quarta-feira, 24 de abril de 2019

Tu e eu




Eu não sei se tu e eu vamos dar certo. Ainda que gostemos de olhar o mesmo céu e encontremos sempre a mesma estrela, por entre a imensidão. Ainda que fechemos os olhos para um desejo mudo e o desejo ressoe igual no nosso silêncio. Eu não sei se tu e eu vamos dar certo. Não posso oferecer-te certezas. Não quero criar-te ilusões.

Posso dizer-te que, mulher de paixões ardentes e intemporais, levei sempre um segundo a apaixonar-me para a vida. Foi assim com todos os outros. Contigo não. Demorei a amar-te, talvez porque conheça bem demais os teus defeitos. Ou talvez porque, no fundo, me irrite um pouco a arrogância cultivada no que sei que são as tuas qualidades. Ou até porque sei que nunca sabes o que queres. E sempre tive medo que, quando te quisesse, não me quisesses de volta. Nem que fosse só para destoar. Ou para me contrariares.

Demorei a amar-te. Quebrada e desperta dos sonhos que em tempos me tinham movido, eu tinha medo de te amar e de descobrir que não havia nada para amar em ti. E de ficar mais só. Eternamente só. Porque a solidão já era um nome amigo de outros tempos. Que deixei. E, de alguma forma, era melhor ter-te numa dimensão menor do que não te ter de todo.

Tu tens tanto para amar! Tanto! O tempo que me demorou o amor é justamente o que passo agora, diariamente, a questionar como não o vi. Amo-te. Quero-te. Custa-me a imaginar o tempo em que vivi tão perto de ti e tão longe deste sentimento. Mas, ainda assim, não leves a mal. Não posso. Não posso dizer que vai ser sempre assim. Eu não sei se tu e eu vamos dar certo.

Claro, eu sei que gostamos de dormir debaixo das mesmas camadas de roupa. E sei que gostamos de o fazer despidas de pudor e de tabus. Sei que gostamos de falar sobre sexualidade e género. Que gostamos de gritar sobre as nossas opiniões, como se marchássemos pelos direitos da equidade dentro das paredes do quarto. Sei que gostamos de cozinhar. E que somos um bocado irrequietas e desintegradas. Amamos odiar o mundo juntas. E defender o mundo juntas. Mas a dois. Porque nos assusta, em medida quase igual, a ideia do pódio enunciativo das nossas ideias.

Eu gosto de escrever e tu gostas de ler. Também escreves e também te leio. Achamos, tu e eu, que literatura e arte são conceitos irmãos como literatura e vendas nunca poderão ser. E, por isso mesmo, talvez estejamos condenadas ao anonimato. Agradar aos outros não faz muito parte de nós. Tão parecidas e tão diferentes de tudo o resto.

Percebo bem que queres que dê certo. Agora que finalmente encontrámos um espaço para nós, sem outras vozes nem outros entraves. Eu também quero. Quero estender este amor como tapete até ao fim da vida e fazer sobre ele o desfile da eternidade. Mas, meu amor, eu não sei se tu e eu vamos dar certo.

Fiquemos assim. Presas na ideia do eterno agora do reflexo. Amo-te. Amas-me. Não sei se para sempre. Mas agora. E o que é o agora, senão uma eternidade presente? O que é o agora senão o lugar onde tu e eu podemos dar certo?

Eu sei. Sei que tu e eu somos um nós feito de carne e reflexo. Tão unidas num só espaço que, quem olha, me vê só. Dizem-me para seguir porque não vêem. Mas estás aqui. E demorei a amar-te. Amar fora de mim impediu-me sempre de te amar. Agora não. Quero amar-te a ti. Que tens o meu nome. O meu corpo. A minha aparência.

Como nunca te tinha amado, não posso dizer que tu e eu vamos dar certo. Mas, se nos destina o mundo que sejamos unas até ao fim da vida... o melhor é tentar.

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terça-feira, 16 de abril de 2019

Palavras que ofendem

Street Artist: FRAc // Fotografia de: Ricardo Barriga


Não é necessariamente verdade que eu não tenha medo das palavras ou que elas não me ofendam.

Simplesmente, palavras como merda, foda-se e caralho não me ofendem. Já palavras como violência, dor, fome, sede, pobreza… essas ofendem-me. Porquê? Porque eu entendo a necessidade de um foda-se quando se bate com o mindinho na esquina de um móvel. E entendo a necessidade do caralho quando alguém está a ser chato. E entendo a necessidade da merda que, além de necessidade fisiológica, é ainda um forte argumento social de uso bambamente colocado no aceitável.

O que eu não entendo é como é que ainda morrem mulheres às mãos dos maridos. O que não entendo é como é que existem pessoas a morrer de sede, quando eu tomo banho com água potável. O que eu não entendo é como nos banqueteamos sem pensamento pesado na fome alheia. O que eu não entendo é como alguns dormem à noite, depois de roubarem até as estrelas a quem já não tem teto.

Eu ofendo-me com palavras, como toda a gente! Mas não com as asneiras mais ou menos fortes. Essas são as palavras com as quais convivo pacatamente. Sem medo delas nem do seu uso. Nem dos preconceitos e normas sociais que as exilam. Mas ofende-me. Ofende-me a palavra purismo disfarçada de pudor. Ofende-me a palavra ignorância disfarçada de educação. Ofende-me globalmente a falsidade. E ofendem-me pessoas de palavras caras e sem impropérios a gritar a plenos pulmões ideologias vagas e vazias que deixam milhares de milhão na merda com os seus palavrões na ponta da língua. Não têm dicionários melhores nem vida que lhes permita expressões mais suaves. O mundo roubou-lhes até as palavras.

Não me ofendem as asneiras. Ofende-me o universo rico - literalmente rico - de palavras como corrupção, ganância, ostentação e crueldade. Ofende-me porque cria fissuras em peito de gente que, como eu, dentro de si, tem mais do que carne e osso. E por isso sofre e padece e morre.

Também não tenho medo da morte. Desculpem. Eu sei que devia ser feita da mesma matéria que edifica exércitos consonantes de pessoas programadas para anuir como os cachorrinhos de brincar das bagageiras dos automóveis. Mas eu não sou os outros. Já dizia a minha mãe. Tu não és os outros. E não.

Talvez por isso, tal como não me ofendem os impropérios, também não tenho medo da morte. Depois de tudo o que a sociedade edificou, na sua visão puritana, proibindo sexo e asneiras e outra centena de coisas inofensivas; depois de tanta violência fortuita e de tantas histórias mal contadas onde são sempre os mesmos que perdem os direitos; depois de tudo, parece-me que a morte é só uma espécie de poema romântico, cantado na voz de um Deus que a sociedade não honra porque não conhece. E não tenho medo dela, nem sinto que me ofenda. Pelo contrário, sinto que me entende.

As pessoas lutam contra as palavras porque é fácil. As palavras não ripostam. Pô-las de lado, condená-las à difamação, proibi-las, censurá-las, pisá-las e mal tratá-las não fará com que elas se revoltem e nos ataquem também. As pessoas lutam contra as palavras porque é fácil. Mas contra as palavras erradas. Porque, se fosse contra as certas, havia de se pisar calos de gente, de se derrubar pedestais, de se realinhar as lógicas do mundo. E as pessoas, que já têm tanto medo das palavras, têm ainda mais medo dessas pessoas que sobem aos pedestais e pregam sabedorias de cloaca.

Não é necessariamente verdade que eu não tenha medo das palavras ou que elas não me ofendam. Mas não me ofendem os impropérios. Ofendem-me palavras que ferem na carne. E palavras que moem a alma.

Sofro mais às mãos de quem sorri e fala caro em época de campanha eleitoral do com a gente que me manda para o outro lado com recurso às “palavras proibidas”. Então, não é porque eu não tenha medo das palavras ou porque elas não me ofendam; é porque compreendo mais e melhor que as palavras são o fruto e o problema reside na raiz. Há palavras caras que nos destroem. E só se dizem porque o fertilizante que se usa é justamente a merda que a sociedade faz e continua a fazer, calando o que deve ser dito e dizendo só o que é politicamente correto.




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terça-feira, 9 de abril de 2019

E o amor que se...



Há neve nos recantos das praias dos meus pensamentos. Às vezes, imagino que é areia. Enregelam-me os pés nus, mas não faz mal. O frio é uma espécie de Inferno, tolhido na pele. Lembra que, algures, ainda existe uma capacidade moribunda de sentir. E talvez seja o melhor tipo de dor, porque chega aos ossos mas não à alma.

Vi muitos pores-do-sol contigo nesta praia. A do meu pensamento. Até teres metido o sol na mala e ido embora. Deixando-me as noites e a mágoa. A neve e a névoa. Voltaste para buscar a névoa, depois. Fica bem nas fotografias. Eu entendo.

Às vezes, quando caminho pelos destroços do que foi a minha cidade interna. Essa que culmina na praia do meu pensamento. E descubro que as ruínas foram violadas por bandidos selvagens. Há, pintadas nas paredes, pinturas rupestres que contam a história animalesca de um amor que morreu.

Como o amor não morre, alguém diz: e o amor que se foda. E eu espero bem que tenha razão. Que o amor se foda. E que, com ele, se fodam todos os sentimentos que ficaram por ele se ter, entretanto, provado unilateral e inútil. Que ele encontre o caminho certo para fazer isso mesmo: para se foder. Enterrado debaixo de toda essa neve que foi areia. Macerado debaixo de toda essa noite que foi pôr-do-sol.

Estou farta do amor. Cansada do amor. Tenho vontade de começar a despir camadas até o conseguir tirar de mim. Faço-o. Dispo camadas de derme e epiderme e músculo e osso. Dispo os ossos do tutano e o tutano de todas as suas estruturas adiposas. Dispo veias e artérias. E órgãos vitais. E o amor lá continua, sem  que possa despi-lo. Sem eu saber bem onde se aloja ou como consegue sobreviver com tão pouco.

Merda. Sou toda feita de amor. Queria ser mais carne e razão. Mas não. Sou toda amor. Sou toda feita de amor a dizer “e o amor que se foda”. E talvez seja por isso que quem se fode sempre sou eu.

Mas dói. O caminho de pés enregelados pela praia do meu pensamento, onde estruturas rochosas de memória relembram dias que não regressam. O caminho de pele seca pelas ruínas do que um dia foi um lar e agora é uma casa sem portas nem janelas, construída com silvas e correntes de ar.

O tempo passa. Os ponteiros da memória andam para trás. Os ponteiros da vida demoram duas horas a passar um décimo de segundo. Eu sufoco. Lá, dentro dessa cidade em ruínas e dessa praia de neve. Sufoco.

Cá fora, a moldura. Um sorriso. Está tudo bem. E contigo? Vazio, vazio, vazio. Espaços vazios numa manifestação eterna de felicidade. Está tudo bem. Mais um sorriso. Só quero desligar. Quero parar. Quero ir. E o amor que se…







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terça-feira, 2 de abril de 2019

Dia das mentiras


Foto de Marina Ferraz | Modelo: Vanessa Oliveira


1 de Abril de 2019


Hoje parece-me um bom dia para dizer que não te amo. Não te amo. Podes dormir em paz esta noite. Não te amo. Podes abraçar outro corpo sem medo de teres cultivado um jardim que já não regas. Não te amo. Hoje parece-me um bom dia para dizer que não te amo.

O pássaro de asas cortadas que é o amor já não me mora no peito. Voou. Mesmo sem asas. Voou usando pós de dedaleira. Preparados com afinco num almofariz qualquer. Voou. E, assim de repente, sem esse pássaro moribundo e fétido na minha alma, eu descobri. Hoje. Não te amo. E é um dia excelente para to dizer. Que não te amo. Já não.

Hoje parece-me um bom dia para dizer que sou feliz. Sou feliz. Podes avançar pelas horas ciente do meu contentamento. Sou feliz. Podes sussurrar, em ouvidos alheios, palavras de amor, sem julgares que há lágrimas no lugar dos poemas dos meus olhos. Sou feliz. Hoje parece-me um bom dia para dizer que sou feliz.

O pássaro de asas abertas que é a felicidade pousou no meu ombro. Pousou na minha mão. Deu pequenas bicadas de entendimento na minha pele quente. E fez a noite mais brilhante. O meu sorriso mais puro. Pousando, disse-me que era livre e queria ficar. E eu disse-lhe. Fica, se quiseres. E ele quis. E foi assim, de repente, com esse pássaro livre na minha mão, que eu descobri. Hoje. Sou feliz. E é um dia excelente para to dizer. Que sou feliz. Agora sou.

Hoje, parece-me um bom dia para dizer que não quero desaparecer. Não quero desaparecer. Podes ir, descansado, sabendo que não passo o tempo da minha vida a desejar que ela acabe. Não quero desaparecer. Podes rir, de olhos semicerrados fixos num semblante que não seja meu, esquecendo-me até no permeio do riso. Não quero desaparecer. Hoje parece-me um bom dia para dizer que não quero desaparecer.

O pássaro de olhos vermelhos que é a esperança veio sentar-se aos meus pés, na calçada. Dei-lhe pequenos sóis cadentes em grãos de milho. E ele congratulou-se com a chuva de ouro alado que me fugia das mãos. Disse-me que ia ser um bom dia e que ia ficar tudo bem. Que também do meu céu cairiam sóis, um dia. E eu acreditei. Foi assim, de repente, com esse pássaro inebriado na luz do milho, que eu descobri. Hoje. Não quero desaparecer. E é um excelente dia para to dizer. Que não quero desaparecer. Agora não.

Hoje tenho muitas coisas para te dizer que sei que tu queres ouvir. Porque hoje é um dia em que a patranha cai bem e não causa alarde.

Mas tu sabes. Talvez ninguém o saiba como tu. Para ti, durante anos, este dia repetiu-se. Ciclo redundante, circular, que terminava e recomeçava nos teus lábios, cada vez que dizias que me amavas.

Por isso, deixa-me aproveitá-lo. O dia. Para te dizer que não te amo. Que sou feliz. Que não quero desaparecer.

Não te amo.

Sou feliz.

Não quero desaparecer.

Deixa-me dizer-te hoje.

Amanhã não posso.









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