segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Não é suficiente


Não é suficiente. Desculpa. Não é. Por mais que eu tente. Por mais que eu procure. Para quê? Para quê continuar a mentir ao vento? Ele sabe a verdade. Tu também a sabes. E eu também. Não é suficiente. Nunca vai ser suficiente.
De manhã, acordo no teu abraço e, ainda ensonada, esboço um sorriso, por entre o escuro do quarto e a tua luz. Mas esse sorriso? Esse sorriso, escondido nas sombras da manhã, não é suficiente para te dizer como me fazes feliz.
Pelas ruas, dou-te a mão. Aperto a tua na minha, não para lhe roubar o calor, mas porque quero sentir-te perto. Mas a mão que te dou, pequena e fria, com as cicatrizes do tempo, da vida, das teimosias... a mão que te dou não é suficiente. Não chega para te deixar saber como quero enlaçar contigo, não só os dedos mas toda a vida.
Falo muito. Demais. Tantas palavras. Quantas delas escusadas? Quantas delas despropositadas? Mas falo. Falo-te. E o som da minha voz, diga o que diga, não é suficiente. Não basta para te explicar como as manobras do destino me deixaram com uma divida de gratidão aos Deuses. Não basta para explicar como me sinto feliz, honrada, completa por estares aí.
Então, não sendo suficientes as palavras ditas, os sorrisos esboçados, as mãos dadas, eu sento-me e escrevo. Escrevo sobre ti. Escrevo para ti. Mas nunca te escrevo a ti porque as palavras não são suficientes. Nunca é suficiente para te descrever o rosto perfeito, o sorriso perfeito, as mãos perfeitas, a alma perfeita... As minhas palavras não conhecem a perfeição. E, por isso, também não chegam, não bastam, não são suficientes para te explicar como és o meu tudo. Não são suficientes para te dizer como te amo.
Choro, por vezes. É mesmo assim. Choro por medo de não ser, também eu, suficiente. Choro por saber que quero merecer-te, que quero merecer o teu amor, que quero merecer a tua perfeição. Mas as lágrimas não são suficientes para apagar a certeza de que as palavras, os sorrisos, as mãos dadas não chegam para explicar...
E fico a sonhar com o hoje, com o amanhã. Mas assusto-me um pouquinho na perspectiva de que não basta... há tanto para vivermos lado a lado. Uma vida não é suficiente!
Por isso, não. Não é suficiente. Desculpa. Por mais que eu tente. Por mais que eu procure. Não é suficiente. Nenhuma palavra é suficiente para explicar o que sinto. Uma vida não é suficiente para tudo o que quero viver contigo.
Não é suficiente. Eu sei que não é. Mas, não o sendo, é o que posso dar-te: as minhas palavras, o meu coração, a minha vida...  então, eu dou. Entrego-me a esse sonho acordado e desejo baixinho que, por alguma razão, isso seja suficiente.
Ainda assim, na certeza de que não o é, sinto-me desesperar um pouco na conclusão de que o meu coração não é suficiente para albergar um amor tão grande. Tu também sabes que não. Por isso, dás-me o teu. E isso sim, é suficiente e basta para fazer um segundo valer pela eternidade.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Carta de Natal


Querido Pai Natal,

Eu queria escrever-te uma carta. Aposto que recebes muitas e que a minha será apenas mais uma sobre um monte infinito de outras, quase todas mais importantes e com pedidos mais urgentes. Mas peço-te que leias a minha primeiro. Preciso que a leias e que a faças seguir por aí. Porque só tenho um pedido. Apenas um.
Não me falta nada. Nunca faltou. Em criança, tive todas as prendas de que precisava e o meu quarto encheu-se de brinquedos. Com muitos deles, nem cheguei a brincar. Fui uma criança doente mas amada. Nunca me faltou quem me levasse ao médico, nunca me faltaram medicamentos, nunca me faltou, sequer, o amor e carinho de mil entes queridos. Fui muito afagada, muito cuidada, muito amada.
Sobre a mesa, fosse Natal ou não, houve sempre comida em abundância. Nunca passei fome, nunca passei frio, nunca me senti desamparada. E, mesmo assim, todos os anos te escrevi, pedindo coisas que não precisava, na esperança de encontrar no sapatinho, sob a árvore de Natal, um sem fim de extravagâncias tolas. Mas a minha família amava-me. Amava-me tanto que me oferecia, não apenas o necessário mas também esse supérfluo que me enchia o sapatinho de embrulhos perfeitos e coloridos. E, por isso, das coisas que te pedia nessas cartas, cheguei a ter quase todas.
Foi com o tempo que comecei a escrever mais e a escrever-te menos. Deixei de acreditar em ti bastante cedo, embora me tenham feito fingir que te acreditava até tarde. E eu fingia, por eles, porque era importante para eles que eu julgasse que, voando sobre os telhados, espalhavas prendas e alegria pelo mundo. Mas deixei de acreditar em ti cedo, quando os supermercados começaram a vender, não apenas as prendas mas também uma imagem de ti que não me fazia sentido, enquanto os telejornais espalhavam imagens de guerra, de miséria, de fome pelo mundo.
Não fui uma criança informada. Como quase todas, ignorava muito do que via. Mas, de alguma forma, olhava para o mundo com olhos críticos. E esse olhar fez com que de criança a jovem e de jovem a mulher, soubesse sempre que andava de mãos dadas com a sorte.
Nunca me faltou nada. Não me falta nada. Tenho família, amigos, um amor forte e persistente que me faz lutar pelo melhor de mim. E tenho estudos, tenho cultura, tenho mais livros nas prateleiras do que algumas bibliotecas. Tenho um sonho, tenho pessoas a apoiarem-me nesse sonho.
Nunca me faltou nada e continua a não me faltar coisa alguma. Mas pedi-te que lesses esta carta primeiro. Pedi-te que o fizesses porque preciso que compreendas que, quem te escreve, como eu te escrevia, muitas vezes tem uma vida de ouro nas mãos e a ilusão da necessidade. E, se calhar, não é importante que distribuas por aí brinquedos caros e instrumentos tecnológicos de última geração.
Este ano, mais de quinze anos depois de ter deixado de te incomodar com pedidos, envio-te esta carta. E preciso que a leias e que a faças seguir por aí com o único pedido que posso conceber fazer-te. E esse pedido é simples: oferece amor a quem está infeliz, conforto a quem não tem lar, comida a quem passa fome e agasalhos a quem passa frio. Oferece um abraço a quem está só e uma palavra a quem está triste. Oferece um futuro a quem está preso ao passado, uma oportunidade a quem está desesperado, um sonho a quem vive sem esperança. E, se está nas tuas mãos a possibilidade de ofertar tudo isto, peço-te que o faças o ano inteiro e não apenas no Natal.
Eu fui uma criança com sorte. Nunca me faltou nada. Mas, no mundo, há gente a quem falta quase tudo. Por isso, este ano, o meu pedido é para ti, sim, mas não só. Peço-te que leves esta carta a quem, como eu, teve tudo. Peço que a espalhes por aí e que faças com que ela seja lida e relida por aqueles que têm o poder para fazer a diferença. E peço-te que, este ano, quando conduzires o teu trenó sobre o mundo, espalhes um pouco de consciência e solidariedade sobre este meio de consumo onde se enfatiza cada vez mais o egoísmo e a cegueira.
Talvez esta seja a última carta que escrevo. Espero que não te importes. Não é por mal. É apenas porque não há mais nada a pedir e não quero que a minha carta, repetitiva e insistente, te desvie a atenção das milhares restantes, onde mais pessoas cheias de sorte te hão-de pedir coisas das quais não precisam, apenas porque é Natal...

Com os melhores cumprimentos,
 Marina Ferraz

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Outra mentira


Inventa outra mentira. Uma que me faça chorar. Uma que me faça virar costas e discutir com o sol. Uma que consiga tirar-me do sério, que me faça responder-te mal, com cinco pedras nas mãos e um "adeus" de corrida.
Inventa uma mentira melhor. Uma que me faça bater a porta. Uma que me faça fazer as malas e fugir de ti. Inventa uma mentira que me arranque o sorriso tonto da face, uma que me fira de uma forma tão profunda que eu sinta as lágrimas a correr nas veias em vez de sangue.
Inventa outra mentira. A que quiseres. Inventa a coisa mais simples, a mais complexa. Inventa algo com ou sem sentido. Imprime na voz o tom de certeza inabalável e mente-me, com os olhos firmes e o rosto expressivo de quem não mentiria jamais. 
Mente-me. Não vou pedir que sejas a verdade de ti. Não quero que aniquiles a tua natureza e que me digas somente a verdade a todo o momento. Mas, se fores mentir, inventa uma mentira melhor. Uma que eu não perceba. Uma que eu perceba e não me magoe. Uma que eu perceba e que me faça odiar-te. Tanto faz. Mente-me, se é o que queres mas, por favor, se for para me mentires, inventa uma mentira melhor do que essa com a qual me enches os dias e as noites e os ouvidos. Estou cansada. Inventa outra mentira. Qualquer outra, desde que eu não a queira ouvir.
"Amo-te!" é uma mentira injusta. É uma mentira que se faz verdade na sombra dos meus desejos. É uma mentira que faz vibrar o meu corpo e bater forte o meu coração. É uma mentira que dizes, naturalmente, mesmo sabendo que não é verdade. O teu amor morreu nos teus olhos. O teu amor morreu no teu toque. O teu amor morreu. Mas manténs viva a ideia desse amor nos teus lábios e sussurras-me ao ouvido, dizendo que me amas, porque sabes que o meu amor está vivo.
Por favor, inventa uma mentira melhor. Uma mentira que não me faça sentir especial. Uma mentira que eu não queira ouvir a cada segundo da eternidade. Uma que não me faça agarrar-te nos braços, prender os lábios aos teus, desejar que me mintas a tempo inteiro.
Inventa outra mentira. Uma mentira que não mova os meus dias na ilusão de uma vida que nunca vou ter. Uma mentira que, quando se revelar verdade, me faça ficar aborrecida e não derrotada. Uma mentira que, em sendo descoberta, me faça desejar o nosso fim e não o meu.
Se algum dia esse "amo-te", hoje tão cheio de indiferença, foi verdade, inventa uma mentira melhor. Eu ouço-te a mentira e sorrio. Sei que é mentira e aceito. E seguimos juntos este trilho onde sei tão bem que já estou só.
"Amo-te", a palavra ecoa, uma vez mais, mentida, vazia, sem um brilho no olhar. E faço de conta. Faço outra vez de conta que talvez, por detrás das camadas de indiferença, ela possa ser verdade. Então, recosto-me nos teus braços, sorrio e, inebriada pela tua mentira, digo a verdade e confesso que também te amo.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Alma gémea




A minha alma gémea é menina mas caminha já, com passos largos, para a mulher que será um dia. Tem o rosto carente e o olhar solitário. Chora com facilidade e nem sempre responde no tom mais educado do mundo. Além disso, intempestuosa e irritável, faz fita e grita contra os ventos antes de dar a quem quer que seja a hipótese de justificar porque é que a vida nem sempre corre como se espera.
A minha alma gémea é alta e esguia. Tem corpo de bailarina porque o trabalha assim, em passos e pontas. Faz-se de forte para esconder a sensibilidade. Faz-se de fraca para conquistar nos outros a simpatia.  É exigente com o mundo e ainda mais exigente para consigo. Não aceita as derrotas. Não aceita o segundo melhor lugar.
Ela ainda não fala de amor, embora o sinta. Sente-o, é claro, naquela dimensão infantil de "gosto de ti". Mas não fala de amor. Diz apenas "ohs" e "ah huns" que se transformam em sorrisos tímidos e ecoam pela casa, seguidos de risos nervosos. Ela não sabe se quer amar, talvez porque tenha aprendido, em olhares perspicazes, que, no amor, não há vencedores e vencidos, não há primeiros lugares.
A minha alma gémea gosta de música e filmes. Não entende de política e economia. Evita os telejornais e as conversas sérias, com um revirar de olhos e uma mudança de divisão. É vaidosa e pinta as unhas mais vezes do que as necessárias, de volta em vez, camada em cima de camada, um dedo de cada cor. E combina com os arcos-íris das suas mãos os brincos espampanantes que sobressaem e gritam por entre os caracóis louros e desfeitos que não consegue domar.
A minha alma gémea apaixona-se com facilidade pela imagem utópica de um futuro nas artes. E faz planos a dois, comigo, como se eu e ela pudéssemos ficar juntas para sempre. As frases para amanhã começam por "nós". Inclui-me, como quem não o nota, em cada plano. Não concebe que a realização dos seus sonhos possa estar num lugar onde eu não esteja. É dependente de mim. Não mais do que eu dela. Na mesma medida. É um contrato implícito: eu ensino-a a sonhar e ela dá-me um motivo para viver. Eu ajudo-a a viver e ela segura-me os sonhos quebrados, fazendo dos sonhos dela também os meus.
Ela não faz sentido. Passa da pessoa mais doce à pessoa mais cruel. Da pessoa mais educada à mais respondona. Da mais trabalhadora à mais preguiçosa. Passa do riso às lágrimas. Do choro ao sorriso. Intercala facetas e humores com uma agilidade tão louca que se torna impossível acompanhá-la.
A minha alma gémea quer tudo e quer tudo ao mesmo tempo. Não se contenta com fragmentos de felicidade. Não tolera a injustiça. Vive num caos muito próprio e entende-se nele como ninguém.
Não! A minha alma gémea nunca será entendida pelo mundo. Mas quando me vê abre um sorriso e quando sorri faz-me sorrir também. A minha alma gémea não é um rapaz qualquer que me conquistou o coração e partiu, deixando mil textos e mil tristezas. É uma menina, a caminhar em passos largos para a mulher que será um dia. E, timidamente, eu sigo-lhe os passos, à espera desse dia. Com a amargura velada de perder nela a criança, o orgulho desmedido de poder vê-la crescer e a certeza infinita de que ela será para sempre a minha alma gémea.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Metade



Foi sempre assim. Metade. Como se não houvesse forma de ser maior. Melhor. Completo. Foi sempre metade. Solidão acompanhada. Vitórias perdidas. Momentos entregues ao ar, para se dissiparem juntamente com a sensação de que nada estava certo. Metade.

Foi sempre assim. Olhar ao espelho e ver o corpo sem a alma. Estar triste e sentir uma alma sem corpo. Estar magoada e saber o coração sem vontade. Metades das metades de mim, divididas aos poucos, até não serem mais do que grãos de poeira a esvoaçarem pelo céu da minha vida, ocultando-me o sol da felicidade.

Nunca conheci outra coisa. Apenas metade. Metade da vida. Metade do contentamento. Metade da realização. Metade das metades sem fim que se acumulavam em nadas, em vazios, numa sensação eterna de que metade da vida era um caminho para a morte que tardava.

Foi sempre assim. Metade. Parcelas indefinidas de mim que não eram eu. Sonhos empilhados em poemas, que se somaram em livros e se empilharam em estantes onde metade dos sentimentos eram meia mentira. E metade dos sonhos ficaram esquecidos nas meias mentiras onde meias verdades dançavam valsas sem par.

Sem conhecer outra coisa, habituei-me ao espelho que me mostrava metade de mim. Habituei-me a ver metade do meu rosto chorando metade das lágrimas que me inundavam a alma e a sorrir meios sorrisos quando me cruzava com gente no meio da rua.

E metade dos sentidos ficaram presos nas metades indivisíveis do que nunca foi completo. Sem que houvesse mais do que cicatrizes na metade mais frágil da minha pele onde se cumpriu metade de uma profecia que fazia meias promessas de uma eternidade oca.

Foi sempre assim. Metade. Metade amor. Metade vazio. Metade alegria. Metade tristeza. Metade sorriso. Metade lágrima. Metade indolência. Metade euforia. E as metades somavam-se em mais e mais metades de vazio, que eram metade eco, metade vontade, metade de nada.

E eu caminhei, em meios passos por meias ruas onde pessoas às metades olhavam para mim e me viam inteira, como se eu pudesse sê-lo. E rasgava-se em mim a vontade da vida que seguia, andando de metade em metade, tentando emendar com costuras largas e mal feitas os espaços vagos das metades que sobravam e das que não havia em mim.

Andei pelos trilhos mais negros do que ficava no mais fundo. Procurei as metades certas que se uniam às minhas metades e me podiam tornar alguém com um principio, meio e fim. Procurei as metades que me dariam coerência, sorriso, felicidade. E cansei-me de olhar para dentro das minhas metades de vazio onde já não parecia haver metade de nada que valesse a pena.

Foi sempre assim. Metade. Como se não houvesse forma de ser maior. Melhor. Completo. Foi sempre metade. Solidão acompanhada. Vitórias perdidas. Momentos entregues ao ar, para se dissiparem juntamente com a sensação de que nada estava certo. Metade. Foi sempre assim. Sempre. Até eu descobrir, nos confins do meu coração, que és a metade que me faltava.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O tempo do tempo


"Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo." (Jorge Luís Borges)

Os minutos passaram, no compasso inadiável do relógio. Os minutos eram feitos de segundos. Os segundos foram séculos. Tu não estavas. E o tic-tac dos ponteiros ecoava lentamente pelos corredores, atormentando os recantos de mim com perguntas que não podem ser formuladas.
Avancei na escuridão do tempo. Apenas eu. Os ponteiros não se moviam com a prontidão louca da minha mente. Ter saudades era parar o tempo. E o tempo, fiel a princípios relativos, arrastou-se na minha saudade, cantando uma canção que não ouviste. Uma canção que pedia por ti, para me animares a alma e os ponteiros do relógio, então quase parado.
Devagarinho, como se tivessem medo do segundo a seguir, os ponteiros moveram-se. Levaram dias a passar uma só hora. Troçaram de mim. Mas eu não fiz caso. Olhei para cada movimento cortante dos ponteiros negros. Fixei cada oscilar do velho pêndulo. Ouvi cada "tic", cada "tac", separados por um infinito de segundos, como se os sons não quisessem juntar-se num ritmo lógico e real. Eles não queriam tocar as badaladas nem dar um pouco de paz à minha alma que se quebrava no parar do tempo.
Os minutos passaram. Eram feitos de segundos que duraram séculos. Tu não estavas. Eu não estava em mim. O tempo não avançava. E a alma, de massacrada pela distância, disse à saudade que olhasse para o nosso passado e não para um presente onde o relógio, quase parado, se recusava a trazer-me um futuro onde estivesses.
Lentamente, passo a passo, com movimentos que podiam nem se notar, o relógio deixou chegar, ao fim de eternidades de loucura, o momento de te ver. E, em tocando as badaladas, os teus passos trouxeram o animo que faltava. Sorri. A saudade morreu e eu sorri. A saudade morreu e o relógio avançou.
Os minutos passaram, no compasso inadiável do relógio. Os minutos eram feitos de segundos. Os segundos foram milésimas de segundo. Tu estavas. E o tic-tac dos ponteiros ecoava pelos corredores, numa correria louca, como se quisessem chegar primeiro, sei lá eu aonde.
Sem demoras, o tempo avançou, numa lógica irrealista que transformava alvoradas em pores do sol e noites sem estrelas em manhãs enevoadas. Correu. O tempo não soube andar. Correu. Tinha pressa, sei lá porquê. Amar era avançar o tempo. Tu estavas.
Entre os dias que pareceram segundos, chegou a hora do amor ser saudade. Chegou a hora do tempo adormecer. E chegou o momento em que um "adeus" apressado fazia os ponteiros parar a corrida rumo ao futuro para passarem a demorar-se, outra vez, na espera interminável do amanhã.
Foi entre as horas que passaram num bater de coração porque tu estavas e as horas que duraram eternidades na tua ausência que eu construí uma verdade sobre o tempo. E a verdade é esta: É o amor que move os ponteiros. É a saudade que os pára ou os demora. E és tu que me moves nesses tempos em que o tempo passa. Se ele passa depressa ou devagar, é uma incógnita que se desfaz em poeira. O tempo avança num ritmo que não é nosso. E não podemos detê-lo nem acelerá-lo. Mas temos tempo para o tempo. E, por entre essas horas que passaram num só segundo, já criámos eternidades que ninguém nos pode roubar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Única maneira


É a única maneira de amar. Assim. Completamente. Loucamente. Incondicionalmente. É a única maneira de amar.
Poderia haver outras, é claro. Intermédios entre tudo e nada. Graus de amor. Esquemas e calendários. Mas se escolhermos amar mais ou amar menos. Amar apenas nas horas em que dá jeito. Amar apenas quando é bom. Se escolhermos esse amor que se mede e se converte em mil medidas de insensatez, então escolhemos um não amor. Escolhemos não amar. Escolhemos gastar do uso essa palavra, até a esvaziar de tudo o que lhe dá sentido, deixando-a oca e desbotada pelos lábios que não traduzem a alma. 
É assim! Infinitamente. Tanto que se funde em nós, nos arrebata, nos corre no sangue. Tanto que confiamos os dias, confiamos a alma, confiamos a vida. Tanto que a ideia da ausência seja mais dolorosa do que a ideia da morte. É essa a única maneira de amar.
O amor não nasce para ser simples. Não chega para ser linear. Não nos é posto na mão para ser moldado consoante o que nos aprouver. Ele vem, às vezes de onde não o víamos, às vezes de onde nem existia e complica todo um universo dentro de nós. Não é fácil mas vale a pena. Justamente porque é completo e louco e incondicional. Porque não há outro tipo de amor, além desse que se estende e fica. Porque não há outro amor além desse que é bipolar e ora fere, ora cura, ora magoa, ora acalma...
É a única maneira de amar. Assim. Com os sentidos do corpo que deseja. Com os sentidos do coração que acelera. Com os sentidos da alma que se funde noutra para estar completa. É a única maneira de amar. Aquela em que o amor, mais do que amor, se transforma em vida. Aquela em que nos esquecemos de como seria o mundo, se a pessoa amada não estivesse ali. Aquela em que estamos certos de que, em estando sós, o destino será pior do que o fim perpétuo dos dias.
Seria simples compor a ideia de que há outras formas de amar. Inventar que podemos amar às vezes. Inventar que podemos marcar na agenda o dia e a hora do amor. Que podemos sincronizar os desejos e gastá-los todos num tempinho livre que surge aqui e além. Supor que poderíamos amar mais amanhã do que hoje, mais no mês que vem do que no mês passado. Que podemos oscilar os sentimentos, amar mais quando o amor, mais do que um anseio, se torna uma necessidade.
Mas o amor é fome e paixão e entendimento. É sincronismo, simultaneidade, compreensão. É estar unido e ser uno. É dar e receber, ouvir e falar. É estar completo na partilha e ser-se feliz mesmo quando dói. Amar é não estar só. Porque quem ama tem sempre o amor consigo. É esta a única maneira de amar.
Plenamente. Irracionalmente. Sem definições. Sem normas explicativas. Sem pensamentos mudos. Sem palavras forçadas. Simples como a complexidade do mundo. Só há uma maneira de amar. Apenas uma. Esta. De coração, com toda a força da alma e para sempre.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Contigo



Pode ser uma lagoa ou uma praia ou um coreto. Pode ser o meio da rua, uma esquina qualquer, um banquinho de jardim já meio sem cor. Pode ser o topo da montanha, o vale mais profundo, a floresta mais inóspita. Pode ser uma cascata ou uma cidade suja, com casas cinzentas e pessoas cinzentas a viverem meias vidas. Pode ser um trilho por explorar ou uma ponte de betão. Não me importa aonde. Eu só quero estar contigo.
Já andei por entre flores sem ver mais do que o negrume da cidade. E já nadei em águas correntes sem sentir mais do que o frio e a vontade da morte. Já caminhei junto ao mar, desejando que o céu se abatesse. O lugar onde nós estamos realmente é o que fica dentro da alma. Não gosto do mundo sem ti. O mundo sem ti pode ter praias e cascatas e florestas. Mas não tem alma, não tem vida, não tem cor.
Por isso, pode ser aqui, pode ser aí, pode ser num lugar que não seja teu nem meu. Pode ser além da distância, por entre a podridão ou no centro da mais pura das essências. Não me importa aonde. Eu só quero estar contigo.
Não há mapas que me levem até ti. Mas olhando para encruzilhadas e caminhos, compreendo que és o único local onde quero estar. Há mais do que lagoas e praias e coretos no teu abraço. O teu abraço tem constelações e galáxias e universos que ficam além do universo. O teu abraço tem poemas que ainda não foram escritos e desejos de fazer corar as fadas que se escondem nos bosques da minha imaginação. Não me importa aonde. Eu só quero estar contigo.
Já andei por entre a desgraça de uma vida sem a notar. Já conheci terras que se amontoaram num sem fim de não-memórias. Mas notei-te a ti e guardei-te, qual história de encantar, no recanto mais explorado da minha mente. E relembro, como um filme, cada pormenor insensato de ti, como se gravar-te assim dentro do peito pudesse trazer-te de volta aos locais onde já não estamos. Não estamos mas eu quero estar. Num lugar qualquer. Não me importa aonde. Eu só quero estar contigo.
E ficam as ruas gastas dos meus passos vazios, à medida que avanço, sem pegadas nem alento. As pedras da calçada perguntam-me a onde vou. E, sorrindo-lhes, eu respondo que não sei. Onde vou? O que importa qual o destino dos meus passos? Avanço para ti. E não me importa aonde... eu só quero estar contigo!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Até amanhã



Disseste "vá, até amanhã". Casualmente. Como se a distância entre o hoje e o dia seguinte fosse um salto comum e óbvio. Mas não era. Eu sabia. Tu também. O teu amanhã não se tratava do dia que vinha a seguir. Lembro-me de pensar "não te vejo mais". Lembro-me de o pensar, cheia de certezas, enquanto repetias "até amanhã, até amanhã".
Disseste-o, sem pensar, andando às arrecuas na direcção do carro. E tinhas os olhos vazios, enquanto as mãos seguravam a chave com a força da decisão da partida. Mas eu tinha lágrimas nos olhos e tu tinhas pena de mim. Porque é que tinhas pena de mim? Não sou digna de dó. Eram só lágrimas, nas imediações do olhar, recusando a queda. Mas bastaram. Bastaram para que olhasses para mim e me dissesses, andando atabalhoadamente na direcção do teu carro "vá, até amanhã".
Havia uma promessa implícita nas tuas palavras. "Não vou a lado nenhum", dizia essa promessa de amanhãs. Mas estavas a ir. Deste conta que estavas a ir? Prometias-me uma presença enquanto avançavas para uma distância segura, onde não podia agarrar-te nos braços ou selar qualquer promessa com um beijo. Estavas a ir. Na promessa ousada de que não irias jamais, estavas a ir. Afastavas-te de mim, passo a passo, com medo de voltares as costas pela ideia de que eu poderia chorar se o fizesses. E se chorasse? Ficarias se eu chorasse? Era disso que tinhas medo? De ficar?
"Até amanhã, até amanhã". O teu olhar vazio preso em mim não tinha a mais pequena nuance do sentir. E, enquanto te afastavas, notava que ele ganhava luz, como se eu fosse sombra e te roubasse o sol. Mas ias dizendo "até amanhã". Porquê?
Não ias simplesmente, com a naturalidade de um amanhã. Fugias. Era isso que fazias, enquanto me abandonavas no passeio e me dizias "até amanhã", com o mesmo desapego com o qual se pisa uma pedra da calçada. E, fugindo, avançavas na direcção dos sonhos que não podias cultivar no meu negrume.
Alcançaste o carro e sorriste. "Até amanhã", atiraste-me, ao abrires o vidro. E eu respondi-te o mesmo. De lágrimas nos olhos mas com um sorriso no rosto, ouvi os meus lábios descrentes dizerem "até amanhã".
E depois o carro partiu e eu fiquei. Sombra entre pedras da calçada, murmurando entre dentes: "adeus, sei que não te vejo mais".

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet


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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Evidentemente


Está escondido atrás do meu sorriso, nos cantos dos meus olhos e da minha mente. Permanece no centro do meu pensamento, tentando inutilmente fazer-se despercebido.
Está aí. Onde transparece e grita, onde se nota e clama. E move-se de mansinho entre as paredes do labirinto de mim, eterno vagabundo sem outra casa ou outro intento de vida.
Está aí. Acorda-me de manhã sem me deixar dormir à noite e move-me, o dia inteiro, no desejo de que o dia se torne noite outra vez. Quando tento escapar-me, ele toca-me no ombro. Um aviso regular, que me faz revirar os olhos, tentar e desistir da busca pela coerência. Está aí. Como está o ar. Não há uma explicação lógica, não há uma agenda nem um motivo... nem precisa de haver.
Está oculto nos recantos de mim. E faz-me feliz mesmo quando choro. É desafortunado e difícil. É persistente e inevitável. Maduro e racional. Vive cheio de saudades do passado mas também tem saudades do que está por devir. E inventa histórias feitas de palavras ditas ou pensadas. Faz desenhos com essas histórias e deixa que a minha mente decida colori-las com tonalidades fortes e vibrantes. Transforma-me pensamentos em desejos. Desejos em sonhos. Sonhos em segredos que não se contam a ninguém.
Está aí. Inevitável como respirar ou como uma batida de coração. Não sei de onde veio. Não sei para onde vai. Mas sei que está. E tento contorná-lo, pé ante pé, algumas vezes, consciente de que me tapa a vontade do que é real e imediato. Mas ele não deixa. Avança comigo, cega-me um pouco e faz-me ver tanto...
Está escondido. Aí, escondido à vista de todos. E ninguém sabe. Ninguém vê. Ninguém sabe que fica atrás do meu sorriso, nos cantos dos meus olhos e da minha mente. Ninguém sabe que permanece no centro do meu pensamento. Mas ninguém precisa de saber... É esse o sentido do sentir. Acontece dentro de nós. Muda tudo em nós, sem nos mudar. E avança connosco, qual gigante invisível. Pode não ter nome. Pode não ser claro. Mas está lá, faz-me sempre sorrir, faz-me feliz... e é por ti, evidentemente.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Adormeceu



Tocou um sino ao longe. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor...
Ela não tinha caído no sono. Esse sono é somente para quem, um dia, esteve acordado. E ela não tinha estado. Tinha estado dormente. Estava dormente para a vida havia tanto tempo que nem estava certa de ter vivido. Então, era-lhe negada a dádiva de fechar os olhos e cair no abismo profundo de um sono descansado. Mas adormeceu. Adormeceu aos poucos.
O seu sono começou nas mãos, que escreviam um bilhete. Nas mãos que escovaram o cabelo, até o deixarem perfeito. Nas mãos que abriram o frasco. Nas mãos que pegaram na água. Nas mãos que abriram a cama. Nas mãos que agarraram a almofada.
Adormeceram-lhe os olhos, fechando, levemente. Adormeceram-lhe os braços e as pernas, no conforto inegável das mantas. Adormeceu-lhe a alma cansada, magoada, ferida. Adormeceram um a um. Suavemente. Levemente. Aos poucos. E foram adormecendo aos poucos os sentidos débeis, até que, num último batimento, lhe adormeceu o coração.
Foi então que sorriu. Não sorria há muito tempo. Desde que a vida a deixara na dormência de não poder adormecer como todos os outros. Desde que as lágrimas tinham povoado os olhos que agora dormiam. O seu sorriso foi puro. Simples. Já não se lembrava de algo ser puro ou simples. Mas, no último batimento do seu coração, ela sentiu: sentiu a paz. Foi por isso que sorriu.
Não acreditava na eternidade da alma. Acreditava, sim, no fim da dor. Acreditava que a vida e a morte eram irmãs. Uma feita em dor, a outra em medo. Preferia o medo, ainda assim. E foi por isso que se fez adormecer aos poucos: primeiro as mãos, os olhos, o corpo, a alma. Por fim, o coração...
A dor adormecera também, ainda que o medo a tivesse acompanhado até ao fim. Enquanto a respiração adormecia, com o último bater do coração, o quarto ficou no silêncio do seu sono profundo, enquanto o bilhete escrito à pressa gritava incrédulo, pedindo clemência e compreensão. Uma clemência e compreensão que ela tinha sabido impossíveis enquanto adormecia para a dor.
E o silêncio firmou-se até que, ao longe, um sino bradou. Mas ela não ouviu. Ela não podia ter ouvido. Dormia. Dormia sobre uma imensidão de estrelas. Estava além de tudo. Fora do alcance de todos. Sorria levemente. E era bela naquele sono. Naquele sono profundo e acolhedor, do qual jamais acordaria.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet




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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Bailado azul



Ele. Uma coisa que devem saber sobre ele é que ele não sabe dançar. Sim. É importante. Ele não sabe dançar. Afirma-o com convicção. Reafirma-o quando alguém o rebate com a expressão feita do "toda a gente sabe". Ele diz que não. Que não sabe dançar. Que tem dois pés esquerdos. Que é descoordenado. E isto não é um pormenor. Isto é algo que devem saber sobre ele. Algo que precisam de saber, para entenderem a vastidão de sentidos que lhe compõem o eu. Ele não sabe dançar.
Conheci-o. Primeiro com olhares fugazes e sem que se trocasse uma palavra. Depois, com palavras ondeando sem que os olhares se cruzassem. Conheci-o e ele disse-me, algures entre letras e músicas, que não sabia dançar. Mas sabia da vida. Sabia de música. Sabia dos pormenores gigantes que tornam o mundo especial. Sabia de ciência. Sabia que não sabia dançar.
Tinha os olhos azuis. Não levemente azuis, como vulgarmente aparecem por aí. Mas azuis. Aquele azul que é mais azul que o céu e o mar somados. Um azul profundo. Qualquer coisa entre índigo e turquesa. Uma cor que ainda não tem nome. E, quando as palavras se misturaram com o olhar, numa proximidade que nos permitia falar e perdemos as horas a mergulhar nos olhos um do outro, o coração acelerou. O meu coração que não sabia que podia seguir acelerou, enquanto o dele, que estava certo de não saber dançar, fazia o mesmo.
As nossas palavras e os nossos olhares não se mantinham numa temática. Era o meu melhor amigo e falávamos sobre tudo. O mais trivial e o mais importante. Falávamos sobre o estado do tempo, do país, da vida, da alma. Às vezes, por entre as conversas, lá vinha a frase, a eterna frase que devem manter em mente: "não sei dançar". E é importante saberem isso sobre ele. Ele não sabe dançar. Dizia não saber. Acreditava piamente nas palavras que dizia.
Não saber dançar era o escape imediato para não ver que já dançava. Conheci-o em olhares fugazes, vendo-lhe os dedos a dançar num teclado de piano. Os dedos dançavam como os seus olhos compenetrados, cujo brilho ondeante tinha valsas de contentamento e realização. Dançava sim. Atrás das teclas pretas e brancas do piano, ele dançava em arcos-íris de cor. Sorria, com leveza, às vezes. Deixava o rosto tenso, nas outras. Mas o importante era isto: deixava os dedos dançar.
Descobri, quando passámos dos olhares fugazes, sem palavras, às palavras fortes, sem olhares que ele também fazia dançar as palavras. "Fui eu que escrevi a letra", contou-me, certa vez. Havia nas palavras, inerente, a dúvida. Ele não sabia que as palavras, tão simples e tão complexas, também lhe dançavam. Mas eu sabia. Sempre soube. Mesmo quando ainda não sabia que queria ser o par dessas danças de eternidade.
Um dia, quando as palavras e os olhares já se cruzavam e ele dizia "eu não sei dançar", o coração dele dançou. Dançou com o meu. Compassado, enérgico. Os passos dos nossos corações não eram simples. Eram tangos, valsas. Tinham um quê de ballet, de contemporâneo, de danças do mundo. Mas eles dançaram com simplicidade porque, mesmo que não o soubéssemos, era em sintonia que dançavam. Dançavam no uníssono que nos ligava as raízes que, entretanto, haviam de se enlaçar, escondidas sob a terra, como se não pudessem mostrar-se ao mundo.
Até que, já de palavras, olhares e danças cruzadas, as nossas certezas se uniram na compreensão de que a felicidade era um lugar a dois. E era. Então, com movimentos simples e subtis, caminhámos, pé ante pé, na direcção do contentamento.
Ele. Uma coisa que devem saber sobre ele é que ele não sabe dançar. E isto é realmente importante. Ele diz que não sabe dançar. Que tem dois pés esquerdos. Que é descoordenado. E, não, acreditem em mim: isto não é um pormenor! Isto é algo que devem saber sobre ele. Algo que precisam de saber para entenderem a vastidão de sentidos que lhe compõem o eu. Ele não sabe que sabe dançar.
Devem saber isto sobre ele para compreenderem uma coisa: ninguém dança melhor do que ele. Todos os dias de manhã, quando me diz "bom dia", eu sinto a alma dançar um bocadinho com a dele. E, quando me abraça, os nossos corpos enlaçados vibram numa qualquer coreografia. Quando os nossos lábios se tocam, tocam também as canções que nos fazem discorrer em movimento sobre salões de baile. E vamos dançando, todos os dias. A todo o momento. Vamos dançando juntos, em valsas de alma e coração.
Ele. É isto que realmente devem saber sobre ele, para poderem compreender. Ele diz que não sabe dançar. Não vale a pena contrariar as suas palavras convictas. Mas, apesar do que diga, a verdade é que ele sabe. Sabe e dança comigo como nunca ninguém dançou. Faz a minha alma dançar como nunca ninguém fez. Deixa a dele dançar com a minha. E se, olhando para ele, não virem a dança constante dos seus olhos, dos seus dedos, das suas mãos, dos seus sorrisos, da sua alma, do seu coração, verão sempre apenas a fachada bonita dos olhos azuis, sem nunca o verem. Olhem melhor. O importante é isto: ele realmente dança... e nem o sabe.

Marina Ferraz
Imagem retirada da Internet

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Guia para conquistar uma mulher



Os homens pedem um guia para conquistar uma mulher. As mulheres falam de romance e atenção como se fosse um guia. E o mundo segue a sua lógica incoerente, na inexistência de uma compreensão real ou mutua.
Pelas ruas fala-se da conquista como se fosse uma ciência exacta, comparável à matemática e tão complexa como a física quântica. Para eles, as mulheres são todas iguais. Para elas, eles não entendem as coisas que nós - todas nós, mulheres - queremos.
O guia prático para conquistar uma mulher é apresentado em manuais de duas páginas onde se fala de romance e actos carinhosos, de diamantes e presentes caros, de saídas e conversas sobre um futuro a dois. Dizem que as mulheres são coração. Que se deve tocar esse coração com o mesmo cuidado com o qual se tocaria num cristal demasiado fino para não o quebrar. Dizem que tudo o que as mulheres procuram é estabilidade, uma rotina a dois, compreensão, fidelidade...
No final desses guias, dessas conversas, eu reduzo a vida a uma de duas opções: ou nada daquilo está certo ou eu realmente não sou uma mulher.
Essas reduções tontas da mulher ao sentido e ao sentimento. Essas reduções inúteis da mulher ao amor e à emotividade. Essas reduções que tornam as mulheres apenas metade de si. Que tornam as mulheres todas iguais. Não as entendo. Não me revejo nelas. As mulheres podem ser fracas ou fortes; emotivas ou insensíveis. Podem querer o "para sempre" ou o "até nunca mais". Podem sonhar com o casamento ou com a liberdade. O guia prático para conquistar uma mulher deveria dizer isso: as mulheres não são de cristal  nem de pedra. São cristal e pedra. São cristal ou pedra. Não são todas de uma forma. Não são todas de outra forma. Algumas são até ambas ou nenhuma das duas.
Não venham dizer-me "a mulher é isto" ou "a mulher é aquilo". A mulher, em geral, é o que é. E cada mulher é um individuo. Cada mulher é outra coisa. Cada mulher é diferente da outra. Não se conhecem as mulheres em teorias desusadas e estereotipias com mil anos. As mulheres conhecem-se, uma a uma, com tempo e paciência. Porque é assim que se conhecem também os homens. É assim que se conhecem as pessoas...
As mulheres? Eu diria, num guia muito próprio sobre como  conquistar uma mulher que elas são outra coisa, algo que ainda não foi dito e que não pode ser estudado.
Para mim, as mulheres são seres de água e sal. É por isso que, às vezes, as lágrimas transbordam dos olhos tristes. As mulheres são seres de pedra e prata. É por isso que se aguentam de pé nas piores situações e não esquecem os valores à primeira dificuldade. As mulheres são seres de cores matizadas. É por isso que os seus humores variam e mudam e explodem. Mas se há uma coisa que as mulheres não são é todas iguais. Atrever-me-ia a dizer mesmo que são todas diferentes.
Por isso, o guia prático para conquistar uma mulher será sair com a alma aberta e ir à procura do que uma mulher é. Não existe um guia para conquistar todas as mulheres. Mas, se tiverem coragem, talvez consigam até conquistar o coração de uma. E, se forem realmente sortudos, talvez compreendam que a essência de uma mulher não pode ser comparada à de outra e consigam finalmente entender uma mulher... a mulher que, quem sabe, por algum motivo que ninguém entende, queira ser a vossa sem que precisem de um guia prático para a conquistar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Dominó



Para o meu avô

Dominó. As peças distribuíam-se. O olhar perdia-se nas pedras. O sorriso vinha, tímido. Os dedos encardidos pelo tabaco eram ágeis no movimento. Pousavas uma pedra atrás da anterior. Fazias chocar os extremos com um baque seco sobre a madeira da mesa. Semicerravas um pouco os olhos no sorriso e dizias, num tom de aviso claro e doce, "é a tua vez".
Tardes e tardes a fio, ritmadas pelo baque das peças, pelos olhares de ternura, pelas palavras aveludadas. Era a minha vez. Depois a tua. Depois a minha. Intercalávamos movimentos até as peças estarem dispostas sobre a mesa, sem que nenhuma sobrasse nas nossas mãos. E quando já não havia peças nas mãos, havia uma corrida de dedos, virando-as de novo, distribuindo-as de novo, olhando de novo, jogando de novo...
Nunca nos cansávamos. Às vezes, falávamos de tudo e nada. Outras vezes, silenciávamos as palavras. As nossas palavras eram amor. O nosso silêncio era conforto. Não havia nada em nós que não fosse feliz e completo.
É disso que me lembro melhor: do amor e do conforto. Dos pormenores. Pormenores como a forma ágil com a qual jogavas dominó. Pormenores como o cheiro à folha do tabaco, que de tão natural em ti, parecia doce. Pormenores como os teus dedos encardidos, quase sempre segurando o cigarro seguinte. Pormenores como o olhar calmo e perdido no horizonte do invisível. Pormenores como o tom e a doçura com o qual me informavas de que era a minha vez.
Eu era menina. Tu eras ancião. Sabias do dominó e da vida muito mais do que eu sabia ou viria a descobrir com os anos. Sabias que eu era criança mas viria ser mulher. Sabia que eras homem mas podias ser criança. E sabias que eu havia de recordar essas horas que me marcaste com o preto e branco da simplicidade.
Era realmente simples. Abria-se a caixa do dominó. Misturavam-se as peças dançantes. Distribuíam-se  com rapidez. O teu olhar perdia-se nas pedras mal o jogo começava. O sorriso vinha, tímido, brindar a primeira jogada. Os teus dedos. Ah, os teus dedos estavam encardidos pelo tabaco e nunca se cansavam de agarrar o cigarro seguinte. Mas eram ágeis no movimento e moviam as peças sobre a mesa. Pousavas a pedra atrás da anterior. Fazias chocar os extremos com um baque seco sobre a madeira da mesa. Semicerravas um pouco os olhos no sorriso e dizias, num tom de aviso claro e doce, "é a tua vez".
Ouço-te a voz. Ainda a ouço, a dizê-lo. Ouço-a e, por ser a minha vez, escolho construir-te, pormenor a pormenor, nas pedrinhas do jogo de dominó que guardei para mim, qual tesouro de prata e rubi. Sinto a saudade adensar e o amor intacto. É a minha vez. Agora vai ser sempre a minha vez porque não posso dizer que é a tua e esperar que o ouças. Mas a memória fica e, quem sabe? Talvez um dia, nessa terra distante onde é sempre Verão, possamos sentar-nos numa mesinha de madeira, com sorrisos leves para retomarmos esse jogo preto e branco, de amizade e amor, de palavra e silêncio, de avô e neta...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

domingo, 22 de setembro de 2013

Sete


Sete. São sete. São sete as letras da palavra memória. E a memória permanece. Permanece intocada nos recantos de tudo o que, afinal, não era bom, não era para ser e nem tão pouco era real.
E falo da memória. Falo porque não tenho medo. Já não tenho medo. Tenho só memória. Uma memória que se estende e se levanta, revelando o que havia por detrás de um sentimento que nunca foi nosso mas apenas meu.
São sete. Sete letras da palavra memória que se prende a sete anos de espera. Esperar por ti foi simplesmente esperar pela morte. Estava à espera da morte e sabia-o. O que eu não sabia era que o amor andava aí, à minha procura, à minha espera, dizendo que, algures, entre as árvores e os monstros de pedra, alguém queria fazer-me feliz.
A memória diz que também me fizeste feliz. Momentos efémeros de uma felicidade que se lavou com anos de lágrimas e amarguras. A dor era uma parte incontornável de mim mas não era minha. Vinha dos teus silêncios, da tua crueldade, da forma como usavas de mim somente o que era simples para desapareceres nos ventos.
São sete. Sete anos. Sete anos que tiveram muitos dias. Em qualquer um desses dias poderias ter mudado a história para criares uma memória em que  pudesse retratar-te de outra forma. Mas escolheste assim. Escolheste ser alguém que nunca esteve e para quem eu estive sempre. Alguém que deixava as promessas por cumprir, aglomerando-as em estruturas de fel e pedra poida, para serem vendidas a preço de saldo.
Na minha memória os teus olhos já não brilham e o teu sorriso já não ilumina. Porque a pessoa que eu um dia amei não existe atrás deles. A pessoa que eu amei morreu há muito tempo atrás, deixando somente a concha vazia e oca onde havia um ser humano que eu soube ser bom, decente, apaixonado e completo. A pessoa que eu amei perdeu-se nos confins de tudo o que nunca poderia ter sido para ter algo que eu não posso nem quero compreender. E espero que tenha valido a pena.
Nunca soube tanto sobre o amor. Mas, pensando em ti, o presente do verbo amar é "morreste-me". Morreste-me a ponto de te tornares memória e da memória dizer que a espera foi inútil. A pessoa pela qual esperei não poderia ter voltado porque, se alguma vez existiu, não existe mais. Amei verdadeiramente a ilusão. Chorei verdadeiramente a perda. Não sei se a mágoa era feita de amor ou luto. Sei que a palavra memória tem sete letras e que durante sete anos vivi sete vidas que foram mortes acordadas.
Sete. Sete anos e tantos dias em que podias ter mudado a forma como te revejo nas sete letras da memória. Sete anos para aprender que o amor é feito de tudo o que eu nunca tinha tido.
Sete. São sete as letras da palavra memória. E a memória permanece. Permanece intocada nos recantos de tudo o que, afinal, não era bom, não era para ser e nem tão pouco era real. Mas não importa. Estou a cumprir a promessa, com a memória pousada ao de leve sobre um coração que pecou, talvez, por te ter querido tanto. Estou a cumprir a promessa. Estou finalmente a cumprir a promessa que não fiz. Abri as asas e o céu chama. Adeus.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Consulta

Música: Helder Godinho | Vejam a letra desta música aqui 

O que quer saber? Diga-me. Não tenho nada a esconder. Já superei o medo dos fantasmas. Já deixei de ter lágrimas quedadas na primeira sombra da memória. O que quer saber? Pergunte. Responderei a qualquer coisa.

Se me considero triste? É por aí que quer começar? Está bem! Eu falo sobre isso. Sim, acho que sou um pouquinho triste. Não como se as decepções tivessem corrompido a minha alma. Não como se a vida tivesse sido a pior das minhas inimigas. Mas sim, sou um pouquinho triste. Acho que nasci com esse dom. O dom de ser triste. Pede que explique? Porquê? Não se entende assim? Está bem. Eu explico melhor. É como o senhor, por exemplo, tem o dom de curar loucuras. O meu dom é ser triste e tem o mesmo sentido que o seu. Entenda: a minha tristeza escorre pela tinta da caneta e imprime textos. Gosto de pensar que esses textos curam... se não loucuras, ao menos mágoas.

Como é que a tristeza de um texto pode curar? Deixe-me rir. A tristeza alheia cura mais do que qualquer outra coisa. Não ponho em causa a bondade das pessoas nem os seus doces e altruístas corações. Não acho que a cura venha de uma felicidade pela dor dos outros. Acho que a mágoa cura porque as pessoas entendem que não estão sós. A solidão dói mais do que a mágoa, sabe?

Se sou sozinha? Não sei. Nunca pensei nisso. O que é estar sozinho? Vivemos no meio de multidões... Sinto-me sozinha às vezes, sim. Mas isso significa que o seja? Não, não acho que seja sozinha. Acho que sou uma pessoa que anda por aí acompanhada pela solidão.

Quer uma palavra que me defina? Não posso dizer. Não insista, por favor. Não posso... talvez se fossem duas... em duas poderia talvez escolher o amor e o sonho. Mas aí faltaria dizer palavra e escrita e saudade... eu não sou uma palavra. Eu sou um universo de palavras e, acredite em mim, nem todas boas.

Se desejo a morte? Tanto como uma vida melhor, suponho. Mas isso também depende do que a morte é para cada pessoa, não é? Como eu vejo a morte? Eu vejo-a como mais uma passagem da alma. Ela veio de algum lugar, ela vai para algum lugar. Não sei se desejo a morte mas sei que não a temo. Se for o fim de tudo? Mesmo que seja o fim. Não temo. Para quê? Não vivi vida que me faça temer um fim perpétuo do que quer que seja.

Não está aqui para me julgar. Eu ouvi. E também sei que o está a fazer. Está a julgar-me em olhares que tentam ser indiferentes e em palavrões científicos nesse seu bloquinho branco. Mas eu não me importo que me julgue. Dirá, em palavreado médico, que sou louca. Mas eu sei que o sou. Dirá que sou depressiva? Bipolar? Esquizofrénica? Tudo bem. Pense o que quiser. No fim, o senhor ficará com notas no caderno e eu ficarei comigo. O senhor pensará que eu preciso de drogas e eu pensarei que estou bem. E a maior das loucuras é que, quando sair dessa bata branca e a realidade se abater, também vai sofrer e também vai sentir-se só. Em momentos de desespero talvez deseje a morte. Mas vai engolir a loucura desses pensamentos, recalcá-los, ignorá-los. É assim ou não é? Nunca se sentiu desta forma? Pode afirmar que nunca se viu a erguer os braços numa oração pelo fim?

Eu incomodo-o. Sei que sim. Incomodo-o, não porque sou louca mas porque sou sincera. Porque assumo o que penso e o que sinto. Porque não tenho medo de pensar e de sentir seja o que for. Agora que respondi às suas perguntas, diga-me só, com honestidade... responderia às minhas?


Marina Ferraz




terça-feira, 10 de setembro de 2013

Não



O Universo disse "não" mas nós não o ouvimos. Estávamos ocupados a olhar um para o outro, em busca de tudo o que ficava dentro dos olhares oscilantes, viajando aos trambolhões pela nossa mente revolvida.
O Universo disse "não" mas nós não o ouvimos. As nossas mãos tocaram-se numa caricia subtil. E os nossos olhos caíram no encaixe perfeito das nossas mãos, como se ali encontrassem a resposta para um quebra-cabeças infinito, chamado vida.
Tínhamos muito mais a perder do que a ganhar. Mas não fizemos caso disso. Quando o Universo disse "não", tínhamos os olhares perdidos, as mãos dadas e um sorriso no rosto.
Ensurdecemos. Ouvíamos apenas os nossos corações descompassados a baterem em uníssono, criando uma melodia pura, que atravessava estrelas e perdia guerras contra o luar.
Quando o Universo disse "não" e nós não o ouvimos, já era tarde para escutar qualquer negação divina. Eu era tua. Tu eras meu. Independentemente do passado, do futuro ou da vontade do Universo que dizia "não".
Tínhamos muito a perder. Mas também tínhamos os olhares colados e as mãos dadas e os corações a baterem em uníssono.
Quando o Universo disse "não", ainda que o tivéssemos ouvido, não teríamos dito "não" um ao outro.
As mãos largam-se. Os olhares perdem-se. O coração pára. O Universo disse "não". Mas eu não acredito. Não acredito que os olhares esqueçam o que viram, que as mãos apaguem o toque, que o coração pare de bater em sincronia.
Não acredito que as mensagens que os nossos sorrisos passaram se lavem com lágrimas nem que sejamos condenados por nos darmos em toques de felicidade.
O Universo disse "não" mas nós não o ouvimos. Estávamos ocupados a ser felizes. Estávamos ocupados  a ouvir tudo o que fica nas entrelinhas dos nossos silêncios.
Quando o Universo se cansou de gritar palavras que eu nunca ouvi, foi o amor que me tocou no ombro: "O Universo disse que não", avisou-me, num meio sorriso que nos interrompeu o olhar.
Eu fitei o amor e encolhi os ombros. "Ele disse que não?", perguntei e o amor anuiu, em silêncio. "Pois eu digo: que se lixe o Universo. Estou ocupada a ser feliz..."

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Aos olhos da Lua


A Lua olhou para baixo. Outrora fora o seu encanto. O mundo dos homens fascinara-a, no tempo em que os homens eram do mundo. Lembrava-se concretamente de rios sem barragens, de florestas sem gruas, de vilas sem cimento. Lembrava-se concretamente do verde, do azul. Um diamante em bruto, cheio de vida, sempre que olhava para baixo.
O Sol tinha-a avisado: "Não te iludas! Um dia, quando te beijar, não vais olhar para baixo e sorrir. Há na aprendizagem humana todos os meios que levam ao caos.". Ela tinha-o ignorado. O Sol podia ser quente mas também era pessimista. Os humanos eram fascinantes. Honravam-nos com oferendas e flores, com cânticos e orações. A Deusa Lua, o Deus Sol. Honravam a Terra e a Água e o Ar e o Fogo. O Fogo... lembrava-lhes a alegria quando o tinham descoberto.
Em tempos fora o seu encanto: olhar para baixo e encontrar florestas virgens, rios indomados, mares sem portos, pessoas que sabiam qual a imensidão da Mãe Natureza.
Então, por força do hábito, a lua olhou para baixo. Olhou na busca de uma ilusão. Fitou primeiro os passeios cinzentos, depois a imensidão vermelha e negra dos telhados, depois as florestas de betão. Suspirou. Era triste olhar para o mundo, naqueles dias. Triste como imaginar uma noite sem o beijo do Sol. Uma noite de escuridão.
Desviou o olhar. Acima de si, apenas o negro, ao seu lado o seu eterno amante, debaixo de si a destruição. Queria chorar e não podia. Era uma das coisas que nenhum Deus tinha dado à Lua: olhos que chorassem a devastação que viam.
Lançou um olhar de soslaio ao Sol. Ele dormia, descansado, com o brilho colado ao seu rosto. Como podia ele dormir tão descansado? O mundo, abaixo deles, já não os honrava. As flores tinham dado lugar a estatuetas disformes. Os rios corriam, imundos, para um mar tóxico que ceifava a vida a tantos, tantos seres vivos.
A Lua olhou para baixo. Não porque houvesse algo que valesse a pena ver mas apenas porque o caos lhe puxava o olhar minguante para um infinito de nada. Desesperou nesse olhar, como tinha desesperado antes, tantas vezes. O que seria de si quando os monstros voltassem? Destruiriam a sua face com mais do que bandeiras e pegadas? E se, olhando para si, disforme como a Terra, o Sol já não viesse para lhe beijar o rosto?
A Lua olhou para baixo. Se houvesse uma gota de água nos seus mares, teria chorado. Como não havia, afastou-se um pouco do Sol e fez-se nova para que ninguém, naquele mundo destruído, olhasse o céu e percebesse como ela estava triste.


Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Banda sonora


Fazes parte da banda sonora da minha vida. A cada passo dado, sinto-te tocar os acordes da minha felicidade, numa busca pelo que fica dentro das melodias do amor.
Tocas-me com facilidade as cordas gastas da alma, como se soubesses de cor como travar o desafino constante das mágoas que me assombram e fazer soar apenas o que é belo em mim. Mas dás-me pelos defeitos e sorris-lhes. Fazes dos meus sons um caminho sem silêncios. Seguras-me a insegurança, sem sequer te aperceberes e matas-me a ansiedade com uma nota solta de alegria.
Fazes parte da banda sonora da minha vida. Tocas em mim. Tocas para mim. Tocas-me a mim. E, subitamente, é como se tudo fosse música, como se tudo encaixasse, peça a peça, e se eternizasse, aos poucos, numa balada de sentimentos e de sentidos.
E a música vai tocando. À medida que o tempo passa e a mágoa desvanece, abrindo espaço a um sem fim de emoções sadias, que se espelham em mil memórias inventadas sobre o que está para vir.
A música vai tocando: leve e certa, completa, suave, perfeita. Tem som, tem letra, tem voz. Todas elas unidas pela concordância sentida da dualidade das almas que se completam e se confortam.
Tem o tom da felicidade e do sonho. Tem o tom do que fica escondido sob as coisas que nem todos conseguem ouvir. Mas nós conseguimos: tu e eu. E, por conseguirmos ouvi-la,  sorrimos na distância incoerente, ao som de uma mesma canção, cheia de promessas de eternidade.
Fazes parte da banda sonora da minha vida. Como se todas as músicas do meu passado dolorido tivessem tocado penas e amarguras apenas para que, depois, tocasses tu. E foi em crescendo que me vi chegar a ti, sem saber que, na minha vida, podia ainda tocar algo tão belo.
Sim. A música vai tocando. O seu som inunda-me a sala, a casa, a alma... e deixa-me esquecer que alguma vez tive outra canção além da tua. Soas a esperança e a felicidade. Soas a destino e eternidade. E a música vai tocando em mim. Faz-me dançar. Sorrir. Faz-me sentir que nenhuma outra música me mereceu os passos e as coreografias. Faz-me sentir que nenhuma outra canção me mereceu as lágrimas - alegres ou tristes.
Fazes parte da banda sonora da minha vida. Cantas-me. Tocas-me. Conheces-me e entendes-me. E a minha alma gosta de ver as suas cordas serem tocadas pelos dedos insensatos das tuas palavras, dos teus planos, dos teus desejos.
É uma música perfeita. Uma música que só tu sabes tocar e só eu sei ouvir. Porque é nossa... e de mais ninguém!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O mago


Vem comigo ver o mago. Chegou ontem à cidade e todos falam dele. Dizem que transformou terra em pedra. Dizem que transformou a rocha sólida em flor. Na flor mais suave, na flor mais linda. Dizem que olhou para o céu e transformou as nuvens em pó e o pó em estrelas.
Vem comigo ver o mago. Dizem, pelas ruas, que ele transformou muros em estradas e das estradas fez caminhos que davam para ir a qualquer parte do mundo.
Dizem que tocou no chapéu de um mendigo que pedia esmola e o transformou na mansão mais imponente, que sorriu a um seixo e ele se fez borboleta e voou, cada vez mais alto, mudando de cor, mudando de forma, até se tornar ave.
Vem comigo ver o mago. Ele passou pelas ruas da cidade e transformou lágrimas em sorrisos, saudade em harmonia, violência em dança.
Passou pelas ruas e transformou casebres em castelos, velhas em meninas, sementes em árvores com flores e frutos.
Anda. Vem comigo. Vamos ver o mago. Vamos vê-lo transformar a morte em vida, a dor em sossego, a podridão em arte. Vamos segui-lo em silêncio pelas ruas cinzentas e ver o cinzento ganhar cor a cada toque, a cada olhar.
Vem comigo ver o mago. Anda. Não percamos tempo! Quem sabe se ele não transforma o teu silêncio em palavras e a tua indiferença em amor.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

A lista


Um dia vamos andar de mãos dadas pela rua. De dedos enlaçados num abraço apertado que se estende além dos olhares de quem passa. Não deveremos explicações a ninguém. Por isso, deixaremos que olhem, mesmo sabendo que, olhando para as nossas mãos, não nos compreendem a alma, também enlaçada em abraços e sentidos.
Iremos ver o mar. Sorrir aos pores do sol. Olhar dentro dos olhos um do outro, ignorando até as estrelas que espreitam do céu, depois de um sol invejoso se deitar com o oceano.
Um dia, vamos correr o mundo. O mundo poderá ser dois passos convergentes até um abraço cheio de cidades. E não vamos ter pressa, nem roteiro, nem destino. Apenas os braços um do outro, um sorriso nos lábios e um brilho no olhar.
Iremos a lugares que ninguém vai, por trilhos incertos. Cairemos aqui e ali no desconhecido. Mas vamos erguer-nos, erguer a esperança e confiar nas palavras nunca ditas do nosso coração.
Um dia, vamos abrir as asas e voar, à medida que o chão desaba sob os pés que firmámos durante tempo demais. E voaremos alto, voaremos juntos, enquanto as estrelas nos piscam o olho e a lua cresce no céu nocturno.
Iremos agarrar o café e a manta. Deitar no chão das nuvens a olhar o infinito. E vamos deixar que se dê um abraço entre as almas, enquanto cantas uma canção de embalar e deixas os dedos navegar nas ondas dos meus caracóis imperfeitos.
Um dia, serei tua e serás meu. Sem medo de perdermos quem somos por nos darmos. Sem medo de perder a liberdade por não querermos outra liberdade senão essa onde nos damos um ao outro.
Iremos adormecer abraçados e acordar com sorrisos comprometidos, por entre rostos sem maquilhagem e cabelos emaranhados. Riremos da forma sem jeito como me escondo debaixo das mantas e da forma desajeitada com a qual encaro tudo o que é novo.
Um dia, o sorriso vai transformar-se em rotina. Sorrindo, olharemos um para o outro e saberemos que tudo em nós foi certo, evidente, destinado. E o abraço das nossas almas ganhará raízes e asas, na certeza de que, por vezes, ser livre é apenas escolher ficar.
Um dia. Um dia, tu e eu seremos nós. Entre a simplicidade da minha lista de desejos, seremos mais do que a imaginação permite. Talvez sejamos eternos. Talvez sejamos poeira de um sonho real. Seja como for, tenho a certeza: quando esse dia chegar, seremos a expressão mais pura da felicidade.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Carta do amor


Pessoas do mundo,

Gostaria de vos perguntar como estão. Seria simples começar assim, pela pergunta retórica do óbvio. Mas não vou perguntar. Sei a resposta. Vocês estão feridas. Feridas pela oportunidade que passou ao lado. Pela traição desvendada. Pela discussão inacabável. Pela rotina sem fim que vos encheu os dias. Então, como eu sei a resposta, não vou perguntar.
Querem saber como eu estou? Eu estou ferido também. Ferido pela vossa insensatez. Ferido pela forma como usam o meu nome, sem o pensarem, sem saberem o que ele significa. Ferido pela culpa que me atribuem quando os vossos erros tornam a vossa vida um inferno.
Eu estou cansado. Cansado de ouvir dizer que a culpa é minha. Cansado de ser chamado, abandonado, espezinhado. Cansado de ser o tema interminável dos vossos diários, das vossas conversas, das vossas ilusões. Estou cansado de ser chamado em vão, no primeiro vislumbre do desejo. Cansado de ser tratado como o fruto podre de uma árvore que jamais deu flor.
Eu não tenho culpa. Não tenho culpa que a cada passo que dão julguem encontrar-me nem que me vejam em sítios onde eu não estou, em lugares onde nunca fui, em recantos que jamais visitei. Eu escondo-me bem dentro dos confins do tempo. Quando me virem de verdade já terão usado o meu nome erradamente, já me terão traído e odiado.
Eu não sou perfeito. Levo tempo. Tempo para crescer, tempo para criar raízes. E preciso que respeitem o meu tempo. Mas eu não sou cruel. Não sou o vosso eterno inimigo. Não construo a minha felicidade na vossa tristeza. Eu sou as estrelas que brilham mais, os pores-do-sol mais bonitos, o mar mais intempestivo e azul. Eu sou o verde das árvores. Eu sou o curso dos rios. Eu sou o sorriso breve, envergonhado. Eu sou a mão dada pelos caminhos e a promessa feita e jamais quebrada. Eu sou a dificuldade superada, a paciência infinita, o choro de mansinho na hora da partida.
Gostaria de vos perguntar como estão. Seria mais simples. Mas eu sei como vocês estão. Estão sentados, à espera que eu entre nas vossas vidas e resolva os problemas que dizem que fui eu a criar. Mas eu não entrei nas vidas de todos vocês e, certamente, nunca vos feri. Quem vos feriu foi a ilusão de que me tinham nas mãos. Quem vos feriu foi uma ou outra pessoa que, como vocês, não me viu.
Eu não nasci para me dar. Nasci para que me dêem e me recebam no peito. A culpa não é minha se a ferida nasce da ilusão antes de me agarrarem com a ternura de um embalo. Tudo o que eu quero é que sejam felizes, inteiros. Que encontrem as minhas metades e as juntem. Que sorriam, superem e sejam mais e melhor.
Querem saber como eu estou? Eu estou desiludido com o mundo. Desiludido porque quanto mais ouço o meu nome, mais compreendo que não sabem quem eu sou...


Eternamente vosso,
Amor

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet