terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cavaleiro negro



Era um cavaleiro negro, montado num cavalo de sombra. Não tinha senhor nem lealdade. Não tinha honra. Não tinha fé. Não tinha um sonho que lhe guiasse a jornada nem um lar que o acolhesse no regresso.
Seguia os ventos, perseguido por tempestades e temporais. Tinha sede de vingança e paixão pela guerra. A lâmina suja de sangue ressequido e as mãos calejadas vazias de tudo o que algum dia amara.
Era um cavaleiro das trevas. Movia-se por entre as estrelas. Roubava povos e saqueava casas. Nunca levava mais do que precisava para viver. Nunca deixava sinal de ter lá estado.
Por onde passava ficava a morte. A recolha calma das almas pútridas dos seres que não tinham feito por merecer uma vida. Por onde passava ficava o silêncio de cidades desertas e o chiar das portas velhas, que se abriam de par em par.
Com o tempo, o cavaleiro deixou de ter nome. Mais tarde, deixou de ter rosto. Um dia, deixou de ter forma. E já não era corpóreo quando passou por mim e adentrou a minha alma, lutando contra as certezas e esquartejando as esperanças. Já não era mais do que um fantasma feito de negro quando me roubou a vida, deixando apenas as respirações mentidas e o meu coração a bater.
Não tinha senhor nem lealdade. Nem um lar. Nem um destino. Creio que foi por isso que se alojou em minha casa. Creio que foi por isso que passou a alimentar-se das minhas incertezas. Creio que foi por isso que escolheu torturar-me.
Prendeu-me com as correntes mais firmes. Não as de aço ou de metal. As de sentimento. Arrastou-me pelo chão mais crespo. Um chão feito de espinhos e de impossíveis. Esquartejou-me com palavras e silêncios. Ganhou-me aos poucos. Troféu inegável da sua vitória sobre o mundo.
Era um cavaleiro negro montado num cavalo de sombra, esse medo que chegou à minha vida e me tomou por sua. E, mesmo sem partir, deixou-me o coração deserto de esperança e os olhos cheios de lágrimas. Deixou-me a alma escancarada e suja.
Hoje,  também eu não tenho senhor ou lealdade. Também eu não tenho fé. Também eu perdi os sonhos. Hoje não passo de uma cidade saqueada. Mais um ser que perdeu a vida sem ter vivido. Mais uma porta aberta que não leva a lado nenhum. O medo destruiu-me. O medo salvou-me. O medo ficou. E, subitamente, o cavaleiro negro teve um lar. Dentro da minha alma massacrada. Dentro do meu peito vazio. Dentro da eternidade humana que acaba no bater final de um coração desfeito.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Caixa de música



A música parou de tocar e a bailarina tonta, de sorriso desenhado e aberto, deixou-se de piruetas. Não era tempo de dançar. Não era tempo de sorrir. Não era tempo de ter os braços erguidos aos céus na suavidade de um toque infernal.
A música parou e a caixinha de jóias perdeu a graça. Prata e ouro. Bijuteria. Não havia nada de valor. A música tinha parado e a bailarina já não dançava. O valor tinha-se ido com a arte. O valor tinha partido na primeira nuance de desaparecimento do sorriso.
E a criança gira a maneta é dá corda à pequena caixa. Gostava de saber o que pensa a bailarina. Boneca de corda. Boneca sem vontade. Eternamente bonita e suave, dentro do seu tule rosado, a dar voltas lentas e perfeitas. Não tem direito à palavra. Não tem direito à opinião. Tem apenas o direito de girar, escravizada pelas vontades alheias.
Quantos de nós somos exactamente assim? E porquê? Para quê este sorriso de fel, desenhado e perfeito por entre a dor? Para quê a dança dos cumprimentos e das roupas chiques? Para quê esses protocolos de intolerância?
Sim. De uma maneira tonta e ridícula, somos todos bailarinos de corda nas mãos de uma sociedade construída sobre regras ilógicas. E giramos todos, de sorriso nos lábios pintados, ao som da música infernal que orienta a vontade das minorias.
A música parou de tocar e a bailarina tonta continuou a sorrir, na quietude de quem sabe que dançará sempre, enquanto houver música, enquanto houver uma mão a moldar-lhe o destino.
Mas, um dia, a caixa fecha para sempre, a criança cresce, a música pára e a morte chega. Por quanto tempo teremos de dançar ao som de ideias alheias? Por quanto tempo esperaremos a morte  com um sorriso nos lábios? Somos todos bonecos de corda. E precisamos de errar nas piruetas, de saltar das caixas de música e de aprender a viver por nós mesmos. Antes que nos fechem as caixas, nos privem da música e nos deixem num canto a morrer sem sequer termos vivido.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Mágoa de sal



Tinha os olhos cor de mel e a pele de veludo levemente branqueada pela ausência do sol. Os pés, descalços e maltratados da caminhada rumo ao impossível, deixavam pegadas pequenas impressas na areia molhada. E as ondas lambiam as feridas, bebiam o sangue, deixavam a mágoa.

Ela dançou, serpenteando os passos por entre as rochas frias. Dançou sob as estrelas, de olhos perdidos num luar distante.

Quem era ela? Eis o segredo das marés. Sereia humana. Menina perdida. Mulher despedaçada. Ninguém sabe dizer.

Mas ela caminhou. Com movimentos plácidos e ondeantes, como se também ela fosse mar. E o oceano apaixonou-se por ela.

Amores impossíveis nascem a cada segundo. Tantas pessoas de coração condenado vagueiam pelos tempos sem encontrar nada que lhes dê alento. Mas não o mar. O mar é dono do tempo e senhor do seu coração. Então, o mar tomou-a nos braços, envolveu-a e roubou-lhe o último suspiro no movimento dançado de uma onda.

Nunca mais ninguém a viu, dançando na praia. Mas, à noite, escutando com atenção, ouve-se o mar contar esta história. Ouve-se o riso entrecortado em lágrimas da menina ferida pelas desilusões.
Sereia entre humanos, encontrou por fim a paz por entre as ondas. E nunca mais os seus olhos cor de mel se focaram no luar. Nunca mais sentiu. Nunca mais amou. E o dia nasceu. O vento apagou as pegadas e agitou as copas de mil árvores tristes. O mar festejou no sossego violento das ondas. E as pessoas, tão cegas e tão loucas, as pessoas nem notaram...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet (Evanescence)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Já chega, princesa



Já chega, princesa. Deixa os sapatos na escada mesmo e não fiques à espera que tos levem à porta, com um anel de noivado. Despe esse vestido que te prende os movimentos e não te deixa respirar. Solta os cabelos. Vai correr. Fugir da suposta perfeição do teu rosto pálido e da luz inigualável dos fios dourados que te adornam a face, onde os olhos azuis como safiras refletem o céu e os lábios escarlates têm a pureza das pétalas de rosa. Tens de fugir. Fugir do que te fizeram os teus antepassados e do que te fazem os teus companheiros de viagem, neste tempo sem finais felizes.
Precisas de entender: dentro de ti há mais do que cabelos louros ou olhos azuis. Tu sabes. Tu pensas. Tu acreditas. E é maravilhoso. Porque tu podes ser quem tu quiseres, sem seguir as normas que te impõem.
Há mundos além do teu mundo e amores além do teu amor. Não queiras vergar-te aos pés de ninguém. De costas direitas e de rosto erguido. De braços cruzados sobre o peito. De sobrolho franzido. Pedindo explicações. Podes fazê-lo. Não sejas somente o reflexo das amarras invisíveis desse reino sem magia. Sê quem tu quiseres. A menina pacata ou a aventureira sem medos. A esposa calada ou a mulher rebelde. Ninguém pode ditar quem deves ser. Por isso sê-lo. Sê quem tu quiseres.
Mas, primeiro, larga essa rigidez. Solta o corpete. Liberta-te da obediência cega. Foge e olha em redor. Vê o que não te deixaram ver. Entende que te cegaram. Compreende! Ninguém vai viver a tua vida. Ninguém pode exigir que vivas um destino predefinido.
Já chega, princesa. Chega de ensinares às crianças que o amor é a meta e o casamento a recompensa. Chega de sorrisos em vestidos brancos e de bebés com cheiro a caramelo, em roupinhas azuis e cor-de-rosa. Diz-lhes a verdade. A verdade sobre como o amor tem altos e baixos, sobre como o casamento é um contrato num papel que não define sentimentos, sobre como perdes noites em claro sem dormir para cuidar dessas crianças. Diz-lhes que, por vezes, desejavas ter tido melhor sorte, a sorte de te bastares.
Já chega, princesa. Chega de destinos pré-feitos, de roupas que te prendem e te limitam, de meias palavras, ditas com doçura. Cria o teu destino. Segue o teu caminho. Entende: não há nada de mal com o amor, ou o casamento ou a maternidade. Mas, se for esse o caminho, que o seja porque o queres e não porque o achas mais certo.
Já chega, princesa. Já chega de seres chamada de princesa. Segue o teu caminho e sê mulher!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet