Um pai caminhava com a filha. Ela, pequena e encasacada, arrastando os pés em jeito de cansaço. Ele, encolhido, dando uma mão à menina e segurando na outra a igualmente miniatural bicicleta cor-de-rosa. Subiam a ladeira. Ambos rendidos ao cansaço, sem trocarem palavra. E, ainda assim, a bicicleta seguia, rodas ao alto, testemunha do amor.
Esta imagem, ainda agora absorvida pelos olhos dezembrinos, trazia dentro este ano com prazo de validade iminente. Não que isso importe, se considerarmos que deviam ter-me dito, há um ano, que ele chegava cheio, mas não bom.
2025 foi um ano de mudanças. Em janeiro, mudava de casa, preparando-me para enfrentar o festival do caixote e a saga das encomendas e serviços. Por entre a azáfama, apercebi-me tarde demais de que estava a ignorar o incontornável: uma escassez de trabalho que podia mandar-me – e me mandou – para o patamar abaixo do lodo. Em janeiro morreu um amigo. Em fevereiro morreu um amigo. Debaixo do lodo e quando dele tomei fôlego, na enxurrada de imprevistos e expetativas defraudadas, vesti-me de Abril. Decisão sóbria de quem, não podendo estar como quer, pode ao menos ser fiel à sua essência. Em abril morreu um amigo. Cansada, como a menina encasacada, não tive quem me pegasse ao colo. Mas tive quem me aliviasse do peso da bicicleta e me desse a mão. Amigos – felizmente vivos – que leiloaram a sua arte para me ajudar. Amigos – felizmente vivos – que me quiseram na mesa dos seus aniversários, mesmo sem que eu pudesse pagar a refeição. Pessoas – felizmente vivas – que ofereceram a sua ajuda, que partilharam os seus conhecimentos, que me pagaram contas e encheram a despensa.
Quem me conhece sabe que gosto de levar a minha própria bicicleta e que sou intolerante a que me peguem. Mas, quando 2025 decidiu reinar no meu reino, eu larguei o cetro do controlo. Talvez seja essa a mensagem deste ano. Aprender a largar o controlo, de vez em quando, e assistir a Abril nos outros, ao modo como avançam, em revolução pacífica, com as armas em punho, mas dando-me Liberdade.
O ano seguiu, melhorou. Despedi-me, com carinho, dos passos dobrados na areia e ganhei, assim, a inesperada felicidade da amizade mais pura. Depois – porque é para amar que aqui vimos – resignei-me ao sentimento mais estável dos estáveis sentimentos. Ali, nesse mar de sentir simplesmente o que sinto, tive ainda o alento do sonho e da ilusão. Sonho e ilusão muito breves, é verdade, mas tão bonitos... tão bonitos, que a recordação me faz feliz.
Chorei. Gastei os olhos de chorar. Fossem os olhos de pedra e estariam erodidos. Mas na almofada inundada de mim, descobri que a humidade faz crescer sementes. As sementes viraram conto e poema. Uma bênção que, por mais que a humanizem, não é deste mundo. Os brotos enraizados ali estão, à minha espera. Mas, sem tempo para chorar, descobri, no final deste ano, o cansaço antigo de ininterrupta labuta. E chego aos últimos dias do ano como vim ao mundo: com um grito preso na garganta, exausta e pronta para enfrentar o que vier.
Obrigada a todos os que me viram desabar e, em vez de me levarem ao colo, agarraram o meu peso – essa bicicleta-nada-cor-de-rosa – e me deram a mão.
Obrigada ao Amor, que me leva, mesmo que em silêncio, de sobrevivência em sobrevivência.
E obrigada a Abril. Porque me é. Porque o sou.
2025 foi o ano de largar a bicicleta e dar a mão.
Está frio. Tenho os pés doridos. Mas cumpri uma resolução. Logo a primeira. Sobreviver. E acho que, por caminho, surpreendentemente, vivi.
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