quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Cautela e Caldo de Galinha



O meu bisavô costumava dizê-lo. Cautela e caldo de galinha nunca fez mal a ninguém. Disse-o, provavelmente, porque o seu pai lho dizia. E lhe bebeu as palavras, juntamente com o caldo e a cautela.
No tempo do meu bisavô era tudo diferente. Até a galinha, que não nascia, ainda, depenada e encolhida nas cuvetes de supermercado. Até o caldo, que era rico e aromático, parco de sal mas repleto de sabores do campo. Até a cautela, que se estendia por ruas onde não passavam tantos carros como maus-olhados. Mas era um conselho intemporal, deixado pelo seu pai, que o ouvira do pai dele. E que se repetiu até me chegar. Servido com requinte num prato dourado de muitos passados, na forma de cautela e de caldo de galinha.
Foi um dito que, de tão intrinsecamente nosso, nos moldou ações e nos definiu rumos. Às vezes de maneira espalhafatosa, evidente; mas outras de forma subtil e amena. Foi um dito que se estendeu nos limites murados das nossas peles e nos tornou monstros entre os humanos, cuja cautela é parca e o caldo de galinha não serve.
Na intempestividade das almas modernas, ter cautela já não significa não ir. Porque seria impossível a resistência perante a impulsão audaciosa da aventura e da concretização. Significa ir, por vezes devagar, por vezes a correr. E aceitar os trilhos como caminho, sabendo-os sinuosos e cheios de pedras e abismos. E abraçar essas pedras e esses abismos, até que sejam parte de nós. Fazer deles amigos de longa data, sabendo que é entre os homens e as mulheres que se encontram as barreiras. E acautelando, por isso mesmo, os contactos humanos.
Se nos fere a alma o encontro com a desonestidade e a pobreza de espírito, logo surge um novo acordo eminente. O de aquecer por dentro o que se resguarda longe do olhar alheio, com palavras de alento e caldos de galinha. E neles se curam mágoas. Como se ondeasse, no líquido turvo da tigela, também o conselho que o meu bisavô deu à minha avó e que ela me deu: "Cautela e caldo de galinha nunca fez mal a ninguém".
Levo o conselho comigo. Nas minhas aventuras. Até ao lugar louco onde a cautela, no seu sentido mais lato, não me permitiria chegar. E, ao levá-la, assumo o risco consciente de que posso ficar doente por entre estes mundos, repletos de gente que não teve um bisavô de sábio conselho. Mas vou. Com cautela mas sem medo. Porque é indo que me faço digna das palavras que me chegaram.
E se, no caminho, pedras, abismos ou gentes, cortarem em pedaços a chama da minha intencionalidade e a ferida alastrar pelas ramificações da alma? – perguntaria alguém, em nome da cautela. Sorrio. Não será nada que a cautela e um caldo de galinha não curem. E, se não curarem… também nunca fizeram mal a ninguém.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 17 de outubro de 2017

As amigas



É volátil. E algo fútil. E totalmente despropositado. Como crianças de infantário, que tendo acesso a trinta bolas azuis, querem sempre aquela que o amiguinho tem na mão. Talvez porque já tenha da sua saliva e das suas impressões digitais. Ou talvez porque dê prazer que o amiguinho não tenha aquela bola azul. Ou, quem sabe, porque o apelo não esteja na bola azul mas nas mãos que a seguram. Lançada ao ar, caindo no centro de todas as bolas azuis, talvez nem se saiba qual era aquela que nos despertava desejo. Ou talvez se saiba, mas já será apenas uma bola, sem nenhum traço de apelo. Acontece. Quando é volátil. E fútil. E totalmente despropositado.
Quando as bolas azuis são olhos e têm partilhas sociais; acompanhadas de uma enunciação do mundo perfeito, da realidade perfeita, do emprego perfeito, do dia perfeito… há um apelo mudo na figura estática e na partilha das palavras. Impele. Apetece. Como um fruto de verão, acabado de arrancar da árvore, fique ferido o ramo que a sustenta ou não.
Toda a gente tem a mais elevada moral. Que se esgota e cuja quebra se justifica na ambiguidade do “tudo por amor”. Mas que amor? Como é fácil amar o que não existe. O que não se conhece. O que não se sabe. É nas lacunas, onde mora só o desconhecido, que se constroem esses amores. Voláteis e fúteis. E despropositados. Com um toque de criança de infantário, que quer aquela bola azul porque sabe que a outra criança a tem.
As melhores pessoas do mundo são as que conhecemos mal. E há uma paixão que é fogo nesse desconhecido. Mas no mergulho em profundidade até ao negro mais escuro de todos os negros da alma, aí reside o amor. Conhecer alguém na debilidade de todos os seus defeitos e sentir um fogo de lareira acesa, alimentada a óleos caros e lenha de pinho, sem fazer contas aos gastos.
E há quem seja. Volátil. Fútil. Totalmente despropositado. Há quem queira uma bola azul que é uma pessoa nas mãos de outra pessoa que, sabe-se lá se não foi ao inferno e voltou. Mas, no conhecimento, algo ambíguo e incompleto, de uma história que é metade da metade da metade que a constrói, parece que o mundo não só é plano, como inclinado para o lado da figura de afeto onde se soma, não a perfeição da perfeição mas a perfeição do desconhecido.
Estima-se que, neste momento, existam, no mundo, 101,8 homens para cada 100 mulheres. Certo que uma percentagem deles serão homossexuais. Mas uma percentagem delas também o será. O que significa, em grosso modo, que existe, por aí, um homem para estas pessoas que insistem na bola azul que já tem mãos em seu redor. Para elas. As amigas.
E, embora seja volátil, fútil, despropositado, há três corações. Quatro. Cinco. Porque se pensa sempre que são casos isolados e nunca são. Batem mil corações na mesma tristeza. E ela também não faz sentido nenhum. Porque se sofre de um mal que não é.
Palavras são só palavras. Faço uso delas. Às vezes como armas. Não sou perfeita. Nunca vou ser perfeita. Mas sou o corpo que se envolve no fim da noite. E o café pela manhã. E o primeiro passo de ajuda na dificuldade. Moderadora de dores. Agente da tomada de decisões e, às vezes, carrasco de força onde só há debilidade. Propostas são só propostas. Palavras são só palavras. E, tirando as que eu digo (ou escrevo), não dizem nada de mim. Dizem muito de quem as esparrama, preto no branco. Dizem muito sobre o que a amizade não é. Nem o amor. Dizem muito sobre ser-se volátil. E fútil. E despropositada.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 10 de outubro de 2017

Nos teus termos



Para a minha companheira Ali,

No primeiro dia, esperavas junto à porta. E deixaste que me aproximasse de ti. Que te depositasse um toque de calor entre as orelhas. Deixaste que o fizesse e, altivamente, levantaste-te com calma, viraste costas, mudaste de divisão.
Estipulámos os termos: no centro das paredes de uma casa que era tua – e ainda não minha – eras tu que ditavas as regras. Cabia-me cumpri-las. E cumpri.
Habituei-me a povoar a sala. Com uma manta sobre as pernas friorentas. E outra ao lado. E não te deitavas ao meu lado. Deitavas-te lá, na outra ponta do sofá. E depois no meio do sofá. Todos os dias. Um bocadinho mais perto. Sempre ali. Nos teus termos. Até que, um dia, encostando o focinho contra a minha perna, te senti os tremores na delonga da felicidade. E fui depositando festas no teu lombo, à medida que te contorcias. Havia um sorriso nos teus olhos.
Nunca precisámos de palavras para nos entendermos. Do teu mau feitio eu li, não só a personalidade intensa, como também a doença que acabaria por se confirmar. Mas tínhamos um pacto, tu e eu, o pacto de calar muitas mágoas com sorrisos e goluseimas de frango ou peixe.
Não eras fácil. Muito longe disso. Ter a casa à minha maneira contigo por perto era impossível. Porquê? Porque não era a minha casa. Era a tua. Nos teus termos. E, de alguma forma, era bom estar em tua casa e servir um pouco destes interesses mal humorados que sempre pagavas, em medidas de amor, de carinho e de companheirismo.
Ficámos só as duas muitas vezes, olhando pelas janelas. Contando flores e partilhando horas como se fossem pequenos tesouros. E, quando não estavas ao meu lado, ficava a ouvir-te o tiquetaquear dos passos pela casa. Um som que fez de banda sonora a tantos e tantos momentos da vida.
Pela manhã, trepavas para as costas do teu dono. Aninhavas-te ali. Uma imagem de doçura, por entre a cama desfeita, com ele bebendo o café e contigo a dizeres bom dia. E, olhando nos meus olhos, semicerravas os teus e abrias de novo. Um “gosto de ti” em linguagem sem voz, que eu repetia, em silêncio.
Foi sempre nos teus termos. E, por isso, nem nunca gritaste por aí que me adoravas, nem eu a ti. Habituámo-nos, simplesmente, a senti-lo, partilhando um segredo. No nosso mau feitio, nunca achámos que alguém tivesse algo a ver com isso.
Ficaste mais doente. Levei-te ao médico e ele tirou-te a doença. E saí de lá a sorrir, na perspetiva de ter a tua companhia por muitos e muitos anos. Mas, não contente com o dano já causado, esse tumor estendeu os dedos até que eles te preenchessem por dentro. E, de súbito, ouvir-te respirar doía como facas no coração. Confirmámos as suspeitas e soubemos. Não tínhamos muito tempo na tua companhia.
Eras forte e sabias o que querias. Ditaste sempre as normas, na casa que era tua. Eras guerreira e tinhas nascido para vencer. Não pude ver-te perder essa batalha contra a doença. E decidi, porque te conheço, cumprir o desejo dos olhos que pediam para não sofrer mais.
Fica-me uma casa vazia. Sem o tiquetaquear das tuas patinhas pelo soalho. Sem o pedido, quase mudo, pelas goluseimas. Fica-me uma casa sem dono. Uma casa na qual as normas adormeceram e as dúvidas se somam, cantando na voz da ausência.
Ficam-me a saudade, em dois beijos depositados sobre o pelo e com as palavras “vai ficar tudo bem, princesa”. Disse-as. Acreditando nelas. E incapaz de olhar para ti, com medo de ceder ao egoísmo que não me tolerarias. Deixei-te ir. Vitoriosa e nos teus termos. Não podia ser de outra maneira.
Fico à tua espera, na dimensão astral. Adoro-te e quero crer que, todos os dias, te vais sentar comigo no sofá. Cada dia, um bocadinho mais perto. Até que a doença me leve também para eu viver pela eternidade. Ao teu lado. Depositando um toque de calor entre as tuas orelhas. Se me deres essa honra. Porque foi e há-de ser sempre tudo nos teus termos.

Até já, Ali



Marina Ferraz


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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Um beijo antes de dormir



Para a minha avó

Batem as nove. Bate a saudade. Bate o desejo de ouvir a tua voz. Um bater incompreensível de ideias. Esbatidas mas constantes. No bater do ponteiro dos minutos e das horas. No bater das nove.
Bate o cansaço. E a vontade de saber que estás bem. Bate o coração. Compassado. Descompassado. Cheio de amor. Batem, no bater das nove.
Bate à porta a noite que se queda. E cai, com ela, um sol que me é destino e passagem, no nascer da lua. Conforta-me a ideia da lua, que é a mesma na distância entre nós, e nos faz presença. Quando bate. A saudade. Pelas nove.
Batem as nove. Bate a saudade. Bate o desejo de ouvir a tua voz. Já se faz noite. Já se faz hora. Toca o sinal da recolha. Toca uma música na rádio. Toca o sino na distância. A anunciar. O toque do amor. Que ecoa nas entrelinhas do nosso encantamento. Que ecoa na vontade da troca de palavras. Batem as nove. Toca o sino. E o telefone também.
Toca o telefone. Nele, a tua voz traz o bater do carinho, feito aconchego. As tuas palavras são cobertores bem puxados junto às orelhas e camas preparadas com cautela. E, na tua voz, toca-me, com um saudosismo inerente, a mão que me afaga a vida e me dá alento para suportar a noite que queda e o dia que vem a seguir. Toca o telefone e tocas-me, com as pontas dos dedos da voz. Há traços de canto na melodia das palavras que me dedicas. Todas as noites. No bater das nove.
Uma canção de embalar. Vem em forma de rotina. No bater das nove. No toque do telefone. Todos os dias. Quando me bate a saudade. E me acautelas o medo dos mostrengos que se escondem nas sombras do meu desassossego. Há amor na tua voz. E ele é luz. E não há sombras quando falas comigo.
Batem as nove. Bate a saudade. Tocas-me na distância da chamada. E ficas perto. Até que o calor do abraço pensado se faz gente e me envolve, mesmo longe. Há um calor que me adentra. Vem de ti. No bater das nove. E fica a rondar, noite fora, abençoando-me as madrugadas.
Nos dias bons. Nos dias maus. Nos dias. Bate. Pelas nove. Esta vontade de te sentir. E vens. Religiosamente. Com a tua voz. E o teu amor. E o teu carinho. Cheia de tudo o que falta ao mundo. Fazes parar o relógio na ternura da tua voz. Ficas próxima, por alguns minutos, na presença quente das palavras. Abraças-me, assim, até aos ossos, até à alma, até ao coração. E ficas dentro dele. Permanentemente. A tempo inteiro. Gosto de te ter lá.
É um amor que me bate no peito o dia todo. Concretizando-se, todos os dias. Com um beijo antes de dormir. No bater das nove.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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domingo, 1 de outubro de 2017

Açúcar no café amargo



Para o meu avô



Ainda me sento contigo à mesa. Puxamos os dois para o canto a toalha que nunca nos fez a vontade e a fruteira. E sentamo-nos. Lado a lado. A toalha é, hoje, a ideia da morte. E a fruteira é a sanidade. Mas não faz mal. Sentamo-nos na mesa do meu pensamento. E continuamos a conversa que deixámos a meio ontem. Sobre tudo e nada. Um pouco mais sobre tudo. Porque não há espaços para vazios quando estamos juntos.
Queres saber de mim. Eu não quero falar sobre mim. E faço café. Em vez de falar. Também queres um. E eu sirvo-to com agrado. Levo o açucareiro para a mesa. Depositas três colheres bem cheias, que fazem estremecer a espuma ligeira do topo, até que disperse. E ficas à espera que assente no fundo o açúcar e que eu te responda à pergunta. Saberás, talvez, a resposta melhor do que ninguém. Bebemos o café. Nunca gostei de falar de mim. Mas tu entendes. Eu saio a alguém. E o café aquece as almas.
De chávenas na mão, olhamos para o líquido. Procuramos respostas. E vejo que levas aos lábios o amargo do café que não mexeste. Mexo o meu mas, neste dia, sabe-me também amargo. Sabe a saudade. Uma saudade intolerante e ausente que tem, no fundo, por mexer, três colheres cheias de açúcar.
Perguntei-te, certa vez, por que punhas tanto açúcar no café, se mal o mexias e o bebias amargo. Respondeste que guardavas o melhor para o fim. Assim, poeta do dia-a-dia, com toda a simplicidade, ensinaste-me para a vida. Primeiro o amargo, depois o doce. Como o trabalho e o sucesso. O esforço e a conquista. A luta e a concretização. A saudade e o reencontro.
Hoje sento-me contigo na mesa do meu pensamento. Puxamos para o lado a ideia da morte e a sanidade. Damos as mãos em silêncio. E, para que as respostas sejam dadas pelos olhos que se quedam sempre na ideia da despedida, eu vou pôr a cafeteira ao lume. E sirvo duas chávenas de café. Uma para ti. Uma para mim.
Exagero no açúcar no café. Mal o mexo. Deixo o melhor para o fim. Primeiro bebo o café. Depois o açúcar. E, no finzinho, bebo a memória que me prende a ti. No final, entre amargo e doce e eternidade, o café sabe a amor.
E é um amor que nos deixa sentar. Na mesa. Esta mesa. Nela, puxamos para o lado a ideia da morte, em forma de toalha. E a sanidade, em forma de fruteira. Partilhamos este momento, repetindo-o, casualmente, sempre que a saudade aperta. E bebemos. Primeiro o café. Depois o açúcar. Depois o amor. Porquê? Porque guardamos o melhor para o fim. E o melhor é isto. Isto que ninguém sabe. Mas que é quente e doce. E meu. E teu. E que te mantém vivo e presente. Explicando-me a vida como quem explica o açúcar no café amargo.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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