terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Encontro

 


Marquei encontro comigo. Combinei que seria pelo cair da noite. Quando a luz da tarde começa a enrubescer, criando traços corados junto ao horizonte.

 

Havia de me deitar sobre o aconchego de mantas e de privar comigo por alguns momentos. Neles, reveria um pouco da história dos meus muitos passados, onde a falha se misturou sempre com a força de novas tentativas, ainda que a luta fosse contra os ventos que o destino predefinira e que nunca me eram favoráveis.

 

Marquei encontro comigo. Estipulei que, desta vez, ia ouvir mais do que ia falar. Ouviria. Ainda que nenhuma das palavras se verbalizasse. O silêncio dos lábios é favorável ao cantar do pensamento. Escutaria essa canção. Mais uma vez.

 

Marquei encontro comigo. Sabia muito bem que também os demónios nos acompanhariam e, por isso, convidei-os para que também fossem, com o aviso – talvez improfícuo – de que deveriam manter a compostura.

 

Era um rito entorpecido no ocaso. Um sopro suspirado e eterno. Para que pudesse ir. Para que pudesse dar voz a mim mesma. Para que pudesse dar a mão a mim mesma. Para que eu pudesse ser, ao menos por uma vez, tanto para mim quanto fui para os outros.

 

Marquei encontro comigo.

 

Mas – ironia - vieste. Distraíste-me. Esqueci-me de mim. Os ponteiros continuaram a dançar no som da vibração do teu riso e do meu. Valsas de giros e giros badalados, constantes.

 

O céu enrubesceu. O céu enegreceu. O céu clareou. E a minha voz entorpecida pela ânsia dos sabores da vida, esqueceu-se de cantar. E eu esqueci-me de que lhe devia os ouvidos e o tempo.

 

Marquei encontro comigo e não fui.

 

Só me apercebi depois, quando o riso virou distância. E a palavra virou silêncio. E a amargura era o mel que temperava os meus passos.

 

A ausência de mim pesou. A solidão instalou-se novamente na tua cadeira, que lhe é trono. E as vozes, silenciadas no meu peito, puniram-me pelas decisões inesperadas e tomadas de improviso. Veio a dor. Uma dor aguda como o silvar do vento nas janelas. Rasgou-me a garganta. Emudeceu-me. Mas eu também já não tinha nada para dizer…

 

No silêncio, comprometi-me novamente. Prometi. Se algum dia tornasse a marcar encontro comigo, havia de ir e de me deitar sobre as mantas, de ouvir mais do que falar, de entrar nesse rito expiado, feito de sopros e libertações. E aproveitaria o ocaso e a noite e a alvorada nessa companhia feita de mim, com os fantasmas e os demónios e a insanidade.

 

Talvez um dia venhas e me abraces. E, caindo nos enclaves de um corpo sem alma, talvez não me encontres em mim e estranhes.

 

As promessas são sagradas e eu já falhei demais.

 

Um dia, marco encontro comigo… e vou.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A Guerra do Eterno

 


Quando eu nasci, a minha alma já tinha vivido muitas vidas. Era idosa, idónea, sábia. Tinha muitas eternidades no âmago. Já tinha sido pacifista e guerreira, conhecido o amor, perdido o amor, recuperado o amor. Quando ela nasceu, vinha pronta para viver. Tinha todas as ferramentas, todos os conceitos, todas as aptidões. Mas o corpo era novo e teve de aprender tudo outra vez.

 

Primeiros passos e primeiras palavras soaram a primeiros sonhos. Criados na voz das estórias antigas dos contos que se contam às meninas de ilusão fácil. Mas a alma já tinha passado pela desilusão e dizia, nas entrelinhas, com um toque de realidade por entre o glitter, que a vida não era destino mas guerra. Assim. Prepara-te, menina: quando as pernas te forem mais longas e os dedos mais eficazes, haverá mais vilões do que heróis na tua história. Prepara-te para lutar.

 

O vilão da vida era o tempo. O tempo, diziam-me os adultos, levava os sonhos. Corroboravam com as palavras da alma sobre a noção tardia de dificuldade, distanciando-se, ainda assim, da sua rebeldia eterna. Nos seus ensinamentos, cada vez mais negros com o passar dos anos, saíam pedaços de sabedoria gelada e crua. Diziam que era preciso deixar que o tempo nos mudasse. Que era essencial crescer. Largar os sonhos-meninos. Avançar pelo concreto. Calçar as normas dos outros. Anuir. Aceitar.

 

A minha alma já era velha quando eu nasci. Não havia parte dela que estivesse disposta a ceder. Dizia-me, na sua voz idosa: Se maturidade é desapego, escolho não amadurecer. Se crescer significa largar a magia em nós, escolho não crescer. E, se ser adulto é deixar de voar na sinestesia das horas, então para que raio fizeram os Deuses um céu tão vasto? Cresce, mas não deixes que te cortem as asas!

 

O corpo que crescia ouviu. Ser adulto não é esquecer a criança que fomos. Ao ouvir mais o Universo que ficava por dentro do que o mundo que ficava de fora, o meu corpo crescido escolheu, sem pensar, todas as batalhas dessa Guerra do Eterno.

 

Defendensor de sonhos e conceitos só seus, descobriu que ser adulto é um combate constante em defesa da criança que se foi. Mas também compreendeu. O sonho é uma nação inteira pela qual vale a pena lutar. O sonho é uma nação inteira pela qual vale a pena morrer.

 

Vou só, nessa batalha contra os anos que passam, contra as horas e os minutos e os segundos. Combatendo-os, todos os dias, quando me dizem para desistir.

 

Eu sei. Dizem que o tempo rouba os sonhos. Mas não. O tempo só leva os sonhos das almas que se rendem.

 

A minha alma é resiliente e louca. Quando eu nasci, já tinha vivido muitas vidas. Era idosa, idónea, sábia. Toda feita de eternidades. Aceitou, com este corpo, o desafio de uma nova guerra pelo Eterno. Tomou o seu lugar sobre a minha pele massacrada. Pediu-me que não desistisse e jurou-me lealdade. Depois, com a sabedoria das suas mil vidas, pediu que escolhesse a minha arma e avançasse, de peito aberto, na luta pelo sonho.

 

Fui.

 

Da sua dedicação fiz armadura. Abri o baú das armas. Escolhi o amor… e as palavras.

 

 Marina Ferraz


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terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

A viagem

  

Sentou-se no carro. Acendeu os faróis. A noite tinha tonalidades amareladas, inundada pela luz doentia de uma cidade que apagara as estrelas.

 

Limpou o rosto com as costas da mão. Olhou para o traço negro do rímel que, certamente, teria espalhado pela face. Girou a chave na ignição.

 

Pelo seu rosto, insistentemente, caíam lágrimas anafadas. Um rio largo, onde as margens eram os fios de cabelo e a foz era o peito deserto.

 

Sentou-se no carro. Dentro de si, tudo soava a incapacidade de estar. Paredes e tetos de insensibilidade, agregados ao aroma pútrido de uma solidão que pesara mais e mais com o passar dos anos, e depois das semanas. E depois dos dias. E depois das horas. Passo a passo, até cada segundo ser excruciante. Passo a passo até não conseguir respirar mais, na sua própria companhia só.

 

A pouco e pouco, o papel de parede da sala tinha começado a zombar dela. Uma zombaria que fazia saltar formas concretas dos desenhos abstratos. Eram quase sempre animais selvagens, que a atacavam e lhe rasgavam a pele, deixando cicatrizes subcutâneas.

 

Tinha-se levantado de um ímpeto e saído sem trazer mais do que a chave do carro. Tentando fugir dos animais e das vozes e do frio das paredes, constantemente ecoando, ecoando, quando, ando, ando

 

Estava permanentemente disfarçada de pessoa mas já não se sentia humana há muito tempo. Já não se sentia gente há muito tempo. Já não se sentia viva há muito tempo. E o motor rugia. E o motor que rugia era a única esperança de libertação, de fuga.

 

Havia o  impasse.

 

Limpou novamente o rosto. E novamente o sujou de negro, sem se importar. No espelho central, o seu reflexo refletia a história da sucata interior, onde se amontoavam as peças de todos os sonhos que não tinha cumprido e de todos os que já não podia cumprir.

 

Algures, uma chuva miudinha começava a pontear o vidro empoeirado. Encostou a cabeça ao volante, com as mãos em guarda. Depois, recostou-se.

 

As estradas estavam vedadas. Mesmo que as estradas não estivessem vedadas, que destino poderia servir-lhe?

 

Desligou o motor.

Desligou as luzes.

 

Desligou o seu motor e as suas luzes.

 

Quando a encontraram tinha traços negros no rosto e gotas de chuva no cabelo. Sorria.

 

Para onde vamos quando queremos fugir de nós?



Marina Ferraz


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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Reencontro

 



Olhei para ela.

 

Quando travei conhecimento com ela, ela tinha medo de tudo. Aos bocadinhos, enquanto crescia, num processo sublime e subliminar, ela libertou-se. Tem as costas mais direitas e já não fixa os olhos no chão, nas mãos, nas folhas… os horizontes alargaram-lhe a noção e o sorriso. Do seu semblante retiramos, por vezes, uma força maior do que a de um pelotão. Parece invencível. Acredita que o é. E, por acreditar, torna-se o que julga ser. Permanece erguida, seja qual for o vento, a ofensa ou a investida. Mas também não tem medo de cair porque sabe que, por maior que seja a queda, com mais ou menos cortes nos joelhos e na alma, acabará por se erguer de novo.

 

Olhei para ela. Ninguém diria que é a mesma!

 

Quando a conheci, ela precisava da aprovação dos outros. Tal era o temor de pôr um pé à frente do outro, que eram mais as vezes em que tropeçava do que aquelas em que caminhava fluidamente pelas ruas. Escondia-se em cada canto, afundando nos sofás das festas e encostando-se às paredes nas apresentações públicas. Desaparecia no cenário, sem beber do ambiente nem o momento, nem a vibração, nem a sonoplastia. Largando o silêncio, ela transformou-se no ambiente dos espaços. Vejo-a provocar riso com frequência. Há quem diga que é a alma das festas e o espírito dos eventos. Alguns dirão que faz figuras tristes. Mas ela está-se a cagar para a opinião dos outros. Compreende, finalmente, que essa noção de si é apenas isso mesmo: dos outros. Não diz nada sobre quem ela é ou virá a ser no futuro.

 

Olhei para ela. Quem é esta pessoa?!

 

Quando a descobri, ela era do tamanho da sua altura. Agora tem universos e constelações lá dentro. Muitas das suas galáxias giram em torno de uma estrela feita de amor. Mas ela já nem do amor é escrava como era, nesses tempos antigos, quando a conheci. Agora, é escrava da liberdade… e só! Do amor ela quer, agora, outras coisas. Companheirismo, verdade, partilha, momentos e um presente cheio de luz. Desapegando-se dos conceitos de um futuro que não sabe que tem, ela tornou-se rainha do hoje. E, hoje, ela tem numa mão o cetro dourado de sonhos só seus e, na outra, uma orbe sem cruz, representando um mundo sem fronteira de religião. Tem o tamanho dos sonhos que carrega. E eles são infinitos, tal como a Natureza que ama, honra e carrega no peito.

 

Olhei para ela. Foda-se! Que orgulho!

 

Quando a conheci ela esperava pacatamente, do destino, algum traço de benevolência e de bondade que lhe permitisse ser feliz. Cansou-se de esperar. Foi a benevolência e a bondade que esperara do destino, construindo a sua história com esforço, dedicação e trabalho. Construindo a sua própria felicidade. Escolhendo a sua própria felicidade. Já não espera por nada que chegue simples e gratuitamente. Tem demasiadas coisas para fazer e não quer (nem consegue!) aceitar o sedentarismo, a morosidade e a inação. É a autora da sua história e de muitas estórias. Desfia as cordas normativas do mundo, desafia os seus conceitos, rebenta com grilhetas e vai…

 

Olhei para ela.

 

Teci-lhe um elogio ou dois, que em nada a espantaram, mas que ela agradeceu à mesma, porque é esse o seu jeito!

 

Olhei para ela. E, depois, com um sorriso no rosto, saí da frente do espelho.


Marina Ferraz



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