terça-feira, 5 de agosto de 2025

Dá-me crédito

 

Imagem gerada por IA


A senhora, por acaso, não tem um minuto que me dispense para lhe dizer como podemos ajudá-la a lixar um bocadinho mais a sua vida? Tenho a certeza (quase) absoluta de que não foi isto que o homem sorridente e elegantemente vestido que se dirigiu a mim disse. Mas foi como se o dissesse. Foi como se o ouvisse. E, mesmo que ele não o tenha dito e eu não o tenha ouvido, era exatamente isto que estava contido nas entrelinhas do que ficou por dizer.

 

Ele quer atirar-me números à cara. Sabe que se começar o discurso de forma personalizada. O que faz, se não me for indiscrição? Uma palavra puxando a outra, se assim fosse permitido. Chegaríamos à pergunta – hoje afirmação – sobre se não me faziam jeito mais uns milhares de euros imediatos. Quem – por favor digam-me – é que não sente falta de ter mais um zero ou dois na conta bancária, neste país onde os salários são baixos e tudo – impostos, rendas, compras – é caro? O engodo estaria lançado. Logo ali. É com alguma aversão e preconceito que olho para ele e respondo um não muito seco logo que me diz boa tarde. Tento perdoar-me pelo asco imenso que sinto por aquele ser humano, recordando-me de que não é ele, mas a marca por detrás dele, que me enoja. Talvez tenha filhos para criar e não tenha arranjado outro emprego. Digo isto a mim própria, sentindo-me envergonhada comigo mesma por ser tão imediatamente repelida pela ideia de lhe responder, como faria com qualquer outra pessoa, um boa tarde simpático. Mas a moralista em mim vem à tona, sou o azeite desta água, e não sei se haveria alguma circunstância que me fizesse aceitar aquele emprego...

 

Crédito é uma palavra que me arrepia. Arrepia-me porque, em 2023, o mundo atingiu uma dívida recorde de 300 triliões de dólares. Arrepia-me porque existe mais dívida do que dinheiro no mundo. Arrepia-me porque o sobreendividamento gera problemas sérios de saúde mental e é uma das causas frequentes de suicídio. Arrepia-me porque é um jogo em cadeia: fazer dívida, fazer crédito para saldar dívida, ter dívida, fazer crédito... São centenas de milhões de pessoas nesta situação. Pessoas frágeis, que procuram solução em qualquer canto... até nas vozes simpáticas dos senhores que as abordam em centros comerciais. Suspiro. Sinto-me feia por responder mal ao funcionário que, provavelmente, receberá apenas comissões mal pagas pelos seus serviços. Ele nada mais é do que o carrasco pobre, erguendo e baixando o machado nos pescoços dos outros pobres. Mas irrito-me porque a abordagem é invasiva, é insistente, é agressiva.

 

Entre 1971 e 2010 basicamente todos os países proibiram a publicidade ao tabaco, quer nos meios de comunicação como em espaços públicos. A saúde pública, o custo social e económico e a proteção dos jovens foram razão suficiente para que as legislações restritivas entrassem em vigor, ainda que sobrasse espaço para alguns geniais momentos de marketing, como o da Camel, que lançaria o seu mítico outdoor Não fume! Nem mesmo Camel. Como é que, em 2025, os países apenas regulam a publicidade ao crédito, exigindo as famosas letrinhas pequenas do TAEG e afins, mas continuando a permitir que se coloquem bancazinhas de persuasão no caminho das pessoas? E sim, já me disseram que não é a mesma coisa, que o tabaco mata. Vamos, então, a números: mundialmente cerca de 13% dos endividados tenta suicidar-se, 12% assumem pensar nisso e 21% dos endividados em situação grave morrem por suicídio.

 

O crédito servido nos corredores dos shoppings é o chocolate cuidadosamente colocado nas linhas de caixas dos supermercados, para aliciar as crianças. Não sou contra o chocolate. Quem tem vontade ou necessidade de chocolate pode dirigir-se ao corredor dos doces para o ir buscar. Quem precisa do crédito não deixará de procurá-lo. Mas é horrível estar a vender uma religiosa salvação onde apenas existe um novo problema.

 

Continuo a andar, deixando para trás o homem a falar sozinho. Levo comigo um peso extra. Gostaria de saber explicar melhor. Vou-me perguntando. Como é que, no meio de tanta proibição estúpida, a publicidade ao crédito ainda é permitida?

 

Uma resposta incomodativa surge na minha mente. Talvez seja conveniente para alguns. Talvez, para o sistema, um pobre morto valha mais.


Marina Ferraz




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