quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Em silêncio


Os corações gritam em silêncio. Ninguém os ouve. Ninguém lhes pressente a dor. Eles gritam no silêncio de um sorriso e choram sozinhos, por detrás da fachada de um "está tudo bem" de corrida. Os corações batem assim, na solidão. Na solidão de não serem ouvidos pelo mundo, de não serem ouvidos pelas pessoas do mundo. De gritarem até ficarem roucos de tanta dor e ficar apenas um silêncio magoado.
Os corações são feitos de mel agre. Capazes de amar até ao infinito e de sofrer além das barreiras que o infinito comporta. Capazes de fazer isso num silêncio profundo e só seu.
Ninguém venha medir-me a vida em medidas de sorriso. Porque eu sei sorrir. Sei abrir um sorriso enorme e até rir um pouco, por entre os gritos doloridos do meu coração. E, quem me conhece, pode olhar nos olhos e saber que aquele sorriso de rosto não é um sorriso de alma. Mas o coração? O coração grita em silêncio. E ninguém o ouve.
Não aceito que me tratem como se eu fosse um ser sem vida, um ser sem coração. Porque existe um bater no meu peito que me promete que, independentemente de quantos sorrisos eu esboce, o coração continuará a gritar.
Não sei, de olhar para alguém, quantas desgraças lhe encheram a vida. Não ouso dizer que conheço uma pessoa por olhar para ela e a ver sorrir. Há tanta coisa gritada nos silêncios do mundo e tantas lágrimas choradas na solidão... mas respeitarei sempre quem sorri. Porque um sorriso é o sinal de que se está disposto a ser forte. Um sorriso é o mais puro sinal de altruísmo. E, se ao passar pela rua, alguém me olha e sorri, eu sei que ali existe um coração, ainda que seja um coração magoado.
Os corações gritam em silêncio. E eu sorrio no silêncio dos gritos do meu coração. Deixo que ele grite, que chore, que esperneie e que sofra. Deixo que ele sinta. Quem sabe se, um dia, parando para sorrir ou vendo um sorriso, esses gritos não viram música e o coração sorri em silêncio. Num silêncio onde o único grito será para dizer que sou feliz.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Noites à lareira


Às vezes a vida é como uma noite à lareira. Quente na proximidade dos medos e das dores. Mas quente, ainda assim, mesmo por entre as coisas frias que nos arrefecem a alma.
Acho que a coisa mais hipnotizante no fogo é dança entre o perigo e a paixão. Como se o medo de nos queimarmos nas fagulhas esvoaçantes fosse apenas superado pela vontade inevitável de estender a mão e deixar a chama tocar os dedos, com uma suavidade ténue.
Claro: tocar o fogo seria um erro. Mas quantas vezes na vida não erramos nessa busca incessante por tocar algo que nos cativou o olhar e nos manteve quentes pela noite fora?
Às vezes a vida é exactamente como uma noite junto ao fogo. E há tantas coisas que se podem ver no avermelhado de uma chama. Há tantas palavras que se podem dizer, despidas de sentido e de sensatez.
Mas no fim, é basicamente simples a compreensão das coisas. Não há nada que se possa pedir ao tempo. Não podemos pedir à lenha que consuma mais devagar, nem à chama que siga uma coreografia planeada, simplesmente porque a preferiríamos assim. E há uma beleza suave nesse desprendimento porque sabemos que não podemos controlar o fogo, da mesma forma que sabemos que a vida, essa menina insensata, não seguirá todos os caminhos do nossos sonhos.
E daí? Talvez a beleza da vida esteja justamente nessa imprevisibilidade. Talvez todos dancemos pela vida uma dança sem sentido, como se fossemos chama e a lenha durasse indefinidamente, como se o vento pudesse soprar e atiçar-nos ou apagar-nos.
Sim! Eu acho que é justamente isso. Sem complicações de outros tamanhos. Somos todos um pouco como o fogo: quentes e perigosos, feitos de paixão, feitos de medos, feitos de efemeridades eternas. Vivemos todos uma vida que pode ser reduzida à explicação insensata de uma noite à lareira.
E, por entre estradas mais frias e mais cortantes, é bom pensar que todos nós somos chama. Porque isso significa que, algures na jornada da vida, nos bastamos. E que, algures, de alguma forma, enquanto nos bastamos, precisamos da lenha e ar para subsistir. A lenha das nossas amizades e dos nossos amores, a lenha das coisas que nos arrancam um sorriso, a lenha dos lugares que nos apaziguam a alma, a lenha das memórias pelas quais vale a pena ser chama. E o ar, esse é somente para nos lembrar que o nosso tempo se consome... e que devemos respirar fundo de volta em vez, apenas para apreciar todas as maravilhas com as quais fomos abençoados.
Sim! Para mim a vida é como uma noite à lareira. E, à minha maneira de água, terra e ar, eu também sou fogo. Podem adorar-me ou ter medo de mim ou achar que eu não sirvo para nada. Seja como for, deixem-me brilhar, deixem-me dançar essa valsa de descompasso, que não faz sentido nenhum porque não tem coreografia. Deixem-me arder pela minha vida fora e consumir a minha lenha, aos pouquinhos, saboreando cada pedaço. Quando, por fim, tudo for cinza e eu for pó, quando já não houver calor em mim... a única coisa que vai importar é que tenha valido a pena! E talvez isso não seja nada simples... mas é possível. É possível e eu acredito. Talvez por isso, de alguma forma, perante uma (ir)realidade roubada aos contos de fadas, eu seja uma chama que jamais se vai apagar...


Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Voos d' alma


Os pássaros voaram, meu amor. Abriram as asas, rebentaram com os ferros da gaiola. Fugiram por entre os dedos da imensidão do mundo. Desapareceram na distância.
Abriram asas. Partiram. Cada um deles com o nome da liberdade e o espírito solto, oco de amores e desamores, oco de sentimentos vãos.
Os pássaros voaram. Porque tinham asas e o céu chamou. Porque não tinham compromissos nem planos para amanhã. Perderam-se nas copas da árvores, pousaram em cabos de aço, seguiram rumo ao horizonte.
A eternidade que os esperava a cada momento era tão real como a ânsia pelo destino indeterminado. Talvez nem eles soubessem onde ir. Talvez não se importem. Talvez, para eles, abrir asas e voar, rumo à dúvida da distância seja o bastante.
Os pássaros voaram. Sim! Voaram. Fugiram por entre as memórias que não tinham. Por entre as grilhetas que não os prendiam ao chão. Os pássaros desafiaram a gravidade e a emoção. Foram embora.
E eu? Não tenho eu também as asas abertas? Não tenho eu também o céu? Não tenho eu também a distância incerta ou o horizonte inalcançável? Não tenho eu os sonhos? Não tenho eu o amor à liberdade?
Os pássaros voaram, meu amor. Abriram asas, num encolher de ombros de alma. Mas eu importo-me. Importo-me de voar. Importo-me de tirar os pés do chão terroso da minha esperança. E as asas abertas não ousam voar. Estão abertas de sonhos. Abertas da certeza de que, para alguns pássaros de alma negra, estar livre é ter a liberdade de escolher não fugir.
Não vou fugir. Não vou voar. Não vou iludir-me com a noção incerta dessa terra prometida que fica além dos céus. Mas os pássaros voaram e anoitece. Lá do alto talvez ainda se veja o sol. Aqui, a noite é a companheira de voos mais baixos. Tenho saudades do sol!
Os pássaros voaram e as minhas asas bateram, apenas para afastar a poeira que adensou nelas, de tanto as abrir. Os pássaros voaram e eu fiquei, presa aos voos altos das minhas emoções e dos meus sentimentos.
Sorrio. O chão da minha esperança sabe ser doce. O chão da minha esperança sabe ser céu. As minhas grilhetas sabem ser liberdade. Sorrio e abro as asas. E elas ocupam a imensidão do meu mundo. Porque o meu mundo tem o tamanho dos meus sonhos e os meus sonhos são maiores do que o céu, maiores do que a distância, maiores do que o que fica além do horizonte.
Sorrio e fico aqui. Bem aqui, onde poderei sempre ser encontrada, pisando a esperança e abrindo as asas. Os pássaros voaram. Que voem eternamente por um segundo. A minha eternidade durará o tempo da minha alma. E a minha alma é um pássaro livre de anseios, que apenas segue os instintos de um coração demente.
Sossega. Está tudo bem... Os pássaros voaram mas eu ainda estou aqui!

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Não chores


Não chores nunca mais, amor meu,
Não continues triste, que é pecado
Sentir qu’ o mundo inteiro esmoreceu
Nesse rosto de lágrimas marcado.

Não acalentes o medo e o desgosto,
Qu’ é um erro sentir-me tão perdida.
Uma lágrima caindo no teu rosto
É um inferno aceso na minha vida.

Não chores, que não te vai magoar
Nenhum anjo ou fantasma do passado.
Estou aqui, mesmo que não possa estar,
Estou aqui, sabendo como é errado.

Não enchas o teu rosto de doçura
Com lágrimas de eterno sofrimento.
Na vida, só essa dor perdura.
Pra dor, meu amor, tu terás tempo.

Não sofras já, que não aguento vê-lo,
Quando a juventude ainda te sorri.
O sofrimento é só um pesadelo
E no teu sonho mau, quase morri!

Não chores, meu amor, não chores mais!
Não faças minha alma sofrer tanto.
Tens tempo pra sofrer, até demais…
Não t’ afogues em dor, por enquanto.

Uma lágrima no teu rosto plantada,
Fez de mim destroço d’ eternidade.
Agora, meu amor, se não sou nada,
É porque já era dor na tua idade.

Marina Ferraz

in: Fonte d' Abrigo

domingo, 13 de novembro de 2011

Ponteiros


Não sei quanto a ti. Mas eu? Eu vou rodar os ponteiros no sentido errado e inverter o tempo. Vou deixar que a manhã desapareça e dê lugar à aurora e depois à noite. A noite. Essa noite.
Quero ser a pessoa que voltou atrás no tempo. Porque, apesar de se dizer que o futuro tem as maiores maravilhas do mundo, eu sei que, às vezes, deixamos cair pelo caminho partes imprescindíveis de nós. E eu vou rodar os ponteiros no sentido errado para ir buscar o que perdi.
Não sei quanto a ti. Mas eu? Eu vou voltar atrás para ir buscar a menina. Sim, a menina. A menina de cabelo aos caracóis e de laçarotes ao xadrez, que andava sempre com vestidinhos de fazenda perfeitamente engomados. A menina que decidiu o seu futuro aos seis anos e que não desistiu dos sonhos nem por um segundo. É isso que eu a vou buscar às noites desse tempo que passou.
Não me entendas mal! Vivi tanto do melhor do mundo. Tantas coisas de provocar sorrisos de orelha a orelha. Mas essa menina, essa menina não odiava ninguém. Essa menina não amava ninguém. Essa menina nunca tinha visto ninguém morrer. E eu tenho saudades dela porque, apesar de não ter vivido as maiores coisas, já era capaz de as sonhar.
A memória mais sagrada que guardo dessa menina é a olhar para as estrelas. "Estrelinha brilhante, primeira estrela que vejo, realiza hoje o meu maior desejo!" A mesma frase insensata, dita mudamente por lábios cénicos e crentes. À espera que as estrelas lhe dessem o caminho dos sonhos e a encaminhassem por trilhos de amor. Totalmente inocente, à espera que o mundo olhasse para ela e entendesse que nada de mal ia acontecer.
Não sei quanto a ti. Mas eu? Eu adoro essa menina que ficou para trás, com os seus quase ridículos sapatos de tira e a sua crença cega na magia do mundo. Porque essa menina, essa menina que largou cedo as bonecas para se agarrar aos livros e que perdeu aulas inteiras a divagar em histórias encantadas, essa menina sabia exactamente o que esperar do futuro. A única coisa que ela não sabia era que, nesse futuro, ia querer voltar atrás para voltar a ser criança.
Vou rodar os ponteiros no sentido errado, sim! Vou! Tenho a mão estendida. Podes vir comigo buscá-la. Mas vou, mesmo que não venhas. E, quando a encontrar na noite dos infernos em que a perdi, vou pedir-lhe desculpa. Vou pedir-lhe desculpa por ter deixado cair a bondade extrema de acreditar que o mundo podia ser um lugar perfeito.
Mas eu conheço essa menina melhor do que ninguém. Sei o que ela me vai dizer. E sei que ela vai resumir tudo a duas perguntas.
- Realizaste o meu sonho? - perguntará, enrolando um caracol, com um ar envergonhado. E eu vou sorrir, olhar para ela e dizer que sim. - E amaste?
É por esta pergunta que gostava que rodasses os ponteiros do tempo comigo. Aquela menina, tão inocente, que não amava nem odiava ninguém, era justamente a menina que podia olhar nos meus olhos e saber as respostas. Olhar nos teus e entender o motivo pelo qual tinha voltado atrás.
Não sei quanto a ti. Mas eu vou lá, onde ela está. E vou guardá-la no peito, mesmo com os quilinhos a mais e o cabelo revolto. Devo a essa menina tudo quanto sou hoje. Os sonhos dela, os meus sonhos. O amor dela, o meu amor. Ela já sabia tanto com os olhos cheios de ternura...
Preciso que ela me ensine a esperar e a sorrir. Preciso que ela me ensine a pedir às estrelas para ser feliz.
Eu vou rodar os ponteiros. Vez após vez, até chegar à hora certa do dia certo. Até chegar à noite em que ela pediu um desejo às estrelas e esse desejo foi simplesmente amar. E, quando a encontrar, vou abraçá-la e trazê-la comigo. Quem sabe se não viveremos juntas o melhor dos contos de fadas.


Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Toque da Simplicidade


Às vezes, é muito simples. Um pôr-do-sol. Uma lua cheia. Uma brisa por entre as árvores. O cheiro da relva orvalhada pela manhã. O aroma adocicado da terra nas primeiras chuvas do Outono. Às vezes é muito fácil amar a vida.
Passar a mão no tronco de uma árvore, falar com ela e ouvir-lhe a resposta - às vezes silenciosa, mas sempre repleta de razão. Olhar o Mar, aprender a amar-lhe a calma e a intempestividade. Aprender a amar o Mundo pelo que ele é: tão complexamente simples, tão emotivamente calmo, tão sábio e tão paciente.
É na mistura brusca entre essa Natureza e a minha própria alma que encontro paz. Uma paz que soa a liberdade. Uma liberdade que é impossível de ser acorrentada aos males da vida. E, assim, é na Natureza que encontro a força para viver, a força para acordar todos os dias e continuar a ser como um rio que corre infinitamente rumo ao Mar, aproveitando cada curva do caminho. É assim que, por entre a divindade verde e azul do Universo, encontro um lugar para mim. Entre as árvores. Entre os rios. Entre as estrelas.
Nunca encontrei na Natureza um conselho menos sábio ou uma critica sem razão. Encontrei sempre nela o colo de uma Mãe e a sabedoria de uma Anciã sem idade e com todo o tempo do mundo. Encontrei nela a virgindade doce de Donzela que sonha e que sabe melhor onde começa o real e acaba a fantasia e, ainda assim, acredita em ambas.
Sim, às vezes é muito simples. Tão simples como respirar fundo o aroma dos eucaliptos ou o ar do Mar. Tão simples como descalçar os pés na areia ou mergulhá-los no ribeiro frio que corre, desde uma nascente de vida até à infinidade de todas as coisas.
Não é por acaso que nascemos na condição mortal de nos ser negada uma vida eterna. Nascemos para saborear as pequenas coisas. Para aproveitar os pequenos momentos. Para sorrir quando vemos alguma coisa que nos recorda que somos abençoados diariamente com a presença do que o mundo tem de melhor.
E acredito que é por isso que os homens nascem homens e se tornam homens por entre a Natureza das coisas. Não para a subjugarem, não para a destruírem mas para fazerem parte das maravilhas Dela e, em casos maravilhosos, aprenderem alguma coisa.
Afinal, no fim de tudo, a derradeira prova de que a Natureza é infinitamente mais sábia que o homem é que, enquanto alguns homens vivem de rastos, as árvores aprenderam a morrer de pé.


Marina Ferraz

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Horizonte


Nunca vou querer menos do que o horizonte. Não posso querer menos do que essa eternidade imaginária onde, num segundo, se pode conhecer o Universo. Nunca vou querer menos do que o horizonte. Ele está sempre à minha frente, hasteando todos os meus sonhos, abrindo os braços para abraçar tudo o que um dia quis.
Talvez o horizonte não esteja mais perto. Isso não significa que nunca alcancei nada. Significa apenas que há sempre algo por atingir. E amo esses motivos que se mantém à distância de um olhar e me fazem dar passo após passo, numa corrida infinita rumo ao inatingível.
Não quero conseguir o que outros já conseguiram. Não quero ter os limites dos meus sonhos presos às limitações do meu corpo. Eu quero tanto quanto a minha imaginação permite: quero a felicidade plena desses milésimos de momento que, no fim de tudo, terão valido uma vida. Quero o sorriso rasgado. Quero as lágrimas compulsivas. Quero os abraços e os estalos da vida. Quero o encolher de ombros. Quero a queda. Quero o voo. Quero essa linha imaginária que permanece ali ao fundo, real e insensata, apenas porque está à minha espera.
Nunca vou querer menos do que o horizonte. Nunca vou querer desejar menos do que isso. Talvez os limites da minha vida estejam nos meus poucos riscos, nas minhas poucas loucuras, nas minhas tristes horas sem fazer mais do que tenho para fazer. Mas os limites dos meus sonhos estão em não haver limites. E quero o horizonte, sim! Sempre quis o horizonte. Hei-de o querer para sempre. E se, dando um passo, ele se afasta, isso não significa que não posso atingi-lo mas apenas que ainda não tentei o suficiente.
Quero ir onde ainda ninguém foi. Amar como ninguém amou. Rir até ser considerada louca. Chorar mil lágrimas, ainda que seja pela coisa mais ínfima. Levantar os punhos e lutar contra as tempestades. Ir passear à chuva. Mergulhar no mar de Inverno.
Quero fazer o que ainda ninguém fez. Sonhar mais alto que os céus. Cair mais fundo que o mais fundo dos penhascos. Aprender a voar, de asas abertas, pelo infinito de uma palavra.
Nasci para ser livre. E sou livre de sonhar. Livre de querer esse horizonte eterno e incerto que está sempre à distância do impossível.
Nasci livre e vou morrer livre: na liberdade de acreditar no amor, de acreditar nos sonhos, de acreditar em histórias para crianças e em seres fantásticos. Na liberdade de amar os Deuses como se fossem companheiros de viagem. Na liberdade de comentar com as fadas o quanto gosto das Estações da vida.
E nunca vou querer menos do que o horizonte. Porque amo poder querê-lo. Porque sonho poder atingi-lo. Porque, no fim de tudo, ninguém sabe se não é para lá que a nossa alma vai repousar, até estar preparada para ser livre mais uma vez.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sábado, 1 de outubro de 2011

Todos os motivos do Mundo

Ao meu avô


Todos os motivos do Mundo. Tenho todos os motivos do Mundo para dizer que sinto a tua falta. Não hoje, mas a cada dia. Tenho todos os motivos do Mundo para não calar a voz dos meus sentidos no que te diz respeito. Tenho todos os motivos do Mundo para admitir que és em mim uma cicatriz viva, que estará sempre marcada, lembrando um longo rumo onde, durante tanto tempo, fui abençoada por te ter por perto.
Tenho todos os motivos do Mundo para abrir a janela e falar contigo como se fosses uma estrela. Todos os motivos do universo para acreditar que me ouves e me afagas o rosto com a mão do vento, enquanto me desejas - como sempre - apenas o melhor que a vida tem para oferecer.
O que dizemos tem sempre consequências. Uma interpretação errada aqui, um momento de crítica ali, dois segundos ou uma vida de comentários. Mas eu tenho todos os motivos do Mundo para dizer que nada irá, jamais, suprimir a falta que me fazes. E tenho todos os motivos para não ter medo de o gritar.
Imagino-te no vento, feito de ar e sabedoria, com esse sorriso cansado e maravilhoso com o qual me enchias os dias. Imagino-te no mar, pedaço intempestivo e lutador dos tempos, herói de batalhas por contar. Imagino-te na terra que calco, apoio incessante de todos os meus passos. Imagino-te com a vida eterna de todas as eternidades - as que existem, as que não existem, as que invento apenas para te sentir por perto.
Tenho todos os motivos do Mundo para não dizer adeus. "Adeus" é a palavra chave de um sem fim de mágoas que não quero cultivar. Sinto saudades, apenas, neste "até já" mortal que me faz sentir a paz de saber que, um dia, nos vamos encontrar, dar as mãos, partir juntos numa jornada onde possamos sentir a presença um do outro a tempo inteiro.
Todos os motivos do Mundo. Tenho todos os motivos do Mundo para te amar. Tenho todos os motivos do Mundo para admitir que ainda sinto a tua falta. Tenho todos os motivos do Mundo para gritar que sim, que ainda te falo à noite, como se fosses um anjo e velasses por mim. Porque, tu sabes, sempre velaste por mim e, aos meus olhos, primeiro de criança, depois de rapariga, foste sempre um anjo. Um anjo a acreditar, a lutar, a viver e a sonhar apenas para que os meus dias pudessem viver na linha intermitente que demarca o que é real e o que é fantasia, na corda bamba de um lugar onde ainda é possível seguir uma vida melhor e mais pura.
Tenho todos os motivos do Mundo e vou ter sempre todos os motivos do Mundo. Porque há pessoas que se imprimem na nossa pele e que nos marcam a vida. Porque há sorrisos que tornam os momentos eternos. Porque há pessoas que falam pelas estrelas e nos acarinham no vento muito antes de partirem e deixarem só esta magia saudosa de se amar alguém.
Por isso, não: não tenho medo. Tenho todos os motivos do Mundo para não ter medo. Tenho todos os motivos do Mundo para acreditar que estás aí, com as tuas asas de ar e o teu sorriso de água, a proteger os meus passos. Tenho todos os motivos do Mundo para saber que estarás sempre presente, mesmo que mais ninguém o saiba... mesmo que mais ninguém o veja.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Dias


Persistência da Memória - Salvador Dali

Às vezes não há nada certo a dizer. As palavras ficam vazias de sentido. Dizem demais. Não dizem o suficiente. Não expressam o grito crescente ou o riso sonante que nos ecoa no peito.
A alegria e a tristeza. A bipolaridade de vivências terrenas que se entrecruzam em mil momentos, em mil presenças, em mil ausências, em mil sentidos.
Haverá sempre dias em que temos muito para dizer. E haverá tanto por ser dito no final desses dias. Tanto que as palavras não suportam na sua enorme e infinita pequenez.
Porque as palavras - por mais que as ame - serão sempre esse gigante mal tratado que se ergue e se aumenta e se anula. As palavras serão sempre essa magia pura e intocável.
Há dias em que temos tanto para dizer que nenhuma palavra basta. E, depois, há dias que falam por si, simplesmente porque não há palavras suficientes para exprimir o que temos para dizer... porque é impossível dizermos tudo aquilo que sentimos.



Marina Ferraz

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Sobre a Vida


A vida é assim: feita de encontros e desencontros. Feita de eternidades efémeras e de efemeridades eternas. Feita de sorrisos e lágrimas e de lágrimas misturadas em risos de fazer doer a barriga.
A vida é assim: simples e difícil. Longa como a alma e curta como a existência. Feita de momentos irrepetíveis e do desejo intenso de repetir momentos que nem existiram ainda.
A vida é assim: de todas as cores e de todas as formas. Feita de medos, de muitos medos, e de ainda mais motivos para vencer o medo e seguir em frente. Feita de todas as estrelas do Universo num olhar e de um olhar maior do que o Universo.
A vida é assim: o nosso maior pesadelo e o nosso sonho mais lindo. A dualidade de tudo o que é bom e de tudo o que é mau, misturado na certeza de que, um dia, tudo vai fazer sentido e tudo vai estar bem. A vida é feita de dias que passam, de dias que chegam, de dias que ficam marcados na memória para sempre. É feita de lembranças agridoces e de cicatrizes brancas e saradas que, apesar de tudo, são ainda visíveis, como um rastro de luar no oceano.
A vida é assim: feita de lutas. Lutas que ganhamos. Lutas que perdemos. Lutas que não travamos por medo de falhar. Lutas que travamos apesar dos medos. E é feita de falhas, de erros, de decepções. É feita das consequências dos nossos actos. É feita do mais fino pó de ouro dos nossos gestos.
E, no fim, as lutas que perdemos e os erros cometidos podem ser as nossas memórias doces de sorrisos. E as nossas vitórias podem ser esquecidas, apagadas, postas de lado.
A vida é isso! Essa constante inconstância de nunca sabermos o que a vida é. Essa certeza incerta de querermos definir o indefinível. De querermos definir a vida.
Eu não sei o que é a vida ou como ela é. Não sei se, olhando para trás, vou dar valor ao melhor, se vou me arrepender de alguma coisa. Eu sei simplesmente o seguinte: nas batidas do meu coração escrevi uma música sobre a vida. Sobre os dias que me marcaram a vida. Sobre as pessoas que amo. Sobre as pessoas que me feriram. Sobre as portas que abri e as que se fecharam mesmo à minha frente. Sobre as respirações aceleradas e o perder de fôlego. Sobre tudo o que eu trabalhei em mim e no Mundo. E é isso que eu sou: esse trabalho vivido que fiz da vida. Essas cicatrizes brancas que venero. Essas lutas perdidas onde aprendi. Essas pessoas que me marcaram. Esses sonhos que segui, mesmo quando o medo me gritava aos ouvidos. É isso que eu sou: esses erros, tantos, dos quais não me consigo arrepender. Essas histórias tristes das quais retiro todos os sorrisos que esboço. Cresci e vivi na vida. E a vida é a vida. Assim ou de outra forma. E, quando morrer, é isso que eu quero ter sido: alguém que errou, alguém que perdeu, alguém que teve milhões de medos... alguém que viveu como se a vida fosse eternamente o melhor e o pior da eternidade de alguns momentos que realmente valeram a pena.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

8, 7, 5...


À Noa
Oito tempos, sete notas musicais, cinco posições. A simplicidade de números que podemos contar pelos dedos. A simplicidade de termos um corpo que responde aos números como se eles esquematizassem a vida. Oito tempos, sete notas musicais, cinco posições. Uma simplicidade assente nas dificuldades do mundo. Uma simplicidade que exige esforço e dedicação, que exige privações e treino. Uma simplicidade que não tem nada de simples.
Não são os movimentos marcados que te fazem dançar. Não são as sabrinas de meia-ponta que fazem com que o equilíbrio do teu movimento atraia a atenção de mil olhares. Não são as sete notas musicais que ditam a forma elegante como cada movimento flui. Não são os oito tempos que definem a graciosidade das tuas expressões.
Não te defino numa medida que possa ser contada pelos dedos. Nem em medida nenhuma onde os números te somem a beleza e a graciosidade e a inteligência e os sorrisos. Não uso números para te definir. Não preciso de números para saber que a tua dança é perfeita e maravilhosa. Tanto como tu és.
Não é numerável a forma como pões cada pedacinho de ti em tudo o que fazes. Em cada gesto, em cada movimento. Os teus passos são tão hipnóticos que parece que flutuas sobre o soalho de madeira e nunca o pisas. A forma como ergues os braços lembra um abraço recebido pelo universo.
Não importa se são oito tempos e sete notas musicais em cinco posições de pés. Não importa se a contagem é eternamente instruída pelos que vivem nesse meio. Para mim tu tens todos os tempos e todas as notas e todas as posições. Para mim elas são milhares. Para mim, a tua dança é feita de todos os pormenores que existem. E eles são mais do que oito, sete ou cinco, eles são mais do que as estrelas que há no céu.
A perfeição não tem números. A perfeição não tem movimentos mecânicos. A perfeição é feita de amor. E tu danças assim, nesses rodopios e gestos perfeitos, porque amas dançar. E, quando amas algo assim, essa coisa deixa de fazer parte de um mundo onde estás e passa a ser parte do que és. Oito tempos, sete notas musicais, cinco posições. Mas incontáveis momentos, incontáveis sorrisos, incontáveis palavras de orgulho por entre a tua inexplicável perfeição.
Para mim, meu amor, quando respiras, ainda que estejas sossegada e a dormir profundamente, estás a dançar. E essa dança que mora na tua respiração também te mora nos olhos, nas mãos, nos sorrisos. Mora-te nas lágrimas, nos desejos e nas intenções. Mora em ti e faz com que sejas a bailarina principal de cada momento que vives.
Por isso, desejo que os teus oito tempos, sete notas musicais e cinco posições nunca parem de se tornar incontáveis. Desejo que faças deles o teu infinito e que dances no palco que escolheres. Mesmo que esse palco não seja à frente de uma plateia. Mesmo que esse palco não seja um palco. Mesmo que mais ninguém, além de ti, saiba que, na verdade, estás a dançar a tua vida.
Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Amores assim




"Um dia, o amor perguntou à amizade:
- Para que é que tu serves?
E a amizade respondeu:
- Para limpar as lágrimas que tu deixas cair!"
.......................................- Autor Desconhecido

Há amores assim. Amores que nos fazem amar a vida mais do que amamos o amor. Amores que ficam eternamente, de olhos atentos e mãos abertas, prontos a proteger-nos. Amores que não desertam no primeiro indicio de tempestade.


Choveu. Torrencialmente. Friamente. Dias a fio. Choveram-me os olhos, choveram-me as mãos, choveu-me a alma, choveu-me o coração. Choveu tanto que o sol ripostou e desapareceu do céu, cansado de esperar que as nuvens se ausentassem. Choveu tanto que amantes crus se separaram e desistiram da noite. Choveu tanto que as ruas do meu pensamento ficaram subitamente povoadas apenas por fantasmas tristes.


No Inverno da minha alma, a noite pareceu eterna e as estrelas foram apagadas pela imensidão do nada. E, o amor, esse amor que me enchia os dias de luz, transformou-se subitamente na parede mais escura do meu sentir.


Os dias passaram, as pessoas seguiram, as Estações mudaram. E os amores impossíveis tornaram-se apenas improváveis na aurora da minha imaginação. Subitamente, quando olhei em redor, os fantasmas tinham as mãos fechadas nas minhas e armas de desassossego incansáveis. Os fantasmas eram os meus amores eternos, pássaros de alma pura, a protegerem-me do meu amor irreal.


Talvez todos os amores que vivemos estejam encobertos pela parede fina e invisível de uma amizade. E, no fim, talvez a amizade seja o amor mais forte de todos. O medo, a dúvida, a aceitação e a mágoa. Tudo isso são sentimentos nascidos na raiz de uma paixão. O amor não tem medos, nem dúvidas, nem dificuldades de aceitar o que for, nem mágoas encobertas em sorrisos falsos. O amor é verdadeiro. Verdadeiro como as mãos guerreiras de todos os que nos agarram quando as nossas paixões desencadeiam infernos.


Há amores assim. Amores onde os sorrisos duram mais do que as lágrimas. Onde as lágrimas secam. Onde as tristezas se dissipam em mares de contentamento. E é para isso que existe a amizade. Para termos sempre amores por perto, mesmo quando julgamos que nunca mais vamos amar.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Entra



Shiu! Entra mas fala baixinho para não me acordares a dor. Demorou a adormecer. Adormeceu há tão pouco que ainda esperta ao menor som. Deixa-a dormir sossegada, nessa cama de espinhos e punhais. Deixa-a repousar um pouco. A imortalidade cansa.
Não te aproximes dela. Fica comigo um bocadinho. Só nós os dois. Vamos lá fora ver a lua. Vamos à serra contar estrelas cadentes. Vamos à praia ver as ondas. Podemos ir aonde quiseres. Mas tem cuidado, o cuidado de não fazeres um único gesto brusco, o cuidado de não dizeres nenhuma palavra impensada, o cuidado de não te aproximares demasiado de mim. Deixa a dor continuar adormecida e dormente. Deixa-me respirar um bocadinho a paz do seu sono.
Pé ante pé, afasta-te da minha imagem de ti, afasta-te desse sonho desmedido que me encheu a vida. Afasta-te da canção de embalar que o meu coração entoa para acalmar os mil sentimentos que te devo.
Um dia, um dia que não hoje, vou contar-te o que sinto por ti. Vou dizer que te amo. Assim, baixinho, num sussurro impensado, num murmúrio disperso nas ondas. E, nesse dia, esse dia que não é hoje (porque não quero acordar a dor), tu vais fingir que não ouves. Sei, ainda assim, que será um grito aos teus ouvidos, da mesma forma que o teu silêncio vai ser um grito a acordar a dor deste sono leve em que caiu.
Por isso sim. Entra. Mas fala baixinho. Ou não fales de todo! Deixa-me só olhar para ti, tentando não imaginar as palavras que me dirias se isto fosse um sonho e que nem te passariam pela mente, se fosse real. Não faças barulho. Não faças nada. Existe apenas, em silêncio, para eu saber que estou segura e em paz. Na segurança e na paz de existires. Na segurança e na paz de não precisar de saber mais nada.
E, por favor, espera um pouco. Fica por aqui durante umas horas, uns dias... porque quando fores embora, ainda que vás pé ante pé, ainda que o faças em silêncio, a dor vai despertar e eu não vou saber adormecê-la outra vez.


Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

sábado, 11 de junho de 2011

No dia em que te conheci

No dia em que te conheci não havia sol. Nem nuvens. Nem qualquer indicio de chuva. Havia as estrelas e a lua, marés de ondas sem sal e copos vazios.
No dia em que te conheci, o mundo parou. Parou de girar sobre si mesmo. Ou em torno do sol. As pessoas não andaram. Não falaram. O vento não soprou.
No dia em que te conheci eras tu e eu. Só nós no meio de uma multidão que não existia. Tu e eu. Só nós.
No dia em que te conheci perdi o Norte e o Sul. O Este e o Oeste. Perdi o rumo e o horizonte.
No dia em que te conheci esqueci tudo o que tinha vivido, todos os meus sonhos e todos os meus desejos.
E foi tudo para mais tarde descobrir que, na verdade, nunca te conheci.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 1 de junho de 2011

No teu son(h)o

Fica quieto. Vou deitar-me na tua cama e ficar acordada a ver-te dormir. Quero imaginar as paragens e as gentes que te povoam os sonhos. Imaginar se são pessoas como eu, se são diferentes de mim, se pensas que alguém pode ser igual a mim. Se sabes que existo...
Quero ver o teu sorriso ligeiro, ouvir o teu respirar pesado e ausente, contar às estrelas que te descrevo em quatro letras. E, se as estrelas responderem, invejosas, vou dizer-lhes com a maior altivez que não te podem ter. Não podem porque eu não posso. Porque ninguém pode. És demasiado especial para seres de alguém...
Podes dormir. Vou afastar-te o cabelo dos olhos e acarinhar-te o rosto, enquanto sossegas. E vou pedir à lua que cale a serenata tonta com a qual me conquistou, para poderes dormir em silêncio.
E, então, o sol vai começar a nascer e as minhas asas negras vão abrir, em aviso, porque eu pertenço à noite. E vou deixar uma lágrima cair na almofada, antes de voar, por entre as sombras, rumo a um lugar perdido, enquanto espero que anoiteça novamente.
Somos de mundos diferentes. Toda a gente é. Ainda assim, nesse lugar perdido entre sombras e luar, vou imaginar que acordas e me vês a sair pela janela dos teus sonhos, a tempo de selares a minha noite com o beijo do teu dia. E vou adormecer para o sol, sorrindo, sem saber como posso ser eu a fada e seres tu, mero humano, um imortal. Um imortal que viverá para sempre nos dias das minhas noites, enquanto houver dias e noites, enquanto as minhas asas negras sobrevoarem esse mundo que nem sabes que existe.


Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Não te preocupes


Não te preocupes.
Olhei duas vezes antes de sair pela porta. Três, se contares com o último olhar, desnorteado e de lágrimas nos olhos, com o qual confirmei que não deixava nenhum vestígio de alguma vez ter existido.
Não trago nada teu, não deixo nada de mim. Em breve serei pouco mais do que uma memória fugidia, longínqua, um sonho... a tua fantasia mais louca. E tu, para mim, serás o olhar desnorteado e repleto de lágrimas com o qual me comprometi a não voltar mais.
Talvez te tenhas agarrado demasiado aos meus regressos. Talvez eu nunca devesse ter voltado à inconstância de sequer pensar que sou incompleta sem ti. Não olhes para a porta, esperando ver-me entrar, com um sorriso que prometia tanto mais do que posso dizer.
Não te preocupes.
Fechei bem a porta atrás de mim. Tranquei-a. Deixei a minha chave na tua caixa do correio. E um dia, quando as cartas não te aparecerem magicamente sobre a mesa da entrada, vais sair e abri-la tu, para descobrires que não vou voltar. Nunca mais.
Entre nós houve a imensidão do nada. Quando dissemos que íamos dar um ao outro o universo não era para ser um universo de dor. Então porque é que foi?
Não te volto a magoar. Não me voltas a magoar. Não voltamos sequer a olhar-nos nos olhos com esse instinto esmagador de nos matarmos um ao outro. Não volto a rebaixar-me a ponto de me pisares, não volto a pisar-te quando te sentes mal por me teres magoado.
Não te preocupes.
Tenho a estrada. Tenho o que vem além da estrada. Tenho-me a mim. E tu, Amor, tens-te a ti próprio, cheio de utopias maravilhosas que, certamente, levarão muitas pessoas até tua casa. Mas no fim, todas elas saberão que estão melhor sem ti. Nenhum outro sentimento pode dar o que tu prometes mas também nenhum faz o estrago que tu fazes.
Não te preocupes.
Vou aprender a viver sem ti, sentimento irónico. E vou ser menos louca, ainda que caminhe para sempre numa estrada de Saudade, rumo a um lugar que não sei aonde fica...

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

terça-feira, 26 de abril de 2011

Serenata do Abismo

Ele percorreu a cidade, tocando as cordas da solidão com as pontas dos dedos e cantando a saudade como se cumprimentasse uma velha companheira de aventuras.
Envolvia-o a doçura de chegar ao fim. Ao fim de um caminho que não era curto ou longo, bom ou mau, mas apenas um caminho que percorrera, rumo ao abismo onde todas as dores findam e todos os amores se tornam eternos.
Ouvira muitas histórias e muitas canções mas nenhuma assim. Nenhuma que tivesse o mar, o vento e o restolhar das folhas outonais como instrumento e a voz dos Deuses como melodia eterna, entoada por um silêncio cantado e vivo.
Abençoou, nesse momento, os que lhe tinham provocado as feridas da alma pois sentiu-as sarar. Perdoou os que o tinham feito chorar, pois devia-lhes todos os sabores da humanidade. Agradeceu a todos aqueles com os quais se tinha cruzado pelos sorrisos, pelos momentos, pelas certezas incertas de um "até amanhã" de rotina.
Percorreu a cidade, à luz pálida e cortada do luar nascente. E continuou a tocar as cordas de solidão, a par com todos os sons da natureza. Os Deuses sorriam. Um sorriso quente, naquela noite fria. Um sorriso verdadeiro naquela Era forjada de mentiras e dor.
E o fim chegou, tocando-lhe o rosto com a mesma doçura com a qual uma mãe afaga pela primeira vez a face do filho, envolvendo-o na protecção de não ter de sofrer nunca mais. E a solidão parou de tocar. A música era apenas a do bater cada vez mais fraco de um coração moribundo. E era bela. Completa. Única. Talvez, quem sabe, perfeita.
Depois, o sossego de uma orquestra de sensações e a voz da memória a cantar baixinho. Morrer era apenas acordar para outra vida. Uma que talvez fosse mais plena. Uma onde talvez aprendesse a ser feliz. Uma onde talvez viesse a tocar as cordas de um amor que não fosse construído na saudade mas antes numa paixão maior do que o tempo.
Ele percorreu a cidade, rumo ao abismo. Tocou, em serenata, a última nota do seu amor mais puro e, sem que ninguém o soubesse, foi finalmente feliz...

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 14 de março de 2011

Ao abandono...

A casa estava fria, com as paredes nuas e as divisões desocupadas e as janelas desengonçadas, pendendo. Crescia relva por entre os azulejos do chão e subia hera pela fachada triste e podre. Ecoavam os passos dos fantasmas pelos corredores. O resto era silêncio.
Havia nos quartos a memória de mil paixões. Algumas proibidas, outras acabadas, outras simplesmente feitas de compromisso e conveniência. As salas ainda se lembravam dos pares, dos vestidos cerimoniosos, da música vibrante que ecoava pela mansão nos dias de festa. Todos os dias.
Fechando os olhos, ainda cheirava a alfazema e a tomilho e a canela e cravo. Ainda cheirava a pessoas e a histórias de nobres e criados, de serviço e fidalguia. Relembrando, ainda cheirava a vida. Mas tudo o que havia agora, era o aroma pútrido a mofo e a pó. A saudade.
E, passando na rua, o velho sábio ainda esboça o sorriso, enquanto segura o neto ao colo e lhe diz que aquele lugar foi uma casa senhorial que avançava pelas quintas, pelas capelas, pelas vinhas, pelos prados e ia até ao fim da aldeia. E a criança ouve, sorrindo e imaginando o lugar que aquele sitio já não é.
Mas depois passam, a casa fica, caindo como se não tivesse história. E já ninguém pensa nela, já ninguém quer viver nela...
Com as pessoas também é assim. Não importa quem foram nem o alcançaram nessa dimensão maravilhosa chamada "passado". Não interessa a importância que tiveram ou se um dia suportaram tanto quanto existe, em universos de felicidade. Não importa as histórias que têm para contar. Quando ficam vazias e doentes, a vibrar de solidão e a viver de recordações, as pessoas olham, comentam com saudosismo e seguem o seu caminho... porque também já ninguém quer viver nelas...

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Louca

O grito - Edvard Munch

louca. serás sempre louca, onde quer que vás. não há um lugar onde pessoas sãs possam dizer que és outra coisa.
louca. essa noção de diferença incompreendida que se esbate e escorre nos olhos dos outros como um véu de demência, de loucura, de estupidez até.
quem somos, além de loucos a correr em direcções cruzadas, embatendo contra tudo, contra todos, os que nos tocam no caminho? louca. louca como foram todos os que fizeram a diferença.
afinal, não é loucura viver fechado. não é loucura correr para consumir e desperdiçar banalidades. não é loucura destruir o mundo em que vivemos, sem qualquer preocupação. não é loucura a guerra. não é loucura a morte fortuita de tantos quantos "não interessam". não é loucura porque são todos igualmente loucos e ser louco tornou-se normal.
louca. sê sempre louca, onde quer que vás. fala com o ar, com o fogo, com a terra e com a água. invoca o espírito daqueles que, como tu, foram loucos no seu tempo. sê sempre louca. louca de acreditares na felicidade, nos contos de fadas, num mundo melhor.
vão chamar-te muitas coisas. louca. crente. criança. porque todos eles se esqueceram. mas nós não.
louca. nunca serás como eles. nunca te ajoelharás aos mesmos deuses, à mesma ironia de não haver deuses, à sociedade que corre eternamente rumo ao fim da sanidade. sê sempre louca! louca na tua maneira de o ser. loucamente envolvida pelo que realmente importa. sê louca como és e, talvez um dia, louca, crente, criança, a nossa loucura possa superar a de todos eles e o mundo se torne um lugar melhor para viver.

Marina Ferraz

sábado, 29 de janeiro de 2011

Profecia

Senta-te. Respira. Acredita em mim. Dias melhores virão. Dias de sol. Dias onde as flores de trevo abram, colorindo a tua vida. Dias onde possas sentir o mar a beijar-te os pés.
Acredita. Virão dias assim... Serão noite depois e o luar virá acariciar-te a pele queimada e dorida.
Senta-te. Respira. Está tudo bem. Há montanhas até ao céu e mares sem fim à vista. Há canções e poemas e palavras e pessoas. Não corras à procura. Está aí. Em ti. Nos teus olhos. Nos teus braços. Na tua alma. Principalmente na tua alma.
Ouve. Olha. Sorri. Está na hora de seres tu e mais do que tu. De abrires as asas que não tens. De as teres. De voares. De seres feliz como devias ter sido todos os dias da tua vida.
Tem calma e segue sem medo. Tens mil vidas e ninguém te pode dizer que erraste. Estás certa nessa paz que te preenche.
Respira fundo. Acredita em mim. O teu ar não pode fugir nos teus medos, da mesma forma que a tua terra não pode prender-te ao chão das tuas ideias metódicas e calendarizadas ao segundo.
Pára. Acredita em ti. Senta-te. Respira. Ouve o murmúrio doce dessa voz que tentaste calar durante demasiado tempo. Ouve a suavidade cantada do seu amor. A paz imensa com que te envolve a alma. Dias melhores virão. Dias em que olharás para cima, para veres o céu, para a frente para te encontrares e para baixo para descobrires que te tornaste tudo o que és... que te tornaste tudo o que nasceste para ser.

Marina Ferraz

*imagem retirada da Internet