terça-feira, 26 de março de 2024

Este não é um texto sobre política!

 



Este não é um texto sobre política!

 


Desde pequena que não gosto da palavra “chega”. Chega sempre significou fim. Como quando a minha mãe, fazendo o perigoso uso dos meus dois nomes próprios, esbugalhava os olhos e me dizia “Marina Raquel, já chega!”. E lá se ia a brincadeira, a correria, a defesa acérrima sobre as 1001 razões pelas quais era bom comer gelado antes de jantar.

 

 Ou quando a professora, cansada da balbúrdia e dos papéis a voar pela sala, gritava: “Chega, meninos! Vão ficar aqui a fazer um ditado no intervalo”.

 

A palavra teria, penso eu, um toque mais positivo na canção entoada pela minha avó – que me fazia demasiadas vontades para que essa palavra lhe integrasse o discurso – quando me levava até à Canção de Lisboa. Mas, mesmo aí, “Ai chega, chega, chega, chega ó minha agulha” vinha seguido “afasta, afasta, afasta”, demonstrando também que essa perspetiva de “achego” não seria talvez a cereja no topo de nenhum bolo.

 

Mais tarde, a enunciação meio-tóxica, meio caótica do “para mim, chega”, ditaria o cortar do coração no momento em que ele ainda acreditava, no alvor da juventude, que qualquer apego se deveria transformar em eternidade. Assim, viria novamente a fazer-me desgostar da palavra.

 

Não é só de mim! O próprio dicionário define a “chega” como coloquial forma de repreensão, censura, descompostura... ou combate de bois… confesso que tive de pesquisar esta última e que, de repente, me vi transportada para um futuro próximo, numa assembleia perto de nós…

 

 

Talvez este seja um texto sobre política!

 

Sinto que a palavra chega, quando chega, traz consigo perigo. Traz consigo o fim de liberdades. Traz consigo caos. Traz consigo mágoa. Traz consigo o desfazer dos nós do caminho, onde se permitia que, livremente, as pessoas avançassem para o melhor de si mesmas.

 

Sinto que a palavra cria tensão entre as pessoas. Sinto que as pessoas, perante ela, limitadas pelas grilhetas invisíveis que impedem uma condigna vivência, optam por se atacar umas às outras, em vez de se unirem para atacar o inimigo comum.

 

Sinto que a palavra vai por aí, matando bondade, matando empatia, matando a compreensão e a beleza. Sinto que vai por aí a calar lábios que cedem. Mãos que cedem. Como poderiam ter cedido os meus lábios e as minhas mãos, quando me disseram “já chega de textos políticos”.

 

 

Este é um texto sobre política!

 

Afinal é!

 

É uma merda quando dizemos que uma coisa não é algo… e constatamos, depois, que o seja…

 

Como quando elementos da classe política nos dizem que não são fascistas… mas…

 

 

Agora pensem. É tão fácil mentir!

 

Eu disse. Este não é um texto sobre política. E sim, eu sabia que era!

 

A diferença fundamental? Eu não estou à frente de um país. Não tenho poder para definir as vossas vidas. Não quereria tê-lo, se pudesse.

 

Agora, no desconforto da mentira desvelada, imaginem como será quando ela é grave. Quando ela tem autoridade. Quando ela parte daqueles que respiram o desejo do poder. Quando, mesmo assim, nunca chega…


 Marina Ferraz




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terça-feira, 19 de março de 2024

A história da grande cavalgada



Para o meu pai, 
o declamador de poemas equinos
 

Quatro horas e seis minutos. É este o tempo mínimo estimado pelo GPS para ir de Coimbra ao Algarve. Isto se considerarmos que o destino é Faro. Isto se considerarmos o caminho mais direto. Isto se não houver paragens. Isto em 2024.

 

Mas eu não nasci em 2024. Eu nasci em 1989. Fui criança nos anos 90. Então, num carro, a ida de Coimbra ao Algarve era interminável. Durava, em síntese, o tempo do poema. Esse. “A história da grande cavalgada”.

 

Era com um meio sorriso e depois de nos ter mandado pôr o cinto. Depois de ter lançado um quase impercetível olhar ao espelho retrovisor, para ver como estava a confusão do banco traseiro. Depois de ligar o carro e arrancar. Era por entre o ar meio amuado da minha irmã e as brincadeiras meio tolas do meu irmão, que ele lançava a pergunta: Querem ouvir o poema d’”A grande cavalgada”?

 

Ouvia-se o grito ao meu lado direito e ao meu lado esquerdo. Retumbante “não”. Ouvia-se o suspiro extenso da minha mãe, no lugar do pendura: “oh, por favor, outra vez não”. E eu, ali encaixada no meio de dois adolescentes, dizendo um “sim” inocente, que garantiria uma viagem inteira ao som de “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]” em loop. De Coimbra ao Algarve.

 

 

Um salto da estrada para calçada, sempre que se atravessa. Um poema para cada ocasião. Uma piada desconexa para cada momento sério. Um “não” no começo de cada frase, incluindo aquelas nas quais o conteúdo diz “sim”. Um olhar por cima da haste, quando se usa óculos, sempre que se quer ver algo com maior pormenor. A capacidade de evasão completa no meio de contextos sociais, numa espécie de surdez da mente que tem mais o que fazer do que aturar os outros. A semi-obsessão – talvez sem “semi” – quando há um desafio qualquer de algo que queremos fazer. O embrenhamento nas tarefas. As mãos pequenas, com dedos grossos e curtos. E a culinária. E as histórias contadas e repetidas e contadas outra vez. E a pintura. E a maneira absolutamente incompreensível como poderíamos declamar “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]” durante 450 quilómetros de estrada, encontrando algum tipo de prazer mórbido na irritação dos outros. Eu tenho muito em comum com o declamador das aventuras equinas.

 


São 200 quilómetros possíveis de fazer em pouco mais de duas horas, num carro que não tem bancos traseiros. E vidas que impedem a travessia desse mar de alcatrão tantas vezes quantas gostaríamos. São dias que passam sem ouvir a voz que dizia “catapum catapum catapum catapum [som de cavalo a relinchar]”. São regressos que se acomodam, entre abraços até ao osso e resmunguice nas horas das refeições. É o tempo a ser o tempo, roubando tempo, como se ele não fizesse falta. E são dias em que a recordação pesa porque a presença seria mais importante do que a memória. Porque sabemos que a vida é frágil. Porque tememos que fique apenas memória onde houve presença.

 

Hoje, é Dia do Pai. E poderia escrever o poema da grande cavalgada. Preenchendo o som do trote e do galope com a história do cavaleiro. O cavaleiro que ia e voltava para África. Que voltava trazendo um presente e chocolates belgas. Que foi rede de segurança nas más decisões, para que não se transformassem em mau futuro. Sobre o poeta. Sobre o pintor. Sobre o pescador. Sobre o homem engenhoso e hábil. Sobre o cavaleiro que conduzia, declamando poemas equestres que me faziam rir durante 5 minutos e arrepender durante quase 5 horas.

 

 

Hoje, não posso fazer a jornada que me leva ao cavaleiro. Mas guardo, do poema repetitivo, a voz que sorria. Foi Proust quem o disse: “A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos”. Gosto dos olhos com os quais agora vejo essas viagens. Descubro muitos universos de paciência nessa brincadeira que nos tirava a paciência. Descubro muita dedicação nessa forma de implicação jocosa.

 

E, admito, descubro uma forma perfeita de poder justificar-me com genética sempre que me acusam de ser repetitiva e algo irritante…

 

Mas o ponto não é esse! O ponto é que houve um cavaleiro. E o GPS diz que o tempo mínimo estimado para ir de Coimbra ao Algarve é de quatro horas e seis minutos. Hoje. Nos anos 90 não. Nos anos 90 durava o tempo do poema. Esse. “A história da grande cavalgada”.

 

E… shhhh… pode não parecer, mas era um poema de amor.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 12 de março de 2024

Tu não fazes ideia

 

Lágrima (Pintura a Óleo - Marina Ferraz)

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é. Caminhares, ferida, por entre destroços, a levantar pedaços de concreto, no concreto da mágoa. Teres lágrimas secas a correr no rosto e sede. Encontrares o teu filho desfeito. Veres-lhe as entranhas destacadas. Viveres três mortes numa só, que nunca um filho morre sem que uma mãe morra e sem que a esperança morra também. Implorares a um qualquer Deus, que não importam panteões nesses momentos. Receberes, em resposta, o som de outra explosão. E seguires, porque os pés te arrastam, à espera de seres o próximo cadáver, para que a vida não doa tanto.

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é teres a aliança do casamento a apertar a garganta. As mãos de alguém que te jurou amor. Que comprova o amor em marcas, hematomas no mapa do teu corpo. Acordares com os movimentos possessivos dele, sobre ti. Não te moveres por medo. Ouvires as frases mais duras, as que os filmes censuram e calares. Teres queimaduras e costelas partidas. Sorrires na rua e dizeres que caíste. Que desastrada!

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é estares grávida. Fugires da guerra e seres apanhada na fronteira. Teres o corpo rasgado por soldados cruéis. Armas enfiadas em ti, disparadas dentro de ti, ceifando duas vidas simultâneas no som do riso.

 

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é seres vendida aos 8 anos. Ouvires que o teu nascimento foi punição. Seres vendida, com as tuas irmãs, para que os teus pais e irmãos possam viver. Dares por ti num quarto minúsculo, com grades nas janelas. Veres entrar homens pela porta, para que pagues a dívida da tua estadia e todo o dinheiro investido em ti. Pagares essa dívida toda a vida, até ao gesto de violência que ponha fim à tortura.

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é seres criança e levarem-te para um espaço ritual, cortarem o teu clitóris a sangue frio. Sangrares e sobreviveres, se os Deuses quiserem. Mereceres, na sobrevivência destinada pelos Deuses, o casamento. Seres objeto de depósito do prazer de alguém, parideira dos frutos desse embate corpo a corpo. E só sofreres.

 

 

Tu não fazes ideia.

 

Não fazes ideia de como é pores as chaves entre os dedos e, mesmo assim, não teres chances contra os agressores que povoam a rua. Ires, culpada de todos os males do mundo, pelo mal iluminado do passeio, ouvindo o coração a bater no peito. Teres o encontro fortuito com um grupo embebido de si próprio. Teres as roupas rasgadas e o corpo usado até à exaustão de gentes sem nome. Arrastares-te para casa e escolheres entre o silêncio e as acusações. Puta. O que esperavas, afinal, a essa hora?

 

Tu não fazes ideia.

 

Eu também não faço.

 

Sou feliz porque não sei, não entendo, não consigo imaginar o que sentem essas mulheres. Que privilégio este de ser mulher ocidental, amada, protegida por um qualquer anjo invisível. Que privilégio este de nunca ter sido vítima da guerra, da mutilação, do tráfico, da violação. Que privilégio este de ter direito ao prazer, de ter direito à palavra.

 

Mas também sou feliz porque não faço ideia. E porque, não fazendo ideia, não sou indiferente à ideia de quem faz. E porque posso escrever este texto, destinado a quem, como eu, não faz ideia.

 

Então, este texto não é sobre fazer ideia do que os outros passam. É sobre a necessidade de entendimento sobre o nosso privilégio – do qual muitas vezes, por mera desatenção, também não fazemos ideia – e de saber o papel e a responsabilidade de quem tem voz.

 

Não faço ideia de como seja não ter voz. Aproveito a minha para falar. Não falo porque sei. Falo porque posso. E, se ninguém falar, nada mudará. Jamais.

 

Tu não fazes ideia.

 

Eu não faço ideia.

 

Alguém, algures, sabe exatamente o que eu quero dizer…

 

Não tu.

 

De ti, espero – com a maior honestidade – que nunca faças ideia.


  Marina Ferraz




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terça-feira, 5 de março de 2024

Portugal importa



Portugal importa. Portugal importa! Estamos todos de acordo. Certo?

Portugal importa. Importa mais hoje do que importava há meio século. Importa tanto que a balança comercial está a negativo há mais de 3 décadas. Importa bens. Importa serviços. Máquinas, partes, aparelhos, eletrónicos, alimentação, produtos acabados, talentos…

Importa de Espanha, da Alemanha, de França, de Itália, da Holanda… importa.

 

Dos talentos, destacam-se os profissionais qualificados. Abençoados sejam os que vêm, sem saberem ao que vêm… Falamos de médicos, engenheiros, de ladrilhadores, de técnicos. Toda a gente sabe que há falta de mão-de-obra no país. A mão-de-obra no país já foi de formas diretas e subtis convidada a sair várias vezes. Por gente que nega ter dito o que disse, que sabemos todos que a amnésia é um problema grave e o Alzheimer é uma doença complexa, cujos números permanecem em crescimento... e que ataca particularmente a classe política nacional.

 

Portugal importa. Vemos, nos festivais espalhados pelo país, como importa. Importa arte. E faz muito bem em importar! Devia valorizar de igual forma a arte que se faz por cá, e que só interessa quando convém. Antes que os artistas que se importam com a forma como são tratados façam como nomes incontornáveis da cultura nacional, como Maria João Pires, que é atualmente – desde a renúncia (à qual dramaticamente chamam perda) da nacionalidade portuguesa – uma fabulosa e incontornável pianista brasileira.

 

Portugal importa. E, além de importar, Portugal vende-se. Vinhas infinitas, laranjais algarvios, olivais magníficos… vendem-se para valorizar a economia. E vendido fica o produto-mãe que origina os bens processados que Portugal importa depois. Porque Portugal importa. Mas não se importa o suficiente para apoiar o pequeno agricultor que produz. Não se importa a ponto de tornar sustentável o cuidado com os terrenos e a produção nacional.

 

Valha-nos o fado. Não há registo de que se importem fadistas. Também não há registo de que se importem muito com eles, exceto quando algum prémio de maior impacto é atribuído no estrangeiro. Ah… sim… porque Portugal também importa as opiniões que não tem, dando sucessivamente valor apenas ao que alguém de fora já valorizou!

 

Numa coisa, eu concordo com os nossos políticos: Portugal importa. E ninguém nega que as importações sejam importantes para as dinâmicas comerciais e o desenvolvimento económico. Mas porra. Portugal importa. Muito. Seria melhor, talvez, que se importasse.

 

  Marina Ferraz




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