terça-feira, 27 de março de 2012

Era uma vez...


- Conta-me uma história... - foi um pedido de brilho nos olhos e sorriso aberto, no limiar do sono e da esperança. A voz de veludo, meio rouca, com nuances de quem não tardará a conhecer reinos de fantasia no universo dos sonhos.
Sentei-me na beira da cama e afaguei-lhe os caracóis louros, enquanto lhe fitava os olhos entreabertos. Os olhos dela. Como poderei algum dia descrever os olhos dela? Eles são azuis e verdes e raiados de amarelo e avelã. Não têm cor e têm todas as cores. Fazem lembrar dois pequenos mundos. Neles há terra e mar. Terras cheias de aventuras e mares cheios de sereias e caravelas.
- Era uma vez... - as palavras fogem-me por entre os lábios antes que me aperceba. Saem de rompante, como se responder aos desejos dela fosse mais importante do que responder à minha própria lógica. E, com os olhos vivos, ela abana a cabeça.
- Quero uma história com final feliz. - dita com a voz mortiça e imperativa, sem mudar uma única linha na expressão calma do rosto.
Esboço um sorriso. Já esgotei os meus finais felizes. Esgotei-os na aprendizagem abrupta de que não existem fins que tragam felicidade. A palavra fim é apenas mais um sinónimo para dor e mágoa e medo. Mas não se diz isso a uma criança, pois não?
- Era uma vez... - não há continuação para esta história. Mas ela fecha os olhos e rende-se ao cansaço, como se eu a tivesse contado. E, de alguma maneira, eu sei que ela ouve o que eu não digo. Um conto com unicórnios e princesas e monstros que se dão por vencidos.
Quem me dera contar-lhe que os bons não ganham sempre. Quem me dera dizer-lhe que os monstros se escondem na pele de pessoas como nós. Quem me dera dizer-lhe que nunca nos apaixonamos por um príncipe encantado. Mas ela adormece e a minha dor acorda um pouco mais. Quem me dera construir-lhe as ilusões sobre o patamar das melhores coisas da realidade.
Minto! Qual é a realidade boa sobre a qual se pode construir uma ilusão sólida? O que queria era destruir a realidade para que ela pudesse viver qualquer ilusão. Qualquer uma! Queria que ela pudesse ser uma princesa ou uma bailarina ou uma sereia, com o seu grande, grande amor, no seu castelo de fantasia. Queria que ela tivesse finais felizes em cada curva do caminho. Era isso que eu queria. Queria mudar o mundo para ela não ter de aprender, como eu aprendi, que viver magoa.
Ainda ontem era eu. Uma menina de olhos mais simples e caracóis mais revoltos. Mas, na diferença, ainda ontem eu era exactamente como ela. Sonhadora e irrealista, a pedir um final feliz nos contos de encantar. Talvez por isso, toda a vida pedi três coisas: para amar, escrever e sonhar. Hoje sei que devia ter pedido para ser amada, ser lida e realizar os sonhos. Mas ninguém nos ensina em crianças quais os perigos da semântica! Ninguém nos explica que a realidade arranja maneiras de transformar os nossos desejos em espinhos que se cravam na pele.
Cubro-a levemente e deixo-a, adormecida. Nos seus sonhos, aposto que ela pede desejos. A vida tratará de lhe roubar os sonhos. O mundo tratará de lhe negar os pedidos. Mas, por agora, deixo-a sonhar. E, para mim mesma, guardo o papel de guardiã. Assumo a espada dos sentidos e luto contra os males do mundo. E, amanhã, quando ela acordar, terei perdido essa batalha porque outro dia terá nascido e outro passo será dado rumo ao termo da infância.
Fica um suspiro. Um suspiro que começa com "era uma vez". Era uma vez a certeza inabalável de que daria a própria vida para lhe dar um "e viveram felizes para sempre". Era uma vez a consciência de que a vida passa e fere. Era uma vez uma realidade que vence os sonhos e os derruba e nos destrói... Era uma vez...


Marina Ferraz

terça-feira, 20 de março de 2012

O diluir das horas


É o diluir das horas que me fere. Qual tortura lenta que me escorre pelo corpo, deixando a marca fria de uma saudade de fel. É o diluir do tempo que me deixa sozinha em mim, longe de mundos por devir e no desespero de saber irreais todos sonhos que guardei.
O desespero e a desilusão não passam de duas crianças incoerentes, caminhando de mãos dadas pelas minhas veias e brincando, despreocupadas com as batidas glaciais do meu coração. E as horas diluem. É a canção ilógica e compassada do relógio que segue, segundo a segundo, rindo da minha solidão.
O tempo escorre-me por entre os dedos. E eu tento fechar as mão em concha e mantê-lo lá, parado, até ser hora de te ver de novo. Mas ele escorre, gota a gota, obedecendo ao tic-tac do relógio, obedecendo às ordens do pêndulo velho que dança hipnoticamente à frente do meu olhar cego de alegrias.
O tempo não pára. Segundo a segundo transforma dias em anos e anos em pequenas eternidades cruas. É o diluir das horas que me fere. Os segundos eternos em que tardas, as eternidades curtas em que sinto que vou ficar bem mas que desvanecem e evaporam, que morrem passado um segundo.
Não há paz alguma para quem vive de sonhos. Somente dor. Somente desilusão. Somente a certeza inquebrável de que acordar seria ainda pior. E encosto a cabeça na almofada, ao som dos ponteiros do relógio que avança. E os ponteiros tardam cada vez mais, retardando cada batida e ditando a velocidade das batidas do meu coração.
Peço que parem. O tempo e o coração. Tão loucos, os dois. Tão iguais nessa loucura. Tão barulhentos por entre o vazio que me ecoa na alma. O diluir das horas fere mas eles não param. Perdem-se nos minutos e nas horas que me plantam eternidades no peito. E a dor, de tão longamente sofrida, enraíza-se mais, por caminhos novos e rouba-me as ilusões.
É o diluir das horas que me fere. E, fechando os olhos, a ferida alastra. Até os meus sonhos têm agora o sopro dessa realidade crua. Até os meus sonhos têm a noite eterna. Essa noite que se faz trevas e dança ao compasso dos ponteiros do relógio, moendo-me a alma nas horas de solidão.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 13 de março de 2012

Numa outra vida


Numa outra vida talvez. Quem sabe? Quem pode garantir que as tramas do destino não nos põe novamente nesta encruzilhada de sensações? Numa outra vida, talvez.
Ainda me lembro. Sorrisos de lágrimas nos olhos, corações acelerados, planos para um amanhã que nunca existiu. Foi essa a sombra do passado que se projectou para o presente e me impediu de seguir. Mas está tudo bem. Numa outra vida, talvez possamos ser novamente o que já fomos. Numa outra vida, talvez possamos vencer as manobras do destino.
Pousando as mãos sobre a plataforma gélida do meu corpo, descubro que me despi. Não só de roupas ou de medos, mas de sensações e de desejos. Respiro e não estou viva. Sou a incoerência desses vultos apagados que vagueiam avenidas perseguindo sonhos que nunca poderiam ser reais. Sou o espectro meio morto que aprendeu a fingir um "está tudo bem" de percurso e a engolir as lágrimas. O coração afogou-se nelas. Mas é a vida, não é? Numa próxima, talvez possa ser diferente.
E resta-me a aceitação. A aceitação muda. A aceitação calada. A aceitação de que esta vida já foi e já não é. E, não sendo, não terá mais nada para mim. A aceitação de que todos os meus passos foram fragmentos de caminho traçado na direcção do abismo. A aceitação do abismo e da queda e da morte.
Numa outra vida talvez. Talvez sorria. Sorrisos de alma. Talvez ame doentiamente e seja amada de igual forma, para que não digam mal do meu amor. Talvez encontre paz. Mas será numa outra vida porque esta está despojada de esperança e de sonhos. Porque esta não terá um amanhã. Já não tenho dias que sucedam às noites mas tão só a escuridão perpétua da minha alma a cegar-me os olhos e a impedir-me de ver toda a beleza que restou, se é que restou.
Não me desiludo mais. Despi também as ilusões. Sou apenas um corpo nu de tudo, deixado ao frio, na esperança de uma morte quente.
Mas, ainda assim, quem sabe? Talvez numa outra vida eu possa ser feliz. Talvez a traição do mundo seja apenas para me ensinar a receber melhor essa alegria. Talvez tivesse de conhecer o abismo antes de conhecer um chão mais quente e melhor.
Numa outra vida talvez. Vou agarrar-me a essa esperança durante a queda. Porque quero morrer a sorrir. Quero morrer como não vivi. Quero morrer humana para não ser esse monstro que tantas vezes me acusaram de ser. Por isso, numa outra vida talvez haja espaço para mim e para o que eu quero e para o que eu sinto. Talvez a minha próxima vida não esteja gasta e rota, vazia e gélida. Talvez uma outra vida possa ser chamada de vida.
Numa outra vida talvez. Ninguém tente roubar-me as minhas derradeiras ilusões! Vou fechar os olhos para esta. E numa outra.... ah, essa vida! Numa outra vida ainda vou provar a verdade de cada conto de fadas!


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 6 de março de 2012

Toque cigano


Estendo-te a mão aberta. A mão aberta e vazia de tudo. Despojada de tanto quanto se pode despojar um ser sem vida. Despojada das certezas. Despida das vontades. Vazia. Vazia como o meu mundo. Estendo-te a mão.
Estendo-ta na esperança de que possas olhar para ela e ler nas suas linhas incertas um futuro que não sei ter. Estendo-ta para que me adivinhes a sorte. Estendo-ta para que, num segundo de efemeridade, possas aliviar-me o espírito e dizer que há algo em mim que vai sobreviver à morte do meu coração e ao negrume da minha alma.
Agarra-me a mão nas tuas. Deixa o teu toque cigano sentir a minha pele. Deixa o teu olhar pagão percorrer as linhas desta mão vazia. Deixa-te saber a sina de uma escrava do destino. Deixa-te saber a sorte de uma meretriz que se verga à vontade fútil de um coração louco.
Na ancestralidade aprendida pelo teu olhar, deixa-te ver o que os outros não vêem. Saber o que os outros não sabem. Conhecer o que é negado a tantos quantos desconhecem o poder de um olhar ou de uma linha vincada na pele.
Agarra esta mão que te estendo. E, por favor, olha para as linhas insensatas que a preenchem. Olha para elas com esse teu olhar negro e cheio de esperança. Olha para elas até as saberes de cor. Olha para elas com o olhar de quem acredita que o mundo pode ser feito de coisas que as outras pessoas ignoram .
Agarra a minha mão nas tuas mãos trigueiras. Diz-me o que está por devir. Diz-me se há no mundo lugar para alguém que já perdeu tudo. Se o mundo se abre para quem perdeu até a vontade de viver. Diz-me o que não me dizem os livros e as explicações. Diz-me o que não dizem as pessoas que não crêem no destino.
Estendo-te a mão. Estendo-ta na esperança de que não a vejas vazia. Estendo-ta no desejo de que não a vejas como eu. Por favor... lê os traços insensatos desta mão. Adivinha-me o caminho ou o desfiladeiro. Adivinha-me a fortuna ou a morte. Adivinha. Seja o que for.
Estendo-te a minha mão vazia. Entrego o meu destino ao teu toque cigano. Possa o teu olhar ver o que não vejo. Possam as tuas palavras dar-me paz... A paz da esperança ou a paz do fim...


Marina Ferraz

* Imagem retirada da Internet