terça-feira, 27 de agosto de 2019

Em meu redor, dentro de mim

Modelo: Mariana Neves


Há um teto ruído na casa que um dia tive por lar. E as telhas amontoam-se no centro da sala, onde a lareira rachada nada mais é do que abrigo para a hera. Alguém pintou as paredes. Não com arte mas com traços adolescentes, arcaicos, feios. E o entulho, debaixo dos passos, é uma espécie de ferida na história padecente.

Em meu redor há caos. Dentro de mim também.

Sobem pedaços de silva pelas paredes. Escalam-nas. Picos aguçados, criando o aviso desconstruído do tempo, que se acelera e se esbate. Ama-me. Ama-me. Ama-me, por favor. Cada espinho é um espaço aberto na fenda dos anteontens da casa. Mas a casa não sabe. Ainda lhe pendem sonhos no telheiro que ameaça cair, preso apenas por algumas estacas de madeira podre.

Em meu redor há destruição. Dentro de mim também.

Alguém deixou o sofá, mesmo ao lado das escadas de madeira que sobem para o piso que já cedeu. E que têm os degraus rachados, num ângulo inusual e todo cheio de promessas. Entre ti e mim, são as escadas que cedem primeiro. Porque nem tu nem eu estamos preparados para ceder. E eu digo. Ama-me. Mas ecoa. O eco do vazio, do espaço vazio, do ruído vazio, do sopro vazio. Um rugir do passado que podia ser promessa. Que foi promessa. Mas que não se cumpriu.


Em meu redor há vazio. Dentro de mim também.

Um pássaro criou ninho no beiral. Mas o beiral tombou. E, tombando, um pássaro desalojado abriu as asas e voou. Deixou para trás as figueiras, de fruto ainda verde; as videiras com parras ressequidas; as amoras negras e doces, suculentas e cheias de sabor. Um pássaro desalojado abriu as asas e voou. Mas deixou no chão um ninho que alberga larvas sedentas dos ovos que nunca pôs, misturadas com aroma ácido dos frutos que caíram, sem pássaro que os comesse.

Em meu redor há desumanidade. Dentro de mim também.

Vivo, todos os dias, numa espécie de aldeia abandonada. Não moro só. É aqui que também a morte se alberga quando fica cansada das pessoas. E é com ela que, sentada no centro divino da árvore grande, velha anciã do sítio, conto as histórias que fazem eco sobre as asas do pássaro desalojado no meu peito. Ela ri. Eu também. Porque tem piada o caco da janela tombada nos meus olhos, lágrima de cristal que se prende nos vasos e não sai. E rimos. Justamente para não chorar.

Em meu redor há fragilidade, fraqueza. Dentro de mim não. Não, meu querido, dentro de mim não. Olha em redor.

Nas aldeias destruídas ainda há paredes em pé. Dentro de mim há o amor. Enquanto ele não tombar – olha bem nos meus olhos – enquanto ele não tombar, dentro de mim há resiliência, força, infinitude.

Estavas enganado! Não são precisos dois para amar. Quando amor é amor. Quando o amor é verdade. Pode ruir o mundo. Mas o amor permanece.






Sigam também o meu instagram, aqui





terça-feira, 20 de agosto de 2019

Arame farpado


Modelo: Tânia Silva


Ninguém põe arame farpado nos muros para vedar caminhos. Qualquer manta amarrotada ou camisola velha torna o muro fácil de saltar. Não é preciso muita inteligência, nem ardis. Não é necessária destreza nem arte. O arame farpado não serve para vedar caminhos. Serve outro propósito. O do aviso: mantém-te à distância! E é isso que o teu silêncio é. Arame farpado.


Tenho muitas coisas para te dizer e nada que faça sentido dizer-te.

Gostava, por exemplo, de te contar que, no outro dia, andando pela rua, tropecei numa memória nossa e caí no chão asfaltado. Gostava de te contar que, desastrada como sempre me disseste que era, esfolei um dos joelhos e as duas mãos. E que as feridas não saram porque estou constantemente a mexer nelas, procurando na profundidade desses cortes a parte de mim que não sinto que tenho.

Gostava de te dizer que a memória na qual tropecei era boa. E que, por isso, enquanto caía, senti que voava. Até me estatelar. No chão. De asfalto. E de me lembrar. Da verdade dos dias. E de recomeçar o processo de maturação da mágoa. E de chorar.

Gostava de te dizer que houve quem acorresse. E me ajudasse a levantar. Quem me perguntasse se precisava de ir ao hospital. E de te explicar que agradeci a queda para não ter de explicar que as lágrimas não eram fruto do sangue da carne mas da seiva da alma.

Tenho muitas coisas para te dizer. Como esta. Mas não faz sentido. O teu silêncio é arame farpado.


Mantenho-me na distância segura. Para respeitar o aviso. Do silêncio. Para respeitar a sinalética luminosa presa na testa. A sinalética que é a única coisa que vejo brilhar no teu rosto, por entre sorrisos-verdade, sorrisos-mentira e olhos mate. Mantenho-me na distância segura. Afasto-me, pé ante pé, do arame farpado do teu silêncio. E, quanto mais recuo, mais perto fico do passado e mais te amo. Talvez já tenha recuado ao tempo antes de nós. E talvez por isso te ame. Em silêncio. Como antes. Só que pior.

Gostava de te dizer isso. Que te amo. Em silêncio. Como antes. Só que pior. Mas não faz sentido.


Tenho visitado muitas ruínas. Esta é outra coisa que gostava de te contar. Sabias que, aqui ao lado, uma quinta tem o nome do nosso passado e um palácio de contos de fadas? E sabias que sobra, de uma antiga aldeia, apenas a árvore anciã e que nela moram histórias? E sabias que debaixo da meia ponte romana existem folhas verdes e vermelhas, com formato de coração? Queria contar-te. Que saltando muros encontrei pérolas. E que valeu o risco da invasão. E que valeu o risco dos arranhões. E que valeu o risco das quedas. Queria contar-te. Mas não faz sentido.


O teu silêncio é arame farpado. E eu não tenho medo nenhum do arame farpado. Mas tenho respeito por ti. Não vou amarrotar mantas nem camisolas velhas. Não vou saltar o muro. Vou ficar a olhar. Para o arame farpado do teu silêncio. Toda cheia de palavras. E sem poder dizer-te nenhuma delas. Conheço bem as pérolas do outro lado desse muro. E amo cada uma delas. Ainda mais do que as folhas e as árvores velhas e os palácios feéricos. Amo-as. Mas não quero nenhuma delas, se não mas queres dar.


O teu silêncio é arame farpado. Ele deixa o aviso. Mantém-te à distância. E eu mantenho. Deste lado do muro. Durmo e acordo encostada a ele. Ao muro. Com a esperança. Uma única esperança. A esperança de que, um dia – silenciosamente e sem te incomodar - adormeça ali e não acorde mais.






Sigam também o meu instagram, aqui






quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Sentir cigano


Modelo: Mariana Neves

“Home is where the heart is.” (Gaius Plinius Secundus)

O meu sentir é pagão. Mas não lhe basta ser pagão. É cigano. E nómada. Tem má fama. Anda descalço nas ruas. Maltratado. Sujo. E cospe na mão que se estende. Não quer ajuda de ninguém.

Dizem que vagueia à procura do elogio fácil. Que é por isso que, às vezes, veste as roupas domingueiras do sorriso. E que estremece de fúria quando alguém tem pena dele. Não gosta de pessoas condescendentes. Nem de condescendência. Na maior parte dos dias, nem sequer gosta de pessoas.

O meu sentir tem as mãos calejadas. E um corpo de pedra, impenetrável, que jorra sarcasmos e ironias a quem julga que os sulcos são falhas. Defende que os sulcos são história. E diz que os ama mais do que às superfícies limpas e desinfetadas das almas podres dos outros.

Dizem que ele é ácido. Não do tipo que arde na língua mas do tipo que corrói quando cai no mármore. E também dizem que é sincero. Mas uma sinceridade tão agreste que se toma, quase sempre, por rudeza. E, mesmo não querendo, o meu sentir – que é nómada, pagão e cigano – dá por si a preferir isso mesmo. O lado rude da vida. Mais honesto, diz ele.

O meu sentir tem os pés cortados. Não conta a ninguém que, um dia, se alojou numa tenda que era um peito. Nem que lá encontrou um conforto que a rua não tem. O meu sentir tem vergonha de ter acabado novamente disperso e pedinte nas ruas do despejo. E não quer os palácios. Não quer nenhum dos palácios. Com os seus pajens e príncipes e serventes. Não. Ele não quer os palácios. Diz que são torrentes de cloaca que as pessoas bebem como vinho do Porto, só porque alguém lhes disse que era bom.

Continua.

A vaguear pelas ruas solitárias onde não há nem música nem estrelas e muito menos algo que una ambas.

Continua.

Cigano. Pagão. Nómada.

Não está à procura de uma casa mas de um lar. Esse que é no sítio onde o coração está. E ouviu dizer, na esquina onde as senhoras de saltos altos vendiam amor, que ele está no lugar onde a mente vai só e sem pedir autorização.

Cigano, pagão e nómada, o meu sentir vagueia nas ruas. Não se dá. Não se vende. Não se quer. Mas sabe. Sabe onde está o lar pelo qual anseia. E, justamente por saber, cospe na mão que se estendem. Não quer ajuda de ninguém.

Anda quase sempre na direção contrária do lar que deseja. É um sentir que não quer o coração largado. Prefere ser sem-abrigo do que assassino de felicidades. E continua a rasgar os pés no asfalto. E a enregelar as mãos no frio da vida.

Dizem que ele é pagão. Nómada. Acusam-no de ser cruel. E ele segue. Cigano.

Dizem que ele não se dá porque não se quer.

Ele não se dá porque não se tem.





Sigam também o meu instagram, aqui





quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Espero




Eu espero. E vou dizendo que espero por amor. Enquanto me dizem. Que não espere. Mas eu espero. Porque é isso que faz quem ama. Espera.

Em alguns dias, espero que, pela manhã, o sol nasça sem nuvens à tua porta. Espero que alguém te leve o café à cama, com um beijo e um poema nos lábios. Espero que, com ternura, novamente se enfie na tua cama e se recoste no teu abraço, caso queiras sentir o calor de outra pele. Espero que o café não seja acre. E que os gatos saltem para a cama e façam caretas no aroma cafeinado de um dia que te comece feliz.

Espero.

Em alguns dias, espero que as ruguinhas que te surgem junto aos olhos sejam estradas de sorrisos feitos ao longo dos tic-tacs dos relógios. E espero que te esqueças. Das rugas e dos relógios. Para seres menino e feliz e eterno. E espero que esse lado mais inocente de bebé crescido se note no fundo do brilho dos olhos que te refletem vidas. Mas só espero que se note porque espero encontrar, também para mim, algum alento.

Espero.

Há tardes em que espero que o trabalho não te engula mas te sustente. Assim. Espero que possas, folgadamente, deixar os passos marcar areias, deixando quatro pegadas. Porque espero – espero – que não conheças uma solidão igual a minha. E espero. Que os passos impressos na areia te levem para uma casa que seja um lar (como eu não tenho) ou para uns braços (como eu não quero) para acentuarem mais e mais essas ruguinhas que se formam na moldura dos teus olhos.

Espero.

Dizem-me que não espere.

Mas espero.

Espero que a noite venha lenta. Que o pôr-do-sol tenha a cor de uma fotografia com mil reações, espelhadas através do mundo pelo ecrã digital. E espero que os teus dedos, nessa subtileza desligada, acariciem, por vezes, com um toque de carinho, a memória de um eu que se expõe e se despe. Sempre mais em palavras. Mas também em roupas.

Espero. Em alguns dias, verdadeiramente espero, que tenhas a sorte de um amor maior do que o meu, embora não saiba se existe. Que tenhas a felicidade que eu não dei. Que tenhas quem te apoie nas quedas, porque na subida é tudo mais simples. E espero. Espero que tenhas quem te coloque na montanha russa que odeias para poderes ir mais longe do que os teus limites e ser mais do que compromisso rotineiro com a ideia da loucura.

Espero. Todos os dias espero. Que estejas bem. Mas, claro. Não sou a melhor pessoa do mundo. Como não sou a melhor pessoa do mundo - facto incontornavelmente repetido, até ao limite da sanidade e, de tantas vezes ressaltado, tornado real – eu espero. Às vezes espero que se cale a voz em mim. Essa que diz que espero que te vás foder. É uma voz que tem alguns ressentimentos. Desculpa. Pelas mentiras (que podiam ser evitadas). Pela distância (que nasceu numa mentira). Pelo silêncio (que nasceu numa distância). Pela crença de que a melhor pessoa do mundo não me deixaria à espera, por entre paredes que ecoam versos que nunca foram escritos.

Não o nego. Às vezes espero esquecer. Um dia. Talvez amanhã. Espero pelo dia em que não espere que sejas mais feliz do que eu. Espero pelo dia em que o meu coração perca um batimento e outro a seguir e outro depois. Espero por dormir. Espero.

Eu espero. E vou dizendo que espero por amor. E, quanto me dizem que não espere, eu digo que, quem ama, não pode fazer outra coisa.

Eu espero. Espero muito. Tanto que até espero que não leias este texto. Para não saberes. Que eu espero.






Sigam também o meu instagram, aqui