quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Sentir cigano


Modelo: Mariana Neves

“Home is where the heart is.” (Gaius Plinius Secundus)

O meu sentir é pagão. Mas não lhe basta ser pagão. É cigano. E nómada. Tem má fama. Anda descalço nas ruas. Maltratado. Sujo. E cospe na mão que se estende. Não quer ajuda de ninguém.

Dizem que vagueia à procura do elogio fácil. Que é por isso que, às vezes, veste as roupas domingueiras do sorriso. E que estremece de fúria quando alguém tem pena dele. Não gosta de pessoas condescendentes. Nem de condescendência. Na maior parte dos dias, nem sequer gosta de pessoas.

O meu sentir tem as mãos calejadas. E um corpo de pedra, impenetrável, que jorra sarcasmos e ironias a quem julga que os sulcos são falhas. Defende que os sulcos são história. E diz que os ama mais do que às superfícies limpas e desinfetadas das almas podres dos outros.

Dizem que ele é ácido. Não do tipo que arde na língua mas do tipo que corrói quando cai no mármore. E também dizem que é sincero. Mas uma sinceridade tão agreste que se toma, quase sempre, por rudeza. E, mesmo não querendo, o meu sentir – que é nómada, pagão e cigano – dá por si a preferir isso mesmo. O lado rude da vida. Mais honesto, diz ele.

O meu sentir tem os pés cortados. Não conta a ninguém que, um dia, se alojou numa tenda que era um peito. Nem que lá encontrou um conforto que a rua não tem. O meu sentir tem vergonha de ter acabado novamente disperso e pedinte nas ruas do despejo. E não quer os palácios. Não quer nenhum dos palácios. Com os seus pajens e príncipes e serventes. Não. Ele não quer os palácios. Diz que são torrentes de cloaca que as pessoas bebem como vinho do Porto, só porque alguém lhes disse que era bom.

Continua.

A vaguear pelas ruas solitárias onde não há nem música nem estrelas e muito menos algo que una ambas.

Continua.

Cigano. Pagão. Nómada.

Não está à procura de uma casa mas de um lar. Esse que é no sítio onde o coração está. E ouviu dizer, na esquina onde as senhoras de saltos altos vendiam amor, que ele está no lugar onde a mente vai só e sem pedir autorização.

Cigano, pagão e nómada, o meu sentir vagueia nas ruas. Não se dá. Não se vende. Não se quer. Mas sabe. Sabe onde está o lar pelo qual anseia. E, justamente por saber, cospe na mão que se estendem. Não quer ajuda de ninguém.

Anda quase sempre na direção contrária do lar que deseja. É um sentir que não quer o coração largado. Prefere ser sem-abrigo do que assassino de felicidades. E continua a rasgar os pés no asfalto. E a enregelar as mãos no frio da vida.

Dizem que ele é pagão. Nómada. Acusam-no de ser cruel. E ele segue. Cigano.

Dizem que ele não se dá porque não se quer.

Ele não se dá porque não se tem.





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