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terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Areia

 


Sou a irmã caçula de três. Mas não nasci apenas com o apanágio de vir no fim. Nasci também com uma distância temporal que lhes permitiu serem adolescentes quando eu era criança. Ou, melhor dizendo, que me permitiu ser criança quando eles eram adolescentes.

 

Cresci com dois guarda-costas e dois anjos da guarda, que me protegiam principalmente do mau humor parental, assumindo culpas das minhas tropelias ou interpondo-se, qual muralha, entre a figura austera e o meu pequeno (e não tão inocente) eu. Seguiam, provavelmente, o exemplo dos meus avós, que também me protegiam. Ou até o exemplo da minha mãe que, quando não era a fonte da discórdia, também não permitia que mais ninguém o fosse.

 

Serve esta introdução para explicar o seguinte: quando penso naqueles dois seres, penso em pessoas com quem partilho três coisas  pai, mãe e amor.

 

Acontece que ser criança perto de dois adolescentes – ou, melhor dizendo, ser adolescente perto de uma criança – é bastante difícil na época balnear. A época em que a adolescente quer banhos de sol sossegados. O adolescente quer movimento e aventuras de gente grande. E a criança quer brincar com os dois. Então, ao fim de muita insistência – muitas e muitas insistências, vá – era-me dada a orientação para que cavasse um buraco do meu tamanho. Forma simples de conseguirem descanso e evitarem que o meu eu infantil parasse de repetir “vá lá” e “só um bocadinho”.

 

Cavado aquele buraco, brincavam comigo. O jogo chamava-se múmia. No fundo do meu  humilde buraco, punham uma toalha. Sobre o meu corpo, outra, ajustando-a como quem aconchega um filho antes de dormir. Sobre essa, toda a areia que eu tinha tirado do buraco, até que só a cabeça ficasse de fora.

 

Imóvel, com o peso do que parecia ser uma tonelada de areia e incapaz de me mover, eu aguentava algum tempo antes de gritar: “Tirem-me daqui”. Uma, duas, três vezes. “A sério, malta, já chega!”. Nunca tardavam muito a condescender, vindo com risos que me faziam rir também e dizendo-me que a pele, normalmente húmida dos banhos e agora com areia colada, me fazia parecer um croquete. E corria atrás deles. Atirava baldes de água. Riamos. Construíamos cabanas nas dunas. Éramos felizes.

 

Hoje sei que os meus irmãos me prepararam mal para a vida.

 

Sei-o porque vejo gente com milhões fazer comigo o mesmo que eles faziam. Mandam-me cavar a sepultura. Enterram-me. Nem cabeça de fora fica. E eu que grite “tirem-me daqui” quantas vezes quiser. Porque não há quem venha condescender, rir, deixar-me ser feliz em paz.

 

Enumero os grãos de areia que me enterram. Guerra. Fome. Miséria. Injustiça. Mentira. Ódio. Desassossego. Mês no fim do salário. Contas. Impostos. Mais contas. Mais impostos. Mais ódio. Mais mentira. Outra guerra. A mesma guerra. A mesma guerra outra vez. Invasão. Do país. Da carne. Dos dados. Da vida. Taxas sobre a vida. Sobre o viver. Sobre viver. Sobreviver.

Sob... um monte de grãos de areia. Paralisada. Com saudades de ser criança. Enterrada pelas mãos compassivas de quem sempre me salvava de si e de mim e do mundo.

 

Grito

“Malta, já chega!”

 

Vem um novo carregamento de areia.

Sufoco na ampulheta que eles viram entre os dedos da opulência.

Destinando-nos cabanas mais caras e com piores condições do que aquelas feitas de cana e limo.

 

Deuses. Era tão melhor ser criança entre adolescentes do que é, agora, ser lúcida entre tiranos. Que saudades desses dias de praia, em que a sepultura que escavava não era aquela em que iria morrer.


Marina Ferraz



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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Greve(s)

 

Vídeo publicado no YouTube

Cito, palavra-por-palavra, o que nos pergunta o líder do Governo: Uma greve geral porquê? Uma greve geral para reclamar o quê do Governo e do poder político? Isto, depois de dizer muitos historicamentes. Sabemos que historicamente-isto, e historicamente-aquilo. São histórias e mente. Isso é certo. Mas, hoje, o que incomoda mais é a pergunta. Porque há resposta. Uma greve geral porquê?

 

Senhor Primeiro Ministro, eu explico. É uma greve para evitar a greve. A greve de sono que daria o banco de horas, com a falta de horários compatíveis com a saúde mental e as horas extra. A greve de fome, com a precaridade crescente de jovens que nunca vão sair da senda de contratos temporários e que, perante a inflação, dificilmente conseguirão alimentar-se. A greve de sexo, porque não há melhor forma de evitar uma gravidez do que a abstinência... e ninguém vai ter tempo para cuidar de um bebé ou alimentá-lo... principalmente considerando que o alimento natural é visto com maus olhos pelos seus próprios ministros, que até as lactantes já conseguiram atacar.

 

Esta, senhor Primeiro Ministro, é uma greve para que não haja greve habitacional, ou para que ela não piore. Para que os jovens deixem de viver a eterna greve da independência, vivendo em casa dos pais até estarem perto da idade da reforma. Bem, na verdade, esqueça este último argumento. Reforma. Piada triste para a minha geração, que deverá trabalhar até aos 100 anos, pelo andar da carruagem, e não ter qualquer pensão à sua espera por causa da greve de sexo supramencionada.

 

Esta greve, em palavras que cheguem ao seu nível de intelecto, serve porque a única coisa que ainda não nos roubaram foi a voz. De ouvidos tapados, trauteando a mesma canção do bandido, ignoram-na, mas não a calam. E, para que ela ressoe, é preciso suster a respiração do país e fazer com que o sufoco que nos acompanha nos gritos diários se sinta nos bolsos fundos dos “abnegados” donos disto tudo, recordando que toda a casa começa na fundação, na estrutura, nos alicerces. Lembrando que os alicerces do país é o povo.

 

Mais empática do que o senhor, eu entendo que não entenda. Quando se tem 54 imóveis, comida farta na mesa e um salário de 8 mil euros por mês, é fácil não entender a greve. Eu sei que dizem para “deixarmos o Luís trabalhar” e, por favor, a greve é um direito e não uma lei... sinta-se à vontade para começar a trabalhar quando quiser. Lembrando, por favor, que trabalha para nós e não contra nós... (ainda que não historicamente...)

 

E, agora, vou continuar a minha greve de sono... porque preciso de trabalhar para dar mais de metade do meu salário ao Estado, para impostos, e conseguir pagar as contas. Algo que, provavelmente, também não entende.

 

Já agora, por favor. Pare de dizer que o novo pacote laboral é bom para as pessoas. Primeiro porque nos insulta. Depois porque mente. E o resto é história...


Marina Ferraz



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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Espetáculo

 

Imagem criada por I.A.

A pergunta atravessa o ecrã. Ainda bem. Se viesse num frente a frente, acho que o rosto me denunciaria. Até a mim, que me considero moderadamente boa atriz. Atravessa o ecrã. É só uma pergunta, mas também é uma mina terrestre num percurso de meia-maratona. Tento procurar a suavidade dos eufemismos. Aproveito para reler. Como é Portugal? E respondo da única forma possível:

 

Portugal é um espetáculo!

 

A televisão portuguesa é um espetáculo. O parlamento português é um espetáculo. Os políticos portugueses são um espetáculo. O jornalismo nacional? Espetáculo! A saúde é um espetáculo. A educação é um espetáculo. A função pública, então, é tão espetacular, que é ver as filas para assistir na porta das Finanças e da Segurança Social...

 

Tudo em Portugal é um espetáculo. Mas principalmente os debates políticos! Nem imaginas! Olha: são trinta minutos, com três pessoas numa mesa. Das três, duas estudaram uma lista de piadas tristes e insultos gratuitos. Uma não sabe o que é moderar. Nenhuma das três sabe o que é moderação. E desconfio que nenhum dos quatro – eles e o espetador que assiste – sabe o que é um debate. A cenografia é fantástica, a dança de interrupções é clássica, a sinfonia é moderna, mas com um toque de ancestralidade arcaica. Há poesia nos segundos de silêncio e escrevem-se enredos fictícios interessantíssimos sobre o passado que nunca existiu e o futuro que nunca vai existir. Mas, não te assustes! Ali, nem uma ideia! Nem uma estratégia. Nem um plano. Nem uma solução! Trama novelesca da mais pura, debitada por atores políticos, que assim justificam o nome de atores... embora lhes falte o nível, o charme e o talento. Mas dá para o gasto, já que fazem muito teatro e pouca arte!

 

A televisão aproveita o teatro para o seu espetáculo. Repete o espetáculo. Disseca-o. Apresenta-o dentro de contexto, fora de contexto, com texto, sem texto, com pretexto e sem pretexto. A imprensa repete. As rádios repetem. Diz que disse e... espetáculo! Lemos. O assunto é diverso. Alunos que acham um espetáculo que o ano letivo tenha começado há um trimestre e ainda não tenham professores. E pacientes que acham um espetáculo a consulta urgente estar agendada para daí a um ano e três meses. Acredita! Portugal é sempre a andar...Portugal já nem pára para parir! É ver mães a dar à luz na autoestrada.

 

Espetáculo! Assim vamos andando, de espetáculo em espetáculo.

 

E, depois, o Canal Parlamento, merecedor substituto do Big Brother, num formato que combina o confinamento em espaço fechado de um conjunto de gente intolerável e intolerante com a tirania da Voz do Masterplan, criando as regras para o malabarismo triste que fazemos com o salário para tentar pagar contas e impostos. É do que de mais puro já foi feito no contexto dos Reality Shows! Um espetáculo!

 

Sim. Podes acreditar! Portugal é um espetáculo! Para um país que não apoia a cultura nem os artistas, até chega a ser estranho! Mas Portugal é espetáculo! Tudo o que devia ser sério é espetáculo. Tudo o que devia ser levado com profissionalismo e idoneidade é espetáculo. Só o espetáculo é que não é espetáculo. Porque os artistas querem fazer cultura. Porque os artistas querem fazer arte. Porque os artistas querem – imploram - para que venha um espetáculo. Mas Financiamento? Seria um espetáculo! Mas, espetacularmente, já nem há um ministério exclusivo para a cultura... então...

 

Portanto...sim! Portugal?! É... espetáculo!


Marina Ferraz



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