dos meus olhos. Porque, muito a custo, a funcionária lá se levantou da sua tarefa e libertou a borboleta do seu sofrimento.

 

Ela saiu. Fez o seu voo de borboleta branca livre e atenuou um pouco a mágoa que eu trazia no peito, deixando o coração ligeiramente mais leve, agora ao nível da traqueia, um pouco mais perto do seu quadrante lateral esquerdo, onde serve para pouco além de sofrer e se preocupar com o mundo e com os meus.

 

Comentei com a minha mãe. Isto é desumano. Ciente da pandemia. Ciente das regras. Ciente de que as regras – alegadamente para nossa segurança – são a forma como estamos a construir a desumanidade.

 

Não podemos auxiliar o nosso idoso, que apenas precisa de presença. Não podemos auxiliar a borboleta branca, que apenas precisa que abram uma janela. E, desculpem, eu não posso calar-me quando não consigo deixar de me questionar. Fechar os olhos a isto não será um primeiro passo para nos despirmos de nós? Não será o passo crucial para que abandonemos todas as noções arduamente edificadas sobre a vida e a partilha e a equidade? Não será a forma de nos esquecermos e deixarmos de nos importar com outras formas de angústia, de tortura, de desapego? Não é este o primeiro passo para limpar sensibilidades, tornando estéril o pedaço de alma – antes fértil – onde se poderia semear a mudança que se quer no mundo?

 

Penso que estamos a trabalhar na desconstrução de décadas e séculos de aprendizagem. Penso que estamos a construir a desumanidade. Penso que isto vai ter um custo pior do que a sepultura.

 

E sim… eu sei. Estão a tentar proteger o mundo. Mas acham que o mundo somos nós e os nossos umbigos. Estão a tentar proteger o mundo. Repetem e eu ouço. Estão a tentar proteger… o mundo… as pessoas… a mim. Mas eu não sei. Não sei se estamos a salvar alguma coisa. E resta saber: se salvarmos mundo do vírus e sobrevivermos, ele ainda vai ser um mundo aonde valha a pena estar vivo?




Sigam também o meu instagram, aqui


terça-feira, 7 de julho de 2020

Datas


Alguém me dizia. Muitos alguéns. Eu sou péssimo com datas. Não! Eles não eram péssimos com datas. Eles eram péssimos a recordar datas. A lembrar em que dia estavam e todos os acontecimentos – mais ou menos importantes – que o marcavam. Eles não eram péssimos com datas. Ainda que se esquecessem de eventos, de aniversários ou simplesmente do dia da consulta médica. Eles não eram péssimos com datas. Péssima com datas sou eu, que me lembro de todas.

 

Chega o dia. O dia que é mais um dia. Igual aos outros dias. No mesmo calendário gregoriano que todos usamos. E que podia ser juliano, etíope, chinês, islâmico, judaico ou até maia… Chega o dia. E o meu corpo todo sabe que o dia chegou. E a minha cabeça serve de folhinha com um vistozinho em cima de todos os acontecimentos que o marcaram. E o meu coração dói. Desculpa.

Hoje, o dia nasceu antes de eu acordar. Ainda não tinha acordado e o meu sonho já era o dia de hoje, ainda adormecido, trazendo-o, desperto, nos meus olhos fechados. Quando acordei já havia uma dormência nos pés, nos braços, nas pernas. Quando acordei, já havia um choro pendurado no ardor do nariz e uma grande falta de vontade de respirar. O pensamento permanecia, incauto e ingénuo, a tentar fugir do óbvio. E todos os neurónios funcionais riam da apoptose das células mortas na noite, sem compreenderem que, em mim, apenas essas estavam bem. Teria sido uma boa noite para morrer. Mas acordei de manhã. E o dia tinha nascido antes de eu acordar, trazido pelo sonho povoado de passados e memórias.

 

O dia tem uma forma de perpetuar o destino morto no tempo. Fantasma e zombie de si mesmo, o dia carrega um cheiro pútrido de felicidade fora do prazo de validade. Peça de fruta, outrora doce, e hoje podre e bolorenta nas minhas mãos, que ainda querem ver nela um fruto vibrante e vivo. É uma merda quando o fruto apodrece. Deixando que o sabor de um amor maior do que o tempo passe a saudade e bolor. Deixando que a eternidade se transfigure em vazios. Plurais. Dissidentes. Insuportáveis.

 

O dia tem um milhar de milhão de horas. Cada microssegundo se transfigura em hora. Cada bater de coração é lâmina. E cada hora é uma memória nova, trazida na prece inconsistente do peito, que quer morrer ali, outra vez.

 

A paisagem que vejo com os olhos fechados é ampla e verde. Tem uma história que não é minha e um pedido, aos pés de uma cruz de pedra. E um pedido, entre o ar e o verde. Sê minha. Sou. Insisto que sou. Mas não sou. E o milhar de milhão de horas do dia pesam-me como se fossem vidas e vidas do mesmo desalento amargo.

 

Eu sou péssima com datas. Péssima. Porque me lembro de todas. Principalmente das importantes. Pormenorizadamente. Guardando segundo a segundo uma memória tão vívida que nunca se apaga. Já tentei matá-la. Com analgésicos, como se matam dores. Com álcool, como se matam vírus. Com tempo, como dizem que se matam amores. Mas eu sou péssima com datas. E não me fodam! Os amores não morrem, nem com tempo, nem com ácido sulfúrico!

 

Alguém me dizia. Muitos alguéns. Eu sou péssimo com datas. Não! Eles não eram péssimos com datas. Eles eram péssimos a recordar datas. Bom para eles! Péssima com datas sou eu. Que me lembro de todas. E morro um bocadinho de as lembrar, de todas as vezes que as lembro, lembrando sempre.




Sigam também o meu instagram, aqui