terça-feira, 30 de março de 2021

Ohana

 


“Ohana means family and family means nobody gets left behind.”

- Lilo e Stitch

 

 

Dou-te a mão. Dás-me o mundo. Agarras o mundo e partes.

 

Olho-te nos olhos. Mesmo se os trouxeres fechados. És-me fruto e ventre. Pareces frágil. Já foste o meu exército inteiro. Tens um riso pendurado nos lábios. Neles, pendem lágrimas.

 

Seguras as gotas da chuva nas nuvens. Tens um semblante espectral, todo feito do concreto da vida. Dou-te um sorriso. Dás-me a Força. Agarras a Força. Defendes-me com a Força. E és bondade. E és abnegação. E és raiz.

 

És a noção que eu tenho quando não tenho noção. A palavra que sobra quando se agita o dicionário e se chocalham os conceitos. Não há discussão, guerra, pandemia ou evento celeste que te arranque da página onde também eu estou. Sou criança. Tenho medo. Sou adulta. Tenho medo. Estás. Agarro-te. Com ambas as mãos. Solto-te. E ficas à mesma.

 

Tens canções de embalar sem som. Tens poemas sem rima. Tens amargos muito doces, vertidos no melaço que nos cola aos tempos do Eterno. Somos a resistência. Nós contra os outros. Nós contra o mundo. Nós contra o que vier.

 

Enchemos a mesa e somos um. Trazemos os invisíveis. Celebramos na mesa cheia onde se saboreia o passado e o presente. Trincamos um gomo de um futuro imutável. Todas as nossas mesas têm o mesmo número de pratos. Usamos o serviço inteiro. Nunca sobram lugares vazios na nossa mesa. Quem nela se sentou, sempre se senta. Quem nela se sentou, sempre se sentará. Cabem mais fantasmas do que intrusos no nosso âmago. Não lamentamos.

 

Somos gang. Somos seita. Somos coven. Somos espaço impenetrável. Indestrutível. Incontornável.

 

Dou-te a mão. Dás-me o mundo. Agarras o mundo e partes. Mas, mesmo indo, nunca me largas a mão. Mesmo indo, nunca vais. Estás sempre. Vais estar sempre. Vais estar para sempre. E, um dia, quando não estiveres, mesmo assim estarás.

 

Porque família é isso.

 

Um sinónimo de amor, um sinónimo de sempre, um sinónimo de para sempre... onde o abandono não cabe.


Marina Ferraz






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!


terça-feira, 23 de março de 2021

Turfa

 


Terra e turfa. Crescemos assim. Entre a seiva do que a vida é e a decomposição lenta do que a vida foi. Entre o substrato efetivo do que é a essência humana e a sua corrupção. Entre a base e a essência do que é bom e puro, e a putrefação dos espíritos.

 

As pessoas deterioram-se e alimentam a mágoa. Com ela, os boatos, a extorsão, a perversidade. Almas degeneram nesta turfa social. Gente podre, com ideias putrefactas, absorvendo para si os nutrientes da terra, drenando a Terra, com ideias a decompor-se em amargura e conflito. Poderiam ser somente fragmentos nebulosos de nada. Mas não são. À medida que se decompõem na pior versão de si mesmas, as sociedades transformam-se, a pouco e pouco, na sobra triste do que a essência do humano pode ser.

 

Deus não devia estar muito feliz com o seu jardim. Abandonando-o, deixou crescer as silvas e as ervas daninhas, juntamente com a morte e os destinos piores do que a morte. As flores que sobram sentem-se sós. O abandono pesa-lhes. Choram. As lágrimas que vertem criam ambientes pantanosos e húmidos onde a turfa cresce e adensa, no deteriorar de troncos e raízes e ventres carnudos de seres mais ou menos indignos.

 

Olho com pesar para uma sociedade decadente nas ideias e nos jeitos. Questiono se o amor morreu com esse deus ou se, vivo noutra dimensão, ele o tomou a si, para servir nos banquetes divinos onde o humano jamais se sentará.

 

E os humanos. Essa turfa social que se amontoa em cidades, desperdiçando recursos da Terra e ignorando o mundo alheio. Enriquecendo ambiciosamente onde gente morre de pobreza. Comendo em demasia vendo na televisão os que morrem de fome. Tomando longos banhos de água potável com crianças a morrer de sede… Essa turfa social…

 

Perguntaram-me. Um dia. Não serve para nada? Serve! Rica em nutrientes, mesmo que pútridos, essa realidade triste alimenta e aduba os meus poemas. Nutre-os de uma sabedoria que eu dispensaria ter.

 

Algures, alguém me lê e diz. São bonitos. Os teus poemas. Leio-os. Guerra. Desapego. Desamor. Desesperança. Morte. Traição. Mentira. Abandono. Despojos. Direitos perdidos. Fascismos. Desencontros. Desilusões. Perdas. Violência. Lágrima. São bonitos. Os teus poemas. E eu leio-os novamente, à procura de algo que não seja triste. De algo que não seja mágoa. De algo que não seja estorvo. E ecoam as palavras. São bonitos. Os teus poemas.

 

Tento estender as minhas raízes. Levá-las ao centro da Terra. Ser una com as ideias e valores que tomo por certos. Agradeço. Com sinceridade. A simpatia das palavras. São bonitos. Os teus poemas. Mas a minha alma chora. Sabe. Mais bonito seria que não fosse preciso escrevê-los.


Marina Ferraz






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

 

 


terça-feira, 16 de março de 2021

As aves do Rio Pranto

 



Pousaram.

 

Quando pousaram, queriam descansar. As asas pesam. Mesmo se ar as preenche. As asas pesam.

 

A liberdade tem um sabor agridoce nas línguas dos pássaros que pousam.

 

Ter asas é ter responsabilidade sobre o céu que se povoa e o ninho que se habita. Ser dono das migrações e senhor das rotas. O destino é memória e o caminho é instinto. O preço do insensato é a morte.

 

Ter asas é ser presa e predador. Destino escravo. Intérprete de línguas mortas. Escrivão de passados etéreos. Ter asas cansa.

 

Pousaram.

 

Quando pousaram, queriam descansar. Colocar sobre as pernas débeis um pouco do peso das asas. Libertar o ar para que fosse espuma e beber das águas do rio.

 

Livremente, pousaram no Pranto. Um bando de independência exortada, cheia de penas que rimavam com o pranto das margens.

 

A água do rio não era pena e a água do rio não era água. A salubridade das lágrimas choradas pelas nuvens tinha uma tonalidade de espelho na tarde que caía.

 

Viram o seu reflexo cansado nas vertiginosas ondas circulares dos seus passos. Anjos caídos no cansaço do voo. Senhores de muitos desertos.

 

Pousaram.

 

Pés frágeis sobre o espelho-Pranto do rio-agrura. O seu reflexo era peixe e queriam ir na corrente. Dormir.

 

Invejaram a liberdade dos peixes. O vazio mental dos peixes. O esquecimento dos peixes.

 

Afogaram-se nesse pensamento e voaram mais leves, abandonando a ideia nos lodos ribeirinhos.

 

Voaram.

 

Quando pousaram, queriam descansar. Mas não há descanso para quem tem asas. Há muitos encargos na senda de se ser livre.


Voaram.

 

Atrás deles o Rio Pranto era só Pranto e o rio não era rio.

 

Voaram.

 

As aves do Rio Pranto eram peixes acordados numa corrente de ar. Sopro. Fôlego. Respiração. À procura do amenizar de um cansaço eterno.

 

É difícil voar. E muito mais difícil ser ave. E muito mais difícil ser livre.


Marina Ferraz






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

 

 


terça-feira, 9 de março de 2021

O resumo

 


Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles.

 

 

Era coisa de menina. Cabeça no mundo dos sonhos. Universos de fantasia na cabeça. Lápis e caderno. Um Jardim Secreto. Umas férias grandes. Um trabalho de casa. Se o livro tinha 110 páginas, o meu resumo tinha 20. E a professora lá escrevia, debaixo da resma de papel, ativa representante da floresta que eu tinha acabado de destruir: Falta de espírito de síntese. À qual acrescentaria a jocosa nota. Ao menos já não preciso de ler o livro.

 

Era uma coisa de menina. Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles. Mas também era uma coisa do eu. E que cresceria comigo. E que tomaria o seu lugar nos patamares da minha realidade.

 

Não sou de reduzir nada a uma palavra só. Uma lista de compras – tarefa alegadamente simples – complexifica-se. Em frente ao nome dos artigos, lá se encontra a nota do local onde estão em promoção ou a justificação da necessidade da compra, ou outra nota qualquer, só porque sim. Salmão (está em promoção na superfície comercial X), detergente da roupa (mas só se estiver com um bom preço porque ainda tenho para duas lavagens), uvas (ver se há das brancas e se estão decentes).

 

O mesmo se passa com questões simples. Não há conversa sobre notícia de jornal que não gere conversa sobre o jornalismo, sobre o estado do mundo, sobre os antecedentes históricos que nos trouxeram aqui ou sobre o potencial de mudança. Análises simples sobre o rio que transborda com a chuva transformam-se em cáusticas observações sobre as alterações climáticas, o degelo dos glaciares, a globalização do conhecimento, as lógicas do capitalismo e a forma como – real e metaforicamente – é quem está na “baixa” que se afoga.

 

A minha professora tinha razão. Tenho falta de espírito de síntese. Ou talvez só de síntese, por excesso de espírito.

 

Nunca fui muito boa a resumir numa palavra o que quero dizer. Seja para o ato mais simples do quotidiano ou para o mais complexo. Sempre achei que as palavras deviam vir em conjunto, numa verdadeira celebração discursiva, que as misture e encadeie, em lógicas e semânticas e demagogias. E nunca tive medo delas, pelo que as usei sempre, em abundância, para tudo e nada. Mesmo quando, sozinha, divago apenas com as paredes sobre assuntos diversos, que tanto podem ser sobre Física Quântica como sobre como a melhor estratégia para encaixar as minhas 30 horas de tarefas nas 24 horas do dia e ainda dormir um pouco.

 

Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles.

 

Falei sempre pelos cotovelos. Escrevi sempre até me doerem as mãos. Criei um calo de escrever no dedo que frequentemente me apetece mostrar aos políticos nacionais. Nasci e continuei sempre a ser uma pessoa que prefere pecar pelo excesso do que pela falta.

 

E, depois, penso na Morte. Como não sou sintética, pinto sempre uma história extensa em torno da forma como ela há-de vir até à minha cama, sentar-se ao meu lado e falar comigo, antes de me levar. Também essa conversa é desenvolvida e longa, até porque caraterizo a Morte com muitas palavras, que lhe definem o semblante e a voz e a extensão da mágoa, antes que se inicie o diálogo. Mas, quando o diálogo vem, uma das questões – entre as muitas outras que idealizo – pede-me síntese.

 

Imagino que a Morte - senhora de negro, perpetuamente escrava da sua condição de eternidade e dona de uma empatia muito rara – me pergunta assim: Se tivesses de dizer o que definiu a tua existência, o que te levou pelos anos, o que te deu sentido, para que nasceste e viveste neste mundo, o que dirias?

 

Imagino que a Morte tenha pressa. Imagino que tenha mais onde ir. Mais sopros para cessar. E, claro! Sumários, resumos, sínteses e breviários. Nunca tive jeito para eles. Mas imagino-me a ter!

 

Imagino que, com simplicidade, resumo tudo atabalhoadamente e sem medo. Confiante e firme. Imagino que, erguendo a mão para agarrar a dela e ir, deixo o sopro voar com as asas da eternidade, numa resposta breve.

 

Para amar.


Marina Ferraz






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!

terça-feira, 2 de março de 2021

Fénix

 

Fotografia de Astro Photography



Anoitece-me o olhar. Quando o céu olha os meus olhos, as suas nuvens são gás e poeira. Cor. Nesse escrutínio morro e renasço. Vivo. Sejam bem-vindos ao Caos.

 

 

Saio pelas ruas procurando ervas e vigas. Há tons de canela e mirra, de sálvia e de osso. Preparo a pira. Sobre ela me deito. Paixão a paixão, a história vira embarque e ninho. Desapareço nas labaredas da crónica que ninguém escreveu. Consumida pelo gelo cálido das injustiças da Terra.

 

A luz das madrugadas infelizes dita-me dois destinos indulgentes. Força e imortalidade, de mãos dadas com o vazio, transfiguram-se em pó. As penas soltas. Um futuro que ondeia na insensatez da queda. E eu voo para o oculto.

 

Observo o céu aberto onde os pirilampos moram. E ele olha para os meus olhos, que inevitavelmente são mar. Sódio e pranto. Olhos que ardem. Sangram. Neles se reflete toda a imagem do corpo que já não sobra sobre a pira que acendi, regada de amargor e com acendalhas ocas.

 

Palavras e gestos. Ausências. Espaços brancos entre a ode e o ferro. Lâminas de gadolínio. Tóxicas. Com um número atómico indefinido de questões que descrevam o rumo da História.

 

Incendeio-me na aurora e renasço na penumbra do pensamento, quando anoiteço. Os olhos interessados do céu, focando-se em mim como se fosse braço estrelar de uma constelação qualquer.

 

Imploro ao céu que não olhe. Mas cada um dos seus astros é olho, impregnado de interesse e indiscrição, tentando mergulhar no mar nebuloso dos meus versos para encontrar portais para o Reino dos Sonhos.

 

À medida que me arde a carne carcomida pelos demónios mundanos a que chamam gente, eu percebo que o calor emana um aroma de violetas e flor de macieira. Faço amor com a simplicidade nua das cinzas. E o céu aplaude. Aplaude quando me anoitece o olhar. Quando ardo. Quando sorrio. Quando morro. Quando renasço.

 

De repente, por entre a cinza, novos olhos e novas cores. Olhos abertos de espanto na novidade do eu que se renova. E o céu olha novamente os meus olhos. Neles, encontra sobrevivência e engenho. Amor e morte. Medidas certas de incerteza.

 

 

Anoitece-me o olhar. O Caos, plantado a 1500 anos-luz de distância, é parto e berço das minhas estrelas. Verte-se dela a água da Vida que eu bebo. Há lágrimas rosadas e azuis nos olhos que me fixam. Espelho inconcreto destes meus olhos que choram com as suas nuvens de gás e poeira.

 






2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
Estou a preparar novidades incríveis!

Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem tudo em primeira mão!