terça-feira, 27 de setembro de 2016

Não vás



Não vás. Não queiras crescer demasiado depressa. Ainda tens os olhos recém-nascidos para o mundo. Acreditas que o podes mudar. E talvez possas. Mas não queiras ir mudá-lo já. Vais ter tempo. O tempo é o que menos falta num mundo onde falta quase tudo.
Sei que não parece. Sei que a fé abranda o tempo e que parece que não estás a fazer nada. Mas estás! Estás a preparar-te para mudar o mundo. Um dia. Outro dia. Mas espera. Antes de segurarem as armas, as tuas mãos precisam de segurar outras mãos. Antes de abrirem para as conversas formais e os gritos de guerra, os teus lábios precisam de conhecer a profundidade dos beijos do verdadeiro amor. Antes de te levarem à distância, os teus pés precisam de criar pegadas no centro do que te torna tu. Não queiras crescer demasiado depressa. Não vás.
Não vás. O chamamento é claro mas não é teu. Não queiras que seja. Não queiras crescer demasiado depressa.
Sei que te deram o sonho. Que o sonho virou semente. Que a semente ganhou raiz e que ela alastra dentro de ti. Sei que é ela que te brilha nos olhos. Esses que são recém-nascidos para o mundo e que eternamente desejam a hora de voar mais longe.
Não vás. Não queiras crescer demasiado depressa. Ainda há sonhos à espera de te encontrarem na inocência dos anos, enquanto as nuvens que chovem lá fora são incapazes de te resfriar o coração virgem e intocado. Esses sonhos esperam encontrar-te aqui, onde guardas a inocência dos anos e a pacatez da infância, a necessidade do afago.
Eu sei que queres ir. Como soa a promessa essa partida! O mundo já to pede – chamando, em tom de assombro, o teu nome, num sussurro. Ele chama. Eu ouço. Tu ouves. Queres ir. Não quero que vás. Por favor, ouve antes a minha voz. Não vás. Não queiras crescer demasiado depressa.
Eu sei que te falei de concretização. Que te disse que podias ser quem quisesses. Mas ainda tens muito a aprender. Ainda não te falei das vontades do mundo, de como elas se sobrepõe às tuas, nem de como se aprende, nas curvas mais sinuosas do caminho, a superar as decepções com um sorriso no rosto. Eu sei que queres ir. Lá, onde podes ser quem ainda não és e onde te podes tornar o concreto de todas as tuas irrealidades. Mas não vás depressa demais.
O horizonte tem uma tonalidade de ouro e diamante nos teus olhos de safira. E, nos teus olhos, esses olhos onde vibra a ilusão do que se transforma em desejo do amanhã, eu vejo a promessa retardada do amanhã que, para ti, nunca mais chega e que, para mim, se aproxima numa corrida desleal. Quero envolver-te no manto de pedra dos meus braços e impedir-te de crescer. Selar-te a vida neste tempo em que se saram os desgostos com um beijo e um pedido de desculpa. E tudo se esquece. E tudo recomeça, como se houvesse pequenas eternidades de mel no agridoce dos teus sentidos. Mas, nos teus olhos, reflecte-se o horizonte. E deles ecoa o chamado que te faz erguer e avançar. Cada passo mais perto da idade. Cada passo mais longe de mim.
Não vás. Não ouves. Não queiras crescer demasiado depressa. O sonho. Ali. Vais crescer. Quero dizer que não estás preparada. Duvido. Questiono. Decido. Quem não está preparada sou eu! Cresceste demasiado depressa. Vai. Precisas de ir. Vai mudar o mundo. Mas, por favor, Espera apenas mais dois segundos. Por mim. Eu vou contigo!


Marina Ferraz





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terça-feira, 20 de setembro de 2016

La Muerte



“La muerte, la muerte”. Era o que ouvia. Caía-lhe dos lábios. Com peso de pedra. Gritado. Um grito que parecia ter ficado preso na garganta. Entalado. Tempo demais. E a voz rouca e sofrida, com ecos desse anteontem engasgado. Inquietude. “La muerte”. Sabor acre do veneno sensaborão dos dias que passavam na boca onde havia dentes podres e estas palavras: “La muerte”.
Não tinha pernas. E agitava os braços. Não havia intento. Se alguém lhe lançava uma moeda, soava o grito. “La muerte”. Era só o que pedia. Não queria nem comida, nem dinheiro, nem palavra. Na sua esquina vendia-se apenas sujidade e não se pedia esmola. Os olhos, claros de cegos, prendiam-se ao céu como se o vissem. E furavam a multidão. Furavam as roupas, as peles e as carnes. Chegavam aos ossos, que roíam com as palavras: “La muerte!”.
E atravessavam as ruas pessoas em passo de fuga, não fosse o homem sem pernas persegui-las até ao infinito conforto dos seus lares. Temiam-lhe a imagem. Mas mais as palavras. “La muerte”. Ninguém quer ouvir falar da morte. Como se, a cada menção, o lembrete da efemeridade provocasse chagas pelos corpos. Uma queimadura constante na recordação passiva de que somos apenas carne à espera de apodrecer sob as camadas arenosas da terra movida.
“La muerte, la muerte”. Mesmo na rua vazia, a voz soava. Uma solidão que se fazia aviso. E um aviso que não passava de oração. Tinham-lhe tirado as gentes. As pernas. Os olhos. A dignidade. E, por tanto tempo, a voz. Naquela esquina da rua, invocava o direito à voz. E era a voz que elevava já para pedir a morte em vez de esmola.
Quando morreu, ficou a parede grafitada. E nela alguém escreveu “La vida”. Mas ainda se ouve na rua. Não tem olhos. Nem pernas. Nem braços que agite. Nem voz que erga. Mas ainda se ouve. Mais claro. Mais alto. “La muerte”.

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Adoeço



Adoece-me o rosto no cansaço. Pálido e olheirento, ele toma tonalidades amareladas, gastas, pouco sadias. E vincam-se sob os olhos tapetes inchados onde há lágrimas por verter e negrume. Adoece-me o rosto. E há nele traços incontestáveis que se chamam de sintomas. O diagnóstico faz-se nas ruas. Parece doença. Mas é cansaço.

Adoece-me o coração na mágoa. Arrítmico, descompassado, toma ritmos seus, que diferem do mundo e dos restantes corações. Bate e, uníssono com o ritmo da cidade. Uma cidade de caos. E dói no peito, enquanto bate. Um aperto, um sopro. Pausa e retorna. Adoece-me o coração. E há no seu ritmo traços incontestáveis. Sintomas. O diagnóstico faz-se à mesa, sobre as refeições, acompanhado de vinho verde. Parece doença. Mas é mágoa.

Adoece-me o corpo na angústia. Seco. Escanzelado. Constantemente à procura do que não tem, seja sal ou amor. E a intercalar entre a dor severa e a moinha constante, permanente. Essa que não quebra mas verga. Essa que não mata mas mói. Adoece-me o corpo. E, nas suas arestas há traços incontestáveis do mal que me aflige. Sintomas. O diagnóstico faz-se nas conversas de ocasião. Parece doença. Mas é angústia.

Adoece-me a alma na solidão. Incauta, imunda, recheada de promessas não cumpridas e de palavras por escrever. Tem rasgões do tamanho de rios e crateras do tamanho do Universo. Faltam-lhe bocados. Permanece rasgada, dentro de mim. E os pedaços rasgados estão amarrotados e sujos. Já não sou eu. Adoece-me a alma. E transparece, projeta-se no mundo essa matéria que a aflige e a corrói. São os sintomas. E faz-se o diagnóstico nas avenidas dos sentidos. Dizem que é doença. Mas é solidão.

Adoece-me o sonho no tempo. Triste e pardacento, vai descolorando e tomando a transparência de tudo o que não lhe coube nos desejos. Vai desaparecendo. Também ele emagrece e se deixa decompor em mil pedaços de nada. Adoece-me o sonho. Fica moribundo, a lutar já sem forças nem razões. É esse o sintoma. E, no concílio, faz-se o diagnóstico. Dizem que deve ser doença. Mas é realidade.

Adoeço. Há mil sintomas. Parece tumor a alastrar. Arrastando as suas metástases até ao mais profundo de mim. Adoeço. Parece cancro. Mas é só tristeza.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Quando eles saíram



Quando eles saíram, ela entrou. Esgueirou-se pela porta, à medida que eu a fechava. Entrou pela fresta. Não notei de imediato. Ao entrar, ela ainda não era mais do que um grão de poeira. Esgueirando-se pelo espaço entreaberto da porta que eu fechava atrás de mim, depois de os ver ir, com acenos de mão e sorrisos nos rostos.
Quando eles saíram, ela entrou. Provavelmente, se eu soubesse, não a teria deixado entrar. Mas não sabia. E, inconsciente de tudo, quase lhe estendi o convite para que, entrando, se instalasse, também, nos locais mais recônditos de mim. Não o fiz. Ela não precisava que eu fizesse. Da minha casa fez a sua. Não se importou com os conceitos de privacidade nem com a invasão do espaço. E eu, que nem a tinha visto entrar, fiquei, aos poucos e poucos, ciente da sua presença, que se colava à sola do sapato e alastrava pelo chão, pelas paredes, pelo teto. Que se fazia subir pelas minhas pernas, se agarrava ao meu ventre, perfurava as minhas entranhas e se alojava no meu peito.
Quando eles saíram, ela entrou. Não se limitou aos recantos da casa e aos recantos de mim. Fez-se conquistadora do inconquistável e perfurou os limites do corpo até me tocar na alma e mergulhar nos meus sonhos. Já não era mais pequena do que um grão de poeira. Era maior do que o Universo e simultaneamente una com as mais pequenas partículas de imensidão. Do seu carácter, fiquei a conhecer o negrume feio e saudoso, que imaginei poderem pender, feito muco, do canto dos seus risos histéricos e vibrantes.
Quando eles saíram, ela entrou. E, ao tomar de assalto a minha vida, ela decidiu que era hora. Era chegado o tempo de convidar outros a entrar, para que pudessem provar os melhores vinhos da casa e as melhores lágrimas dos meus olhos.
Quando eles saíram, ela entrou. A solidão. E ficou por ali, a celebrar, no meu peito, com a tristeza e a saudade e o desalento. Fizeram uma festa no meu peito, até a noite cair. E, quando a noite caiu, decidiram prolongar a celebração no meu peito, intensificando mais e mais as batidas rítmicas da dor.
Um aceno. Um sorriso aberto. O contentamento fugaz. A porta que fecha.
Cumprimento o vazio. Quando eles saíram, ela entrou.
Um suspiro. Uma porta aberta. A solidão que persiste. Um sorriso que fechou.


Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet




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