terça-feira, 24 de junho de 2025

Livros usados

Imagem gerada por I.A.

Gosto de ler livros usados. Principalmente livros usados que já foram lidos. Que trazem alguns traços de manuseamento. Páginas amarelecidas do tempo. Lombadas com pequenos riscos verticais, acusando abertura e que nos permitem saber que a espinha vertebral da obra, ali colando ou cosendo o miolo, sofre já os males da idade. Como entendo esses livros! Já lá vai o tempo em que a minha não tinha dano...

 

Um livro usado é um livro que já fez companhia a alguém. Que já se deu a alguém. Que, possivelmente, já dormiu na cama de alguém. Que, provavelmente, andou de mãos dadas com o absurdo da paragem, permitindo que o cansaço mergulhasse na história, na aventura da página seguinte.

 

Um livro usado já transformou pessoas apáticas em super pessoas. Já lhes deu alento. Já lhes segurou a solidão, agitando-a até que fosse apenas solitude. E já beijou na boca o tempo, já se estendeu pela imortalidade da mente humana e enraizou ideias, como quem rega a planta do canteiro.

 

Alguns livros usados não foram usados. Chegam-me às mãos, ansiosos e desconfiados dos meus intentos. Como se tivessem medo de que a capa lhes seja aberta pela primeira vez. Será que dói? Perguntam-me isto. Tento ser gentil com os livros usados que ninguém quis ler. Prometo-lhes que não os vou magoar, à medida que folheio uma página e outra. Carícia suave e terna, que eles acabam por amar, silenciando as perguntas e rendendo-se, enquanto descobrem que as mãos são mais suaves do que as prateleiras, e aprendem a respirar com os pulmões todos, sem a compressão dos irmãos-livro renegados que os apertavam.

 

Alguns livros antigos são arrancados das mãos de donos negligentes. Muitas vezes nem foram lidos, mas apenas maltratados. Estes são os mais difíceis de domar. São livros que não sabem aceitar um carinho, porque nunca viram carinho. Que têm medo de entrar na carteira, porque foram fechados e arrastados em mochilas, batendo contra todo o tipo de material, sem cuidado. Trazem capas e folhas amassadas. Encolhem-se, quando tentamos pegar neles. São desconfiados, difíceis de conquistar. Demoram a aquietar-se. As páginas vêm muitas vezes sublinhadas e riscadas, pendurando aqui e ali um homem-traço enforcado. Às vezes, quando perdem a vergonha, contam-me que foram à escola, mas não ensinaram nada a ninguém. Dizem isto com mágoa. Não era o que esperavam quando os tiraram da prateleira, na livraria. Tiveram os sonhos vilipendiados. Apetece-me beijar estes livros. A pouco e pouco, vendo-me o cuidado, eles aquietam-se. Quando o fazem, tornam-se os livros mais fiéis e dóceis. São livros que se lembram, depois de esquecer, o tamanho do verbo amar.

 

Quando arrumo estes livros nas prateleiras, depois de lidos, eles esperam que eu saia e falam uns com os outros. Contam que fiz chamadas apenas para ler frases soltas a outras pessoas. Que, sozinha, fiz comentários em voz alta, enquanto os lia. Que lhes disse “boa noite” sempre que me deitei depois de ler algumas páginas ou capítulos. Que, por vezes, me veem a levantar a custo porque me deitei três capítulos mais tarde do que o previsto. Ouço-os a rir, nas prateleiras. Soam todos gentis e felizes. Calam-se quando eu entro, evidentemente... só me falam para me contar as histórias que trazem dentro. Mas o que dizem uns aos outros, é muito mais...

 

Na caixa ao lado da prateleira, estão os livros que ainda não li. Ouvem estas conversas e aguardam pela sua vez. E, lançando as mãos ao próximo, eu amenizo-lhes a ansiedade. Calma, já aí vou! Irei. Enquanto puder.

 

Um dia, a capa da minha própria vida será definitivamente fechada. Encerrará o seu último capítulo. Espero que alguém cuide dos meus livros. Que alguém diga: foi a sua única pena, morrer antes de os ler a todos. Que alguém seja bondoso ao manuseá-los. Que alguém saiba que eles foram – são – o motivo pelo qual nunca fui e não sou só.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 17 de junho de 2025

Receita do dia: Pedigree à Portuguesa

Imagem gerada por I.A.


Hoje apresentamos uma receita de dificuldade média, ideal para servir em dias frios, amenos ou quentes, e que serve cerca de 9,03 milhões de pessoas. Daria para os 10,2 milhões, não me entendam mal! Mas sabemos que aproximadamente 1,17 milhões são intolerantes e não engolirão o preparado, nem acompanhado de um bom vinho. O tempo de preparação varia, mas a receita tem sido aprimorada desde há mais de 5 mil anos. Os ingredientes? São variados! Ideais para uma dieta rica e completa.

 

Se quiserem preparar uma comida bem portuguesa, limitem-se a utilizar produto adquirido em território português. Vão precisar de Iberos, Celtas, Celtiberos, Lusitanos, Galaicos, Túrdulos, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Suevos, Visigodos, Árabes, Berberes... opcionalmente podem também adicionar Espanhóis, apesar de eu continuar a insistir que isso é juntar um bocadinho da própria massa que estamos a criar (como quem faz caril com pó caril de compra... em vez de fazer efetivamente caril). Se não fizerem questão de ter um prato 100% luso, podem também acrescentar alguns produtos importados de países como o Brasil, a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Goa, Macau ou Timor. Juntem tudo ao molho no liquidificador e voilá: um português com pedigree!

 

Era isto que queríamos: a mistura mais ousada de todos os tempos, feita do cruzamento meio louco entre gente e gente, e criando massa de humano. Com osso e carne, com sangue. Crenças dissolvidas e integradas, costumes que vêm do tempo em que o sol era Deus e outros que se criaram com a queda da chuva, com a queda das rosas, com o orgulhoso arco-íris que nasce e se põe nas ruas, com baldes e baldes de brilho dourado, purpurina e esperança.

 

O sabor desta receita é doce, porque a mistura se fez aos poucos. A massa foi descansando. Os travos mais inusuais e os mais típicos foram encontrando um equilíbrio. E a gente se fez gente, como a gente sempre se faz: um por cima e um por baixo, num encaixe perfeito, no momento em que só importa o agora.

 

O pedigree português é ser vira lata. E, por isso, se aclamava a cultura aberta, os braços abertos, a mesa da casa portuguesa onde fica bem pão, vinho e hospitalidade. O abanar da cauda aos outros, o dar uma história, uma família e uma merendazinha para o caminho de quem vem por bem.

 

Mas há quem não se alimente destes conceitos. Porque algumas pessoas foram criteriosas na abertura dos livros de História, fazendo esta receita apenas com uma porção de terra – possivelmente de Guimarães – uma laranjinha do Algarve, dois robalos da costa nacional e umas gotinhas de Atlântico. Quem cozinha com este leque limitado acha que o português, como o Mondego, nasce e desagua dentro da limitada linha da fronteira. E, no medo da falta, quer a fronteira fechada, para que não nos falte a matéria para cozinhar futuros amargos. Criam o seu prato simplista e feito de ignorância. Espalham a notícia de que fazem a receita original. O verdadeiro português com pedigree. O português de bem. Aquele que é de raça pura! O segredo da receita é Deus, Pátria e Família. Na cozinha, a velha senhora vai mexendo o tacho. Rega-se tudo isto com o sangue de inocentes. Vão os alienados comer, com ou sem reserva, ao Tacho do Facho. Comida semipronta e que evita os alérgenos que incomodam aqueles sensíveis 1,17 milhões de intolerantes.

 

Proponho uma entrada de bondade, antes de se servir o português com pedigree, aquele que é de mistura e faz tradição da diversidade. Proponho que se sirva uma sobremesa bem doce a seguir, que se prepare com especiarias internacionais e tenha sabores de cana e de café e de canela. Sirvamos isto tudo numa mesa ornamentada de cravos vermelhos e rebeldia. E para beber, uma sugestão, antes que alguém me considere traidora à pátria: um tinto encorpado da Adega Belém!


 Marina Ferraz




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terça-feira, 10 de junho de 2025

Pescoço

 

Imagem gerada por I.A.


O problema é o pescoço. Que o digam as pessoas com dívidas até ao pescoço, que vivem de corda ao pescoço, sofrendo o mal de uma economia que constantemente lhes põe os pés ao pescoço. Penduram ao pescoço o letreiro que diz "Persona non Grata". Se não produz, não serve. Adeus. As pessoas culpam-se umas às outras. Atiram-se ao pescoço uma das outras. A culpa mais culpada é do pobre mais pobre do que o pobre que se queixa. Vêm as forças policiais com meios insuficientes, e os jornalistas com o estúdio inteiro atrás. Pagam-se uns trocos pela narrativa que interessa. Corta-se o mal pelo pescoço. Que é como quem diz raiz. Mas a fala popular tem destas coisas, porque não saber pescoço é apanágio da educação moderna. Nas notícias, descobrimos que o Portugal futebolista volta para casa de taça na mão e medalha ao pescoço. Mais nenhum pescoço interessa. E seguimos, de pescoço sobre os ombros.


Inquilina das águas furtadas do pescoço, a garganta às vezes seca de calar. Causa desconforto. Não é um torcicolo, nem laringite. Não é refluxo, descansemos! É uma secura extrema, promovida pela enchente de palavras que inundou o peito, e condicionada pela dificuldade de organização coerente, que permitiria vociferar insulto digno de verbalização ou informação com real tempo de antena. Ocasionalmente, lá está: um pescoço que se ergue. Uma mensagem que importa. Um Presidente da República que lança mãos a pescoços alheios, em vãs tentativas de lhes manter seca a garganta. O silêncio é de ouro, dizia-lhe a mãezinha, essa outra senhora. Outra porque não é a minha. Outra porque é outra. E entenda cada um como quiser. Se puder. Fica a dever-se um pedido de desculpas e uma condecoração. Que mais uma, menos uma, também já não faz muita diferença... e há que ornamentar os pescoços agredidos, para que contribuam para movimentos mais anuentes de cabeça.

 

Abanamos a cabeça. Assistindo a isto. Precisamos do pescoço para o fazer. Damos graças pela brevidade da mudança no mais elevado quadro político. E depois recordamos. Há quem, de candidato, traga ainda o arrasto das palavras ditas sobre a tentação política. Se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar. O problema, aqui, não é o pescoço, mas a falta de patriotismo, que Portugal sempre foi conhecido pela sua hospitalidade e pronta anuência... e, por despeito à pátria e seus bons costumes, parece que ninguém fez ainda a gentileza de ceder a corda ao homem!

 

Nas ruas, gente de pescoço caído faz da calçada portuguesa, mal cuidada em chão que o turista rico não pisa, o horizonte. Escavam o chão com os olhos. A sepultura já não parece mau destino. Ninguém faz nada. Enterram cabeça e pescoço na terra, como avestruzes. A garganta seca-me enquanto tenta pescar estruturas frásicas lógicas no meio do milhar de milhão de palavras que queria cuspir. Obrigo-me a endireitar o pescoço e a ver tanta opressão, tanta miséria, tanta aceitação.

 

É o filme mais triste de todos. O deste país, no qual o problema é o pescoço. E a falta da coluna vertebral. E da cabeça que perdeu...


 Marina Ferraz




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terça-feira, 3 de junho de 2025

A cozinha da casa-corpo

 

Imagem gerada por I.A.

O meu coração é a cozinha da minha casa-corpo.

 

Apercebo-me disto enquanto faço mais um auto-de-fé à casa, libertando-me de quase tudo o que é mundano. Desapego-me de bibelôs, essa espécie de apêndice. Atiro roupas para dentro de sacos, libertando espaço pulmonar para novas respirações. Desapego-me até de livros. Livros! Para que as sinapses aconteçam de forma mais leve e livre. Deles, percebo, basta-me o conhecimento que ficou.

 

Vou libertando as divisões de quase tudo. Dividindo o que é de quem. Oferecendo as coleções que tanto amei aos meus sobrinhos. Dando a mão ao tempo do desapego, dizendo: não levo nada para o caixão.

 

E a cozinha ali fica. Com todos os seus tachos e todos os seus pratos. Como se eu precisasse de todos. E sei que não. Sei que só tenho duas mãos e uma boca. Detergente da louça e esponja. Até o luxo de uma máquina de lavar. Mas fica difícil arrumar as coisas. Há uma sensação agarrada às coisas, quase tão entranhada como a gordura que fica depois de fritar rissóis... a sensação de que preciso de ter tudo aquilo à mão. De que preciso de ter tudo aquilo ao pé.

 

Não me entendam mal! Quase tudo o que mora nos armários da minha cozinha é desnecessário. São amores antigos. E crónicas de uma vida que já foi. Chávenas rachadas que contam a história bonita de um tempo que já está reciclado. Talheres que foram roubados de restaurantes. Formas de bolo que não podem ser usadas... mas que fizeram aquele bolo, naquele dia... aquele, que ficou partido num canto, justamente porque a forma já estava a precisar de reforma!

 

A casa leva uma razia e a cozinha ali fica, impávida e serena, com o seu ar altivo, a dizer que é melhor do que as outras divisões. O corpo leva uma razia e o coração ali fica, impávido e sereno, com o seu ar altivo, a dizer que é melhor do que os outros órgãos.

 

Sim! O meu coração é a cozinha da minha casa-corpo.

 

Talvez venha a esvaziar a cozinha antes de esvaziar o coração. E talvez, um dia, cansada, decida limpar igualmente esse espaço confinado do meu peito. Mas eu sei... quando o fizer, ainda que desapareçam talheres e pratos e chávenas rachadas, formas de bolo e esperança... ficará nele um nome... entranhado em todas as frestas e recantos, como a gordura persistente depois de se fritar rissóis.


 Marina Ferraz




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