segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Não é suficiente


Não é suficiente. Desculpa. Não é. Por mais que eu tente. Por mais que eu procure. Para quê? Para quê continuar a mentir ao vento? Ele sabe a verdade. Tu também a sabes. E eu também. Não é suficiente. Nunca vai ser suficiente.
De manhã, acordo no teu abraço e, ainda ensonada, esboço um sorriso, por entre o escuro do quarto e a tua luz. Mas esse sorriso? Esse sorriso, escondido nas sombras da manhã, não é suficiente para te dizer como me fazes feliz.
Pelas ruas, dou-te a mão. Aperto a tua na minha, não para lhe roubar o calor, mas porque quero sentir-te perto. Mas a mão que te dou, pequena e fria, com as cicatrizes do tempo, da vida, das teimosias... a mão que te dou não é suficiente. Não chega para te deixar saber como quero enlaçar contigo, não só os dedos mas toda a vida.
Falo muito. Demais. Tantas palavras. Quantas delas escusadas? Quantas delas despropositadas? Mas falo. Falo-te. E o som da minha voz, diga o que diga, não é suficiente. Não basta para te explicar como as manobras do destino me deixaram com uma divida de gratidão aos Deuses. Não basta para explicar como me sinto feliz, honrada, completa por estares aí.
Então, não sendo suficientes as palavras ditas, os sorrisos esboçados, as mãos dadas, eu sento-me e escrevo. Escrevo sobre ti. Escrevo para ti. Mas nunca te escrevo a ti porque as palavras não são suficientes. Nunca é suficiente para te descrever o rosto perfeito, o sorriso perfeito, as mãos perfeitas, a alma perfeita... As minhas palavras não conhecem a perfeição. E, por isso, também não chegam, não bastam, não são suficientes para te explicar como és o meu tudo. Não são suficientes para te dizer como te amo.
Choro, por vezes. É mesmo assim. Choro por medo de não ser, também eu, suficiente. Choro por saber que quero merecer-te, que quero merecer o teu amor, que quero merecer a tua perfeição. Mas as lágrimas não são suficientes para apagar a certeza de que as palavras, os sorrisos, as mãos dadas não chegam para explicar...
E fico a sonhar com o hoje, com o amanhã. Mas assusto-me um pouquinho na perspectiva de que não basta... há tanto para vivermos lado a lado. Uma vida não é suficiente!
Por isso, não. Não é suficiente. Desculpa. Por mais que eu tente. Por mais que eu procure. Não é suficiente. Nenhuma palavra é suficiente para explicar o que sinto. Uma vida não é suficiente para tudo o que quero viver contigo.
Não é suficiente. Eu sei que não é. Mas, não o sendo, é o que posso dar-te: as minhas palavras, o meu coração, a minha vida...  então, eu dou. Entrego-me a esse sonho acordado e desejo baixinho que, por alguma razão, isso seja suficiente.
Ainda assim, na certeza de que não o é, sinto-me desesperar um pouco na conclusão de que o meu coração não é suficiente para albergar um amor tão grande. Tu também sabes que não. Por isso, dás-me o teu. E isso sim, é suficiente e basta para fazer um segundo valer pela eternidade.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Carta de Natal


Querido Pai Natal,

Eu queria escrever-te uma carta. Aposto que recebes muitas e que a minha será apenas mais uma sobre um monte infinito de outras, quase todas mais importantes e com pedidos mais urgentes. Mas peço-te que leias a minha primeiro. Preciso que a leias e que a faças seguir por aí. Porque só tenho um pedido. Apenas um.
Não me falta nada. Nunca faltou. Em criança, tive todas as prendas de que precisava e o meu quarto encheu-se de brinquedos. Com muitos deles, nem cheguei a brincar. Fui uma criança doente mas amada. Nunca me faltou quem me levasse ao médico, nunca me faltaram medicamentos, nunca me faltou, sequer, o amor e carinho de mil entes queridos. Fui muito afagada, muito cuidada, muito amada.
Sobre a mesa, fosse Natal ou não, houve sempre comida em abundância. Nunca passei fome, nunca passei frio, nunca me senti desamparada. E, mesmo assim, todos os anos te escrevi, pedindo coisas que não precisava, na esperança de encontrar no sapatinho, sob a árvore de Natal, um sem fim de extravagâncias tolas. Mas a minha família amava-me. Amava-me tanto que me oferecia, não apenas o necessário mas também esse supérfluo que me enchia o sapatinho de embrulhos perfeitos e coloridos. E, por isso, das coisas que te pedia nessas cartas, cheguei a ter quase todas.
Foi com o tempo que comecei a escrever mais e a escrever-te menos. Deixei de acreditar em ti bastante cedo, embora me tenham feito fingir que te acreditava até tarde. E eu fingia, por eles, porque era importante para eles que eu julgasse que, voando sobre os telhados, espalhavas prendas e alegria pelo mundo. Mas deixei de acreditar em ti cedo, quando os supermercados começaram a vender, não apenas as prendas mas também uma imagem de ti que não me fazia sentido, enquanto os telejornais espalhavam imagens de guerra, de miséria, de fome pelo mundo.
Não fui uma criança informada. Como quase todas, ignorava muito do que via. Mas, de alguma forma, olhava para o mundo com olhos críticos. E esse olhar fez com que de criança a jovem e de jovem a mulher, soubesse sempre que andava de mãos dadas com a sorte.
Nunca me faltou nada. Não me falta nada. Tenho família, amigos, um amor forte e persistente que me faz lutar pelo melhor de mim. E tenho estudos, tenho cultura, tenho mais livros nas prateleiras do que algumas bibliotecas. Tenho um sonho, tenho pessoas a apoiarem-me nesse sonho.
Nunca me faltou nada e continua a não me faltar coisa alguma. Mas pedi-te que lesses esta carta primeiro. Pedi-te que o fizesses porque preciso que compreendas que, quem te escreve, como eu te escrevia, muitas vezes tem uma vida de ouro nas mãos e a ilusão da necessidade. E, se calhar, não é importante que distribuas por aí brinquedos caros e instrumentos tecnológicos de última geração.
Este ano, mais de quinze anos depois de ter deixado de te incomodar com pedidos, envio-te esta carta. E preciso que a leias e que a faças seguir por aí com o único pedido que posso conceber fazer-te. E esse pedido é simples: oferece amor a quem está infeliz, conforto a quem não tem lar, comida a quem passa fome e agasalhos a quem passa frio. Oferece um abraço a quem está só e uma palavra a quem está triste. Oferece um futuro a quem está preso ao passado, uma oportunidade a quem está desesperado, um sonho a quem vive sem esperança. E, se está nas tuas mãos a possibilidade de ofertar tudo isto, peço-te que o faças o ano inteiro e não apenas no Natal.
Eu fui uma criança com sorte. Nunca me faltou nada. Mas, no mundo, há gente a quem falta quase tudo. Por isso, este ano, o meu pedido é para ti, sim, mas não só. Peço-te que leves esta carta a quem, como eu, teve tudo. Peço que a espalhes por aí e que faças com que ela seja lida e relida por aqueles que têm o poder para fazer a diferença. E peço-te que, este ano, quando conduzires o teu trenó sobre o mundo, espalhes um pouco de consciência e solidariedade sobre este meio de consumo onde se enfatiza cada vez mais o egoísmo e a cegueira.
Talvez esta seja a última carta que escrevo. Espero que não te importes. Não é por mal. É apenas porque não há mais nada a pedir e não quero que a minha carta, repetitiva e insistente, te desvie a atenção das milhares restantes, onde mais pessoas cheias de sorte te hão-de pedir coisas das quais não precisam, apenas porque é Natal...

Com os melhores cumprimentos,
 Marina Ferraz

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Outra mentira


Inventa outra mentira. Uma que me faça chorar. Uma que me faça virar costas e discutir com o sol. Uma que consiga tirar-me do sério, que me faça responder-te mal, com cinco pedras nas mãos e um "adeus" de corrida.
Inventa uma mentira melhor. Uma que me faça bater a porta. Uma que me faça fazer as malas e fugir de ti. Inventa uma mentira que me arranque o sorriso tonto da face, uma que me fira de uma forma tão profunda que eu sinta as lágrimas a correr nas veias em vez de sangue.
Inventa outra mentira. A que quiseres. Inventa a coisa mais simples, a mais complexa. Inventa algo com ou sem sentido. Imprime na voz o tom de certeza inabalável e mente-me, com os olhos firmes e o rosto expressivo de quem não mentiria jamais. 
Mente-me. Não vou pedir que sejas a verdade de ti. Não quero que aniquiles a tua natureza e que me digas somente a verdade a todo o momento. Mas, se fores mentir, inventa uma mentira melhor. Uma que eu não perceba. Uma que eu perceba e não me magoe. Uma que eu perceba e que me faça odiar-te. Tanto faz. Mente-me, se é o que queres mas, por favor, se for para me mentires, inventa uma mentira melhor do que essa com a qual me enches os dias e as noites e os ouvidos. Estou cansada. Inventa outra mentira. Qualquer outra, desde que eu não a queira ouvir.
"Amo-te!" é uma mentira injusta. É uma mentira que se faz verdade na sombra dos meus desejos. É uma mentira que faz vibrar o meu corpo e bater forte o meu coração. É uma mentira que dizes, naturalmente, mesmo sabendo que não é verdade. O teu amor morreu nos teus olhos. O teu amor morreu no teu toque. O teu amor morreu. Mas manténs viva a ideia desse amor nos teus lábios e sussurras-me ao ouvido, dizendo que me amas, porque sabes que o meu amor está vivo.
Por favor, inventa uma mentira melhor. Uma mentira que não me faça sentir especial. Uma mentira que eu não queira ouvir a cada segundo da eternidade. Uma que não me faça agarrar-te nos braços, prender os lábios aos teus, desejar que me mintas a tempo inteiro.
Inventa outra mentira. Uma mentira que não mova os meus dias na ilusão de uma vida que nunca vou ter. Uma mentira que, quando se revelar verdade, me faça ficar aborrecida e não derrotada. Uma mentira que, em sendo descoberta, me faça desejar o nosso fim e não o meu.
Se algum dia esse "amo-te", hoje tão cheio de indiferença, foi verdade, inventa uma mentira melhor. Eu ouço-te a mentira e sorrio. Sei que é mentira e aceito. E seguimos juntos este trilho onde sei tão bem que já estou só.
"Amo-te", a palavra ecoa, uma vez mais, mentida, vazia, sem um brilho no olhar. E faço de conta. Faço outra vez de conta que talvez, por detrás das camadas de indiferença, ela possa ser verdade. Então, recosto-me nos teus braços, sorrio e, inebriada pela tua mentira, digo a verdade e confesso que também te amo.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Alma gémea




A minha alma gémea é menina mas caminha já, com passos largos, para a mulher que será um dia. Tem o rosto carente e o olhar solitário. Chora com facilidade e nem sempre responde no tom mais educado do mundo. Além disso, intempestuosa e irritável, faz fita e grita contra os ventos antes de dar a quem quer que seja a hipótese de justificar porque é que a vida nem sempre corre como se espera.
A minha alma gémea é alta e esguia. Tem corpo de bailarina porque o trabalha assim, em passos e pontas. Faz-se de forte para esconder a sensibilidade. Faz-se de fraca para conquistar nos outros a simpatia.  É exigente com o mundo e ainda mais exigente para consigo. Não aceita as derrotas. Não aceita o segundo melhor lugar.
Ela ainda não fala de amor, embora o sinta. Sente-o, é claro, naquela dimensão infantil de "gosto de ti". Mas não fala de amor. Diz apenas "ohs" e "ah huns" que se transformam em sorrisos tímidos e ecoam pela casa, seguidos de risos nervosos. Ela não sabe se quer amar, talvez porque tenha aprendido, em olhares perspicazes, que, no amor, não há vencedores e vencidos, não há primeiros lugares.
A minha alma gémea gosta de música e filmes. Não entende de política e economia. Evita os telejornais e as conversas sérias, com um revirar de olhos e uma mudança de divisão. É vaidosa e pinta as unhas mais vezes do que as necessárias, de volta em vez, camada em cima de camada, um dedo de cada cor. E combina com os arcos-íris das suas mãos os brincos espampanantes que sobressaem e gritam por entre os caracóis louros e desfeitos que não consegue domar.
A minha alma gémea apaixona-se com facilidade pela imagem utópica de um futuro nas artes. E faz planos a dois, comigo, como se eu e ela pudéssemos ficar juntas para sempre. As frases para amanhã começam por "nós". Inclui-me, como quem não o nota, em cada plano. Não concebe que a realização dos seus sonhos possa estar num lugar onde eu não esteja. É dependente de mim. Não mais do que eu dela. Na mesma medida. É um contrato implícito: eu ensino-a a sonhar e ela dá-me um motivo para viver. Eu ajudo-a a viver e ela segura-me os sonhos quebrados, fazendo dos sonhos dela também os meus.
Ela não faz sentido. Passa da pessoa mais doce à pessoa mais cruel. Da pessoa mais educada à mais respondona. Da mais trabalhadora à mais preguiçosa. Passa do riso às lágrimas. Do choro ao sorriso. Intercala facetas e humores com uma agilidade tão louca que se torna impossível acompanhá-la.
A minha alma gémea quer tudo e quer tudo ao mesmo tempo. Não se contenta com fragmentos de felicidade. Não tolera a injustiça. Vive num caos muito próprio e entende-se nele como ninguém.
Não! A minha alma gémea nunca será entendida pelo mundo. Mas quando me vê abre um sorriso e quando sorri faz-me sorrir também. A minha alma gémea não é um rapaz qualquer que me conquistou o coração e partiu, deixando mil textos e mil tristezas. É uma menina, a caminhar em passos largos para a mulher que será um dia. E, timidamente, eu sigo-lhe os passos, à espera desse dia. Com a amargura velada de perder nela a criança, o orgulho desmedido de poder vê-la crescer e a certeza infinita de que ela será para sempre a minha alma gémea.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Metade



Foi sempre assim. Metade. Como se não houvesse forma de ser maior. Melhor. Completo. Foi sempre metade. Solidão acompanhada. Vitórias perdidas. Momentos entregues ao ar, para se dissiparem juntamente com a sensação de que nada estava certo. Metade.

Foi sempre assim. Olhar ao espelho e ver o corpo sem a alma. Estar triste e sentir uma alma sem corpo. Estar magoada e saber o coração sem vontade. Metades das metades de mim, divididas aos poucos, até não serem mais do que grãos de poeira a esvoaçarem pelo céu da minha vida, ocultando-me o sol da felicidade.

Nunca conheci outra coisa. Apenas metade. Metade da vida. Metade do contentamento. Metade da realização. Metade das metades sem fim que se acumulavam em nadas, em vazios, numa sensação eterna de que metade da vida era um caminho para a morte que tardava.

Foi sempre assim. Metade. Parcelas indefinidas de mim que não eram eu. Sonhos empilhados em poemas, que se somaram em livros e se empilharam em estantes onde metade dos sentimentos eram meia mentira. E metade dos sonhos ficaram esquecidos nas meias mentiras onde meias verdades dançavam valsas sem par.

Sem conhecer outra coisa, habituei-me ao espelho que me mostrava metade de mim. Habituei-me a ver metade do meu rosto chorando metade das lágrimas que me inundavam a alma e a sorrir meios sorrisos quando me cruzava com gente no meio da rua.

E metade dos sentidos ficaram presos nas metades indivisíveis do que nunca foi completo. Sem que houvesse mais do que cicatrizes na metade mais frágil da minha pele onde se cumpriu metade de uma profecia que fazia meias promessas de uma eternidade oca.

Foi sempre assim. Metade. Metade amor. Metade vazio. Metade alegria. Metade tristeza. Metade sorriso. Metade lágrima. Metade indolência. Metade euforia. E as metades somavam-se em mais e mais metades de vazio, que eram metade eco, metade vontade, metade de nada.

E eu caminhei, em meios passos por meias ruas onde pessoas às metades olhavam para mim e me viam inteira, como se eu pudesse sê-lo. E rasgava-se em mim a vontade da vida que seguia, andando de metade em metade, tentando emendar com costuras largas e mal feitas os espaços vagos das metades que sobravam e das que não havia em mim.

Andei pelos trilhos mais negros do que ficava no mais fundo. Procurei as metades certas que se uniam às minhas metades e me podiam tornar alguém com um principio, meio e fim. Procurei as metades que me dariam coerência, sorriso, felicidade. E cansei-me de olhar para dentro das minhas metades de vazio onde já não parecia haver metade de nada que valesse a pena.

Foi sempre assim. Metade. Como se não houvesse forma de ser maior. Melhor. Completo. Foi sempre metade. Solidão acompanhada. Vitórias perdidas. Momentos entregues ao ar, para se dissiparem juntamente com a sensação de que nada estava certo. Metade. Foi sempre assim. Sempre. Até eu descobrir, nos confins do meu coração, que és a metade que me faltava.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet