terça-feira, 22 de setembro de 2015

Luo-te



Não te amo.

Desculpa.

Sou-te luar. Não posso dizer que te luo. Posso? A lua não tem formas verbais. Conjugações. Mas é isso. Sou-te luar. Luo-te.

Luar é muito mais do que amar. O amor é redutor. Fizeram dele palavra de uso. E definiram-no, como se pudessem definir o cosmos, em palavrinhas tão pequenas que delas mal se retira um significado que valha a leitura.

Passa por coisa de brilho. Coisa de luz. O amor. A lua não. Sendo brilho e luz, a lua lembra que anoitece. Lembra que há fases. Que há escuridão nos meandros do tempo que avança. E lembra que o negrume aparece, alastra, se torna tão permanente que é como se não existisse salvação. Tudo, para depois lembrar que a salvação existe, que a luz retorna, que o brilho não se perdeu.

Somos assim. Tu e eu. Com as nossas fases boas. Com as nossas fases más. Com as nossas metástases de sonho, irradiadas pelo corpo e pela alma. Pelo coração pulsante. Pela garganta arranhada dos gritos e dos desassossegos. Temos dias bons. Temos dias maus. Às vezes, és o meu cavaleiro, protector e indestrutível contra as adversidades do mundo. Mas, em alguns dias, és menino, e eu visto a armadura e avanço rumo aos medos, pelos dois. Somos escada. Degraus da mesma escada. Subindo pelos mesmos objetivos. E, todas as vezes que me deparo com as sombras irradiadas pela dor penetrante de um adeus, sei (mais do que admito saber), não quero descobrir um mundo sem ti.

Somos o reflexo dos passados que vivemos e nunca superámos. Bichos isolados, temerosos, sempre à espera que nos seja infligido o sofrimento. Não deixamos ninguém passar da soleira da porta. Só deixámos uma vez. Passei a porta. Passaste a muralha. Passei a carapaça. Passaste a máscara. Entrámos na vida um do outro. No espaço um do outro. No lugar um do outro. No corpo um do outro. Na pele um do outro. E sabem os Deuses que entrámos, por vezes, à força de nos batermos contra pessoas, problemas, circunstâncias e fantasmas.

Obsessivamente, recuso-me a imaginar-me sem ti. E sinto, de ti, uma recusa igual. Passa o tempo. Passa a vida. E lá vêm os nossos quartos minguantes. A nossa escuridão. Procuro não dizer que também te quero o caos. Mas quero. Quero-te o sorriso. A mão. O calor. Mas também quero o nervosismo irado que embate nas paredes e me ataca, me desconsola, me atormenta.

Dirão - têm razão - não é amor! Não te amo. Luo-te. Em todas as tuas fases. Sinto-me sempre perder o olhar e a noção em ti. Sinto-me sempre contemplar a tua beleza, feita de metamorfoses. Luo-te. E, porque vejo nos teus olhos o reflexo dos meus, sei. Luo-te e sou-te luar.

Que se amem as figuras de livro que preenchem os romances e não vivem.
Que se amem as personagens de cinema, sempre tão banais e lineares.
E que continuem a fazer do amor um verbo conjugável em tempos que não fazem sentido.

A lua não tem presente. Nem futuro. Não é luz. Nem escuridão. Conjuga-se num tempo chamado eternidade e apenas nele se transforma sem mudar.

Desculpa se eu não te amo.

Mas o que temos não é amor.

É luar.


Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Danças na floresta


O vento. Pagão. Incontrolável. Soprando por entre as árvores. Minhas irmãs. E o canto inaudível da Lua. Cheia. Olhando para nós e para as nossas danças na floresta.

Pergunto quem sou. Sem palavras. Movimento. Suor. Coração descompassado. Pergunto quem sou. Ao ar. À brisa que me acolhe os passos e os eleva do chão. E digo-lhe. Ao Ar, às sílfides, ao vento: Às vezes sou como tu. Às vezes, queria ser mais como tu. Ter a tua calma. O teu equilíbrio. Ele fala. Responde. Não são palavras que qualquer um possa ouvir. Mas eu ouço. "És como eu.", proclama. E eu sei que sim. Que é verdade. Danço. Ao redor da fogueira. Pergunto quem sou.

O rio. Pagão. Seguindo cursos marcados. Concretos. Por entre as margens. Sobre as rochas. Debaixo do mesmo céu. E a chuva. Caindo em intervalos. Abençoando-nos e às nossas danças na floresta.

Pergunto quem sou. Sem palavras. Espaço. Amor. Coreografia. Pergunto quem sou. À Água. Ao rio, às sereias, ao mar. E digo-lhe: Queria ter a tua pureza e o teu rumo. Por vezes, gostava de saber onde vou. Ela fala. Responde. Muitos não ouviriam o seu canto. Mas eu ouço. "Tens em ti a pureza, tens em ti o rumo". E eu sei que sim. Que é verdade. Danço. Ao redor da fogueira. Pergunto quem sou.

A fogueira. Pagã. Quente. Vida. Morte. Intervalo. Chama. Cinza. Gémea, dançando connosco esta valsa sem compasso, nem tempo, nem passos pensados. Iluminando os nossos passos e as nossas danças na floresta.

Pergunto quem sou. Sem palavras. Corpo. Paixão. Dar e receber. Sentir. Pergunto quem sou. Ao Fogo. Aos dragões. Às labaredas. E digo-lhe: Queria ter a tua força. A tua intensidade. Por vezes, gostava de ser dona de mim. Ele fala. Responde. A sua voz seria incompreensível para muitos. Mas eu ouço. "A chama mais forte brilha dentro e não se vê. Mas está.", acredita. E eu sei que sim. Que é verdade. Danço. Ao redor da fogueira. Pergunto quem sou.

O chão. Pagão. Firme. Rochoso. Feito de grãos compactos. Sob os pés. Sob a Lua. Sob a fogueira. Recebe-nos os passos. Dá-nos o solo sobre o qual traçamos as linhas de sonho. Permanece. Fica por nós e pelas nossas danças na floresta.

Pergunto quem sou. Sem palavras. Gesto. Silhueta. Sombra de mim e sobre do que antes fui. Pergunto quem sou. À Terra. Aos elfos. Aos grãos de areia. E digo-lhe: Às vezes sou como tu. Mas queria a tua estabilidade. A força de ser pisada sem ceder. Ela fala. Ninguém a ouve. Eu escuto. "Não há força que não tenhas nem firmeza que te falte. És como eu". E eu sei que sim. Que é verdade. Danço. Ao redor da fogueira. Pergunto quem sou.

Quem sou? Sou o Ar. Sou o Fogo. Sou a Água. Sou a Terra. Anciã de espírito. Donzela de idade. Pagã como elas. Livre como elas. Dançando, descalça, ao redor da fogueira. Quem sou? Não sei. Não me conheço. Vou-me descobrindo, aos poucos, nestas danças na floresta.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Com a saudade



Um aperto no peito no despontar do dia. E uma mágoa que nasce no abrir dos olhos.
Hoje acordei com a saudade. Uma saudade sóbria e sem sentido. Acordei com saudade do caos, da dor. Acordei com saudade das palavras duras, despidas, atiradas ao ar como punhais. Acordei com saudade das lágrimas e do som dos silêncios a permear a quietude dos gritos.
Hoje acordei com a saudade.
Dei por mim à procura, pela casa, de algo que pudesse trazer de volta o caótico de ti. Procurei nas gavetas e nas prateleiras. Folheei os livros, esperando que caísse, de dentro deles, um pedaço concreto que me fizesse sentir mais perto de ti. Nas gavetas, somente roupa. Nas prateleiras, somente pó. Nos livros, uma sabedoria ancestral que nada tem de tua.
Procurei na despensa, debaixo da cama, dentro dos baús. Procurei neles palavras por dizer, fragmentos de um nós rasgado, queimado, reduzido a poeira.
Hoje acordei com a saudade.
Uma saudade louca. Uma saudade consciente. Saudade do sofrimento, da amargura, da mentira que nos destruiu e de todas as outras.
Procurei pela casa. Procurei nas rachas das paredes, debaixo do colchão, dentro da caixa do correio e da máquina de lavar. Procurei por instantes perdidos. Aqueles que planeámos e esquecemos como se fossem um "para sempre" qualquer.
Procurei nos frascos, sob os tapetes, na gaveta dos medicamentos. Procurei pela mais pequena nuance de demência. Pela sobra. Pela poeira de estrelas de nós.
E, sem encontrar mais do que vazios, enterrei a cabeça na almofada para encontrar o teu cheiro. O teu perfume tem o doce da mentira. O amadeirado da traição. Um travo a desgosto. Mas ainda é o teu cheiro. E acordei com a saudade.
Tento encontrar algo de bom nesse passado que nos pertenceu. Talvez ainda acredite. Talvez porque não queira ser a louca que sente falta de sofrer. Tento apanhar memórias, como quem apanha borboletas. Mas a felicidade é poeira. Passa por entre os espaços da rede, deixando apenas o concreto de tudo o que não deve deixar saudades.
Mas, subitamente, a dor não parece dor. A mágoa não parece mágoa. A mentira não parece mentira. Tudo parece nada. Tudo se oculta na saudade. E a saudade insiste: insiste que te quer. Insiste que a dor e a mágoa moram na cama vazia onde acordo. Insiste que o sofrimento é a única mentira e que a digo a mim mesma quando penso estar melhor sem ti.
Tento mergulhar na banheira. Suster a respiração. Lembrar como me sentia quando me sufocavas. Lembrar como era não poder falar, nem respirar, nem ser eu...
A saudade insiste. Pergunta para quem vou falar agora, de qualquer forma. Pergunta se vale a pena respirar sem ti. Pergunta quem sou, agora que não estás.
Enlouqueço. Acordei com a saudade. Saudade do caos plantado na minha alma pela caridade das tuas mãos.
E vou perguntando se é loucura ou masoquismo esta vontade de encontrar até o pior de nós por entre a mobília da casa.
Acordava contigo. Para sofrer. Para sentir o peso do mundo nos ombros. Para sentir a alma fragmentada. Para ver o coração estilhaçar, esmagado sob o teu peso.
Hoje acordei com a saudade... saudade de acordar contigo. Saudade de acordar com o caos que trazias para a nossa casa e a nossa vida.
Acordei para a loucura. E não há nada teu entre as páginas dos livros.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 1 de setembro de 2015

É



É na promessa quebrada,
na curva da estrada
que fere o olhar.
É na alma macerada
de quem não diz nada
mas fica a chorar.

No momento sem aviso,
nesse improviso
de ir e não voltar.
É no segundo conciso
em que o paraíso
decide mudar.

É no estender de uma mão,
no toque sem chão
que teima em quebrar.
É no eterno senão
e tantos virão
para o confirmar.

É no adeus, na demora,
no que fica agora:
saudade a queimar.
É no que fica de fora,
que reza e implora
sem ninguém escutar.

É no que fica em final,
triste e desigual,
sem ninguém notar.
Na chegada triunfal
de um amor de sal
que morreu no mar.

É onde vive esta gente
de rosto dormente,
sem pão pra trincar.
É no olhar indolente,
pobreza inocente
que 'inda tenta dar.

Eis onde mora o meu povo,
sem nada de novo
para se agarrar,
preso ao passado
onde 'inda é narrado
um sonho d' encantar.

Eis onde fica o lugar
que insiste em ficar
preso ao que nem sente.
Aqui, quem tenta ficar,
sabe que o luar
é tecto de gente.

É na esmola caída
que se compra a vida
de quem quer morrer.
Beco sem saída
onde, entristecida,
eu vivo a escrever.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet