terça-feira, 25 de novembro de 2014

Podia falar



Podia falar-te da dor. Conheço-a bem. Andámos na mesma escola e partilhámos a vida durante muito tempo. Sei que ela não é compreendida por todos, embora, cedo ou tarde, todos acabem por se dar com ela e a acolham no peito, por mais ou menos tempo.
Sim. Podia falar sobre a dor! Todos a conhecem. Mas eu entendo-a. Entendo-lhe a alma amargurada e a necessidade de se fazer presente, de se fazer notar, de aparecer e de tentar permanecer nos recantos e permeios de todas as partes da vida. Conheço-a bem. Por isso, podia falar sobre ela.
Mas eu não quero falar-te sobre a dor. Acredito que a compreendesses, como eu. Que entendesses e até aceitasses que, em alguns passos, ela foi chão em vez de abismo. Talvez acabasses por lhe agradecer, admitindo, como tantos antes de ti, que ela te ensinou mais do que alguma vez poderia roubar-te. Mas eu não quero ser a pessoa que se senta e te explica que conhece a dor, que a trata pelo nome. Não quero ser a pessoa que te convence que existe uma razão, seja qual for, que valide o sofrimento. Haveria mil razões. Mas para quê? Sofrer já dói o bastante sem o peso da justificação.
Não! Não vou falar-te da dor, embora pudesse fazê-lo. Seria simples. Conheço-a bem. Mas, no cultivo constante deste amor por ti, compreendo que não é a dor que quero trazer para o centro das nossas conversas.
Eu quero amar a sorrir. Quero amar a sorrir porque estou farta de amar a chorar. Passou o tempo das lágrimas. Elas saíram de moda e eu já não quero usá-las. Cansei-me de abraços desertos à almofada molhada. Cansei-me de dizer boa noite à solidão entrecortando a palavra com o gemido cansado do choro. Eu já amei a chorar, nos tempos em que conheci a dor. E chega! Agora quero amar a sorrir. Não quero falar-te da dor.
Durante muito tempo, esperei. Julguei que esperar podia trazer-me de volta o que nunca tive. Julguei que, se chorasse o suficiente, os Deuses entenderiam a necessidade que guardava de ver esse retorno acontecer. Os Deuses viram. Viram, mas sabiam da vida e do mundo coisas que eu não podia aprender de outra forma que não esperando. E, sem fazerem nada, ensinaram-me bem a lição. Não quero falar-te da dor. Não importa quão bem a conheça. Não quero falar sobre ela.
Podia falar-te da dor. Essa que toda a gente sente. Uns de propósito. Outros sem querer. Outros, ainda, por não saberem querer outra coisa ou que existe outra coisa para se desejar. Mas estamos aqui. Tu e eu. E já não é tempo de amar com lágrimas nos olhos. Por isso, mesmo podendo falar-te da dor, não vou fazê-lo. Não vou fazê-lo porque hoje sei... A vida não tem um prémio para quem sofrer mais. Ser triste é apenas ser triste. Ser feliz é outra coisa. E a recompensa é essa mesmo. Ser feliz.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ameno



O tempo, lá fora, quer-se ameno. O amor não. O amor não é para ser ameno.

O amor quer-se quente, desenfreado e louco. O amor quer-se nos intervalos entre a paixão, o medo, o encanto, a luxúria. O amor quer-se nos recantos ensurdecedores de um coração desaforado. O amor é para ser devasso, às vezes, para ser intempestuoso, quando calha. Para nos aquecer as almas no centro do corpo e o corpo no centro da cama, no centro do mundo, no centro da vida. O tempo, lá fora, quer-se ameno. O amor não.

O amor quer-se em beijos sem pudor e nas mãos dadas pela rua. O amor quer-se em folias desiguais e na seriedade infantil das horas. De vez em quando, quer-se que aqueça ao ponto do impossível, que ruborize o rosto e envergonhe. De vez em quando, quer-se frio, duro, ponderado. O amor é um tudo e nada instável. Um quente e frio em constante permuta. E é assim que deve ser. O tempo. Esse deve ser ameno. O amor não.

O amor quer-se por entre a multidão ou na falsa solidão do deserto. Quer-se à mesa, no sofá, na cama. Quer-se no chão e nas paredes. Quer-se no corpo vestido e na alma nua; quer-se na alma coberta e no corpo exposto. O amor quer-se, no temporal das paixões e no calor  das amarguras. O amor quer-se quando começa a ventania, para dar conforto e quando a serenidade pede pelo afago. O tempo, lá fora, quer-se ameno. O amor não.

O amor é para ser louco. O amor é para rebolar na areia da praia, para correr por entre as árvores da floresta, para cair nas colinas do tempo. O amor é para arrancar o riso, arrancar o choro, arrancar o que fica de permeio entre uma coisa e a outra. É mesmo assim: extremista e ponderado, instável e volúvel. O amor é para ser explosivo, para ser inteiro, para ser inconstantemente constante nas nossas vidas. É para ser quente, para ser frio, para ser cálido ou glacial, para ser soalheiro ou chuvoso. Às vezes umas coisas, outras vezes outras. Às vezes tudo ao mesmo tempo. Tanto faz. Mas ameno? O tempo lá fora, sim, deve ser ameno. O amor não!

O amor não nasce para ser insosso, intermédio, cómodo. O amor nasce invernoso nos Verões. E desafia, puxa os limites, acrescenta pontos, lima arestas, constrói mundos melhores com pessoas melhores. O amor estimula, afronta, busca o que fica atrás dos sentidos, constrói sentidos novos, luta contra os códigos e as convenções e até com as luas e as marés, se for preciso. O amor pode dar conforto, claro. Mas não pode, não deve, ser conformista, acomodar-se, amenizar-se. O tempo lá fora, quer-se ameno. O amor não.

O amor é feito de amizade e de paixão e de desejo. O amor é feito de companheirismo, de ardor, de afeição. E é feito de luta constante: por um, pelo outro, por ambos... por um lugar melhor, por ser melhor, por ter melhor. E, tão cheio de tudo, o amor é chama e arde e consome. É terra e céu. E às vezes, no amor, chove e faz frio. Às vezes faz sol e aquece até ao limiar da impossibilidade. O tempo, lá fora, quer-se ameno. O amor não. Um amor ameno seria amor a menos. E amor a menos não é amor. Por isso, embora o tempo se queira ameno, o amor não. Nunca o amor...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Amor cativo



Eu não sou o céu. Admirei-me, por isso, quando escolheste sentar-te a meu lado, em vez de voar. Perguntei-me se terias visto as minhas asas e ignorado as raízes que, feito correntes, me prendiam ao solo. Depois reparei que olhavas para elas, que sabias que eu não podia fugir da realidade para te dar um pouco desse céu que eu não sou.
Enquanto te sentavas, cada dia mais perto do meu coração, questionei-me se terias enlouquecido. E, cada vez que te aproximavas, confirmavas as suspeitas que eu guardava no peito. Mantinhas as asas fechadas e olhavas-me como se no meu rosto visses milhares de sóis, espelhados em pontinhos luminosos e incandescentes de luz. Tentei dizer-te eu não era o céu. Talvez fosse noite. Talvez fosse trevas. Mas não era céu. Não havia estrelas, nem galáxias, nem sonhos distantes em mim. Eu era prisioneira da terra onde criara raízes.
Cada vez mais perto, notaste-me por fim as asas. As asas negras e fechadas. As asas imperfeitas e  mirradas que já não sabiam abrir-se. Chorei, de te ver tocares-lhes com as pontas dos dedos. Perguntaste se me estavas a magoar. E, deixando as lágrimas cair no rosto triste, disse que não. Expliquei que não podia voar. Repeti que não era o céu. Que nunca poderia ser, para ti, essa imensidão de luas e luares.
Levantaste-te. Pensei que ias embora. Entendi que não me espantaria que fosses. Aceitei que o adeus era tudo o que podia morar nesse movimento leve, lento, subtil. E, sabendo o quanto magoam as raízes, aprendi a deixar que fosses, por mais que a saudade viesse ocupar o lugar que deixavas a meu lado. Não disse palavra que te indicasse que deverias ficar. Ainda assim, depois de te levantares, não partiste. Envolveste-me o corpo nos braços e disseste que me amavas.
Uma palavra de amor. Simples. Calma. Sem artifícios desnecessários. Sem avisos forçados. Senti quebrar as raízes que me prendiam ao solo e o negrume que me tornava escrava da noite. Abri as asas. Descobri que o seu negro se iluminava no calor do sol. Podia ser livre. Por fim. Mas também te amava. Então, acorrentei o meu coração ao teu. Vi-te abrir as asas também. E voámos juntos por aí.
Eu não sou o céu. Tu não és o céu. Mas sentaste-te a meu lado. E enquanto estivermos juntos não há céu que não possa ser nosso.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Esperar


Eu não posso esperar que o mundo gire ao contrário nem que as estrelas cadentes se transformem na realização dos meus desejos insensatos. Não posso desejar que o tempo pare, que ele volte atrás e me devolva o que de mim se perdeu pelo caminho. Não posso esperar que mudes: que mudes de ideias, que abras o coração, que me recebas na imensidão de um abraço. Não posso esperar que o meu coração pare de vez ou que aprenda a bater apenas quando te sentir por perto. Mas, ainda assim, posso esperar por ti a vida inteira.
Posso esperar. É isso mesmo. Não me entendas mal.  Posso esperar, mesmo sabendo que não voltas. Mesmo sabendo que vives sem sequer saber que eu espero. Posso esperar. A espera depende só de mim.
Voltes ou não. Acredita em mim. Posso esperar. Posso parar, na insensatez, arrebatada pela loucura. Posso erguer-me, permanecer de pé, ganhar raízes no chão poeirento desta memória de ti que vivo sozinha. Posso esperar. E,  mesmo que não o saibas, posso orar em silêncio para que fiques bem, quando a vida te destroçar. Posso desejar, num cruzar de dedos, que os nossos caminhos se cruzem, ainda que o façam apenas ocasionalmente, num "olá" de corrida, dito a medo.
Eu não posso esperar que o tempo volte atrás. Não posso esperar que ele me devolva o que perdemos nem que me espere, mais à frente, um futuro mais brando do que o presente. Não posso desejar que o mar retorne à nascente e tudo recomece, aos poucos, para eu poder acertar aonde errei. Não posso esperar que me estendam as promessas que foram quebradas nem que as reparem com poções e feitiços de encantar. Mas posso esperar por ti a vida inteira.
Posso esperar. Hão de dizer que é errado. Esperar, para alguns, pouco é além de uma escolha consciente da morte. Mas, como eu posso esperar, não importa o que digam. Não irão abalar-me, não irão mover-me. Hei-de esperar por ti a vida inteira, ainda que a vida não acabe no amanhecer tardio de um dia onde não estás.
Entende. Eu não posso esperar nada do Mundo. Não posso esperar nada da vida. Não posso esperar nada do passado ou do presente ou do futuro. Tudo o que eu posso fazer é esperar por ti. Esperar a vida inteira por mais um pedaço de céu. Esperar a vida inteira para poder sorrir outra vez.
Que vida doce será essa que viverei, esperando por ti. Pois esperar por ti é esperar pelo amor, viver de amor, ser amor. Eu não posso esperar nada da vida mas posso esperar por ti a vida inteira. E a vida terá o teu nome, nos (re)cantos intocáveis do meu pensamento, onde o amor se ergue mais forte do que o tempo que passa sem estares aqui.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet