terça-feira, 13 de setembro de 2022

A direção do vento

 


Escrevi o prefácio da minha história em grãos de poeira. Com letra muito miudinha, como dizia o meu avô. Agarrei-o. Amei-o. Abri a mão. E disse. Voa. Voou.

 

Nunca ninguém o leu. Nem mesmo eu, que o escrevi. Ainda bem!

 

 

 

O vento passou por mim, numa segunda-feira de manhã. Assobiou-me ao ouvido. Pobre tonto. Aposto que não sabia que o piropo era, agora, proibido. Ou talvez soubesse. Mas assobiou à mesma. E, nesse assobio, falou como gente e disse. Escreve-me uma história de amor.

 

Tentei explicar ao vento que o amor já tinha sido gasto em muitas histórias. E mais... que quase nenhuma delas tinha amor por dentro, já que a palavra amor se esvaziara, com os anos, até ficar só a casca. Tão vazia. Tão oca. Tão desalentada... que não valia as árvores mortas para criar o papel desses livros...

 

Ele insistiu. Escreve-me uma história de amor.

 

Convidei-o a vir até à minha casa, num dia de luto. E ele lá nos encontrou. Dando o olhar leve uns aos outros. Abraçando-nos. Dizendo: enquanto um de nós viver, somos todos imortais. Dizendo: estou aqui. Mas sem dizer. Porque era desnecessário falar de amor. É sempre desnecessário falar de amor, quando ele existe.

 

Esta é a minha família. Contei-lhe. E ele entendia que eu sabia o que o amor era. Mas ainda insistiu. Escreve-me uma história de amor.

 

Pedi que me seguisse até lá. Ao homem – hoje pai – que sorria, onde eu não vejo. Ao músico – mergulhado em enredos e notas que vibravam nas cordas – onde eu não ouço. Convidei-o a sentir a alegria no meu peito ao contemplar o futuro do qual eu nunca fiz parte. Este é o caminho que eu não bloqueei. Expliquei-lhe. E ele entendia que eu sabia o que amor era. Por isso insistiu. Escreve-me uma história de amor.

 

Sentei-me, muito quietinha, nas ruas da solidão. E o vento passava. E o vento dizia. Escreve-me uma história de amor. Mas eu estava contente com só-estar. E feliz por ser essa pessoa que ama, apesar de, além de, para sempre...

 

E então, o vento soprou do mar. Trouxe-me as gotas da maré de uma lua que crescia no céu. Assobiou-me ao ouvido. E, com um riso de menino perdido, mudou a narrativa. Escreve-te uma história de amor.

 

 

Escrevi o prefácio da minha história em grãos de poeira. Com letra muito miudinha, como dizia o meu avô. Porque tinha medo que alguém o lesse e o achasse mundano. Esse prefácio? Agarrei-o. Amei-o. E, como sempre se faz onde há amor, abri a mão. E disse. Voa.

 

Talvez nunca ninguém o leia. Ou talvez toda a gente o leia. Ou talvez não interesse realmente saber se alguém lê.

 

Mas isto confesso. Uma história de amor cabe inteira no prefácio.

 

E o resto... para quem perguntar... depende apenas da direção do vento.


Marina Ferraz





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