quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Quatro

Eles deram as mãos e caminharam pelo areal sujo, naquele último dia de Verão. Estavam cegos. Cegos de não verem mais do que os olhos um do outro, por entre a neblina ténue daquela tarde de sol. Então, no olhar, traziam apenas a cegueira de acreditarem que o mundo podia parar e fazê-los serem melhores do que eram. Para serem um do outro. Talvez.
Atiraram-se ao chão e ficaram a ver o mar, com os pés nus enterrados na areia fria. E o mar era distante e bravo. Tão distante e bravo como o Inverno que se acercava a passos largos, subtil mas arrebatadoramente.
Sorriram. Sorriram como todos os amantes tristes fazem nos romances cor-de-rosa. Olharam um para o outro, com a timidez que sabiam que seria vencida, para poderem sentar-se mais perto. Para poderem cair no erro de fingirem que podiam amar-se mais do que se amavam, naquele segundo.
A medo, ele desenhou um coração na areia e ela sorriu, enquanto se levantava e recuava, aos poucos, antes de correr o mais que conseguia. O rapaz correu atrás dela, alcançando-a, sem dificuldade, e selando aquele momento com o primeiro beijo. E o primeiro beijo não foi mais do que o primeiro numa contagem decrescente para a morte do amor.
Quatro. Quatro beijos. Quatro dias. Quatro séculos. Quatro milénios. O amor morre. Morre como uma criança arrogante que decide, do nada, que não quer viver mais. Mas as pegadas estão marcadas na areia sólida da mente de ambos, lado a lado com o coração perfeito que ele desenhou para a rapariga, sem saber que enterrava ali o coração dela, para sempre.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Mentira


Ontem, eras a minha guarda inteira. Eras o meu exército, sempre disposto a lutar pelas coisas mais pequenas, acreditando que eu não merecia sair magoada. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, eras o meu Abrigo, o refúgio da minha guerra interior, onde podia enterrar o rosto e fechar os olhos, esperando acordar no País das Maravilhas. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, tinhas a altura do céu, o brilho das estrelas, a imensidão do oceano. Eras, sozinho, o meu mundo inteiro, o meu jardim proibido, onde reinavas sobre tudo o que existe. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, eras o amor da minha vida, a rosa sem espinhos, o caminho sem obstáculos, o pote dourado no fim do arco-íris. Tinhas descido do Olimpo, dominado os mortais e conquistado o meu coração de mulher. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Ontem, eras o amor da minha vida, o meu Universo, uma linha de certeza entre o tudo e o nada. Hoje, se perguntarem, vou dizer que não és ninguém.
Vou dizer que não és ninguém e vou mentir. Mentir somente, porque aprendi a verdade: ontem, eu estava cega. Cega de não saber que não existem portos seguros, nem deuses, nem certezas, nem países encantados, nem pessoas do tamanho do céu.
Estava cega de não ver além da tua perfeição. Da perfeição que ainda tens na cegueira, agora atenta, dos meus olhos.
Ontem, eu estava cega. Não há rosas sem espinhos…

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet