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terça-feira, 17 de junho de 2025

Receita do dia: Pedigree à Portuguesa

Imagem gerada por I.A.


Hoje apresentamos uma receita de dificuldade média, ideal para servir em dias frios, amenos ou quentes, e que serve cerca de 9,03 milhões de pessoas. Daria para os 10,2 milhões, não me entendam mal! Mas sabemos que aproximadamente 1,17 milhões são intolerantes e não engolirão o preparado, nem acompanhado de um bom vinho. O tempo de preparação varia, mas a receita tem sido aprimorada desde há mais de 5 mil anos. Os ingredientes? São variados! Ideais para uma dieta rica e completa.

 

Se quiserem preparar uma comida bem portuguesa, limitem-se a utilizar produto adquirido em território português. Vão precisar de Iberos, Celtas, Celtiberos, Lusitanos, Galaicos, Túrdulos, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Suevos, Visigodos, Árabes, Berberes... opcionalmente podem também adicionar Espanhóis, apesar de eu continuar a insistir que isso é juntar um bocadinho da própria massa que estamos a criar (como quem faz caril com pó caril de compra... em vez de fazer efetivamente caril). Se não fizerem questão de ter um prato 100% luso, podem também acrescentar alguns produtos importados de países como o Brasil, a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Macau ou Timor. Juntem tudo ao molho no liquidificador e voilá: um português com pedigree!

 

Era isto que queríamos: a mistura mais ousada de todos os tempos, feita do cruzamento meio louco entre gente e gente, e criando massa de humano. Com osso e carne, com sangue. Crenças dissolvidas e integradas, costumes que vêm do tempo em que o sol era Deus e outros que se criaram com a queda da chuva, com a queda das rosas, com o orgulhoso arco-íris que nasce e se põe nas ruas, com baldes e baldes de brilho dourado, purpurina e esperança.

 

O sabor desta receita é doce, porque a mistura se fez aos poucos. A massa foi descansando. Os travos mais inusuais e os mais típicos foram encontrando um equilíbrio. E a gente se fez gente, como a gente sempre se faz: um por cima e um por baixo, num encaixe perfeito, no momento em que só importa o agora.

 

O pedigree português é ser vira lata. E, por isso, se aclamava a cultura aberta, os braços abertos, a mesa da casa portuguesa onde fica bem pão, vinho e hospitalidade. O abanar da cauda aos outros, o dar uma história, uma família e uma merendazinha para o caminho de quem vem por bem.

 

Mas há quem não se alimente destes conceitos. Porque algumas pessoas foram criteriosas na abertura dos livros de História, fazendo esta receita apenas com uma porção de terra – possivelmente de Guimarães – uma laranjinha do Algarve, dois robalos da costa nacional e umas gotinhas de Atlântico. Quem cozinha com este leque limitado acha que o português, como o Mondego, nasce e desagua dentro da limitada linha da fronteira. E, no medo da falta, quer a fronteira fechada, para que não nos falte a matéria para cozinhar futuros amargos. Criam o seu prato simplista e feito de ignorância. Espalham a notícia de que fazem a receita original. O verdadeiro português com pedigree. O português de bem. Aquele que é de raça pura! O segredo da receita é Deus, Pátria e Família. Na cozinha, a velha senhora vai mexendo o tacho. Rega-se tudo isto com o sangue de inocentes. Vão os alienados comer, com ou sem reserva, ao Tacho do Facho. Comida semipronta e que evita os alérgenos que incomodam aqueles sensíveis 1,17 milhões de intolerantes.

 

Proponho uma entrada de bondade, antes de se servir o português com pedigree, aquele que é de mistura e faz tradição da diversidade. Proponho que se sirva uma sobremesa bem doce a seguir, que se prepare com especiarias internacionais e tenha sabores de cana e de café e de canela. Sirvamos isto tudo numa mesa ornamentada de cravos vermelhos e rebeldia. E para beber, uma sugestão, antes que alguém me considere traidora à pátria: um tinto encorpado da Adega Belém!


 Marina Ferraz




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1 comentário:

  1. Marina querida, de facto a culinária nunca foi o meu forte, embora tivesse de aprender às minhas custas, principalmente nos anos em que vivi sozinho. Mas esta tua culinária tem um certo sabor amargo, apesar da variedade dos ingredientes, e apesar ou talvez devido à ironia mordaz temperada com alguns laivos de realidade incómoda.
    Está quase a chegar o teu dia. Fica bem . Zé

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