terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Regras básicas para atravessar a estrada

 



1995

 

Olha para a esquerda e para a direita antes de atravessar.

 Palavras da minha mãe, na proximidade da passadeira.

 Mesmo tendo prioridade, olha sempre para a esquerda e para a direita. Andam malucos por aí…

 As outras pessoas atravessavam. Sem olhar. E ela acrescentava:

 Tu não és os outros. Tem cuidado! Olha para a esquerda e para a direita.

 A esquerda e a direita não eram caminho. Eram só as direções de onde vinham as ameaças. Aquelas que podiam impedir-nos de chegar ao outro lado, para seguir caminho.

  

2024

 

Estou parada na beira da estrada, com a Liberdade do outro lado da rua.

 Ao meu redor há gente. Vou vendo as pessoas. As que só olham para a direita. As que só olham para a esquerda. As que olham para os dois lados e criticam um deles, defendendo o outro. Pessoas que entram estrada a dentro e caminham para esquerda. Pessoas que entram estrada a dentro e caminham para direita. Que vão pelo meio da estrada. Ignorando o trânsito. À espera de descobrirem sei lá eu o quê. Próximas de descobrirem como fica a palavra SCANIA impressa ao contrário na testa.

Pessoas convertidas pela luz sagrada dos leds da TV defendem partidos como se fossem clubes de futebol. Olham para a direita se ela diz o que querem ouvir. Olham para a esquerda se lhes dizem que é lá que anda a melhor relação de imobilidade-rendimento.

 Do outro lado da estrada, está a minha Liberdade. Também está lá a equidade. A racionalidade. A cultura. A arte. O equilíbrio. O entendimento. A justiça. A estabilidade. O futuro.

 As pessoas atiram-se para o meio da estrada, caminhando para a esquerda e a direita. Ou andando em círculos como as moscas quando entram em casa… e que supostamente também estão à procura de uma saída.

 Mergulho nas ideologias e tento encontrá-las nos discursos. Mas o ronco do motor dos camiões de transporte de adubo da direita, com o seu fumo poluente e aroma execrável, é apenas superficialmente menos tolerável do que o insuportável acelerador a fundo nos Ferraris da esquerda (aos quais trocam o cavalinho empinado por um VW durante o tempo de campanha, para que pareçam mais comunitários e comedidos).

 E há as pessoas. A andarem na direção da direita. E há as pessoas. A andarem na direção da esquerda. Como se as mães nunca lhes tivessem ensinado a traçar perpendiculares à estrada, atravessando com cuidado, para irem na direção que querem e não na direção que lhes dizem para quererem.

 Eu não sou os outros.

 Olho para a esquerda e para a direita antes de atravessar. Que andam malucos por aí… Malucos à esquerda. Malucos à direita. Ocasionais ditadorzinhos aqui e ali.

 Tenho os olhos pousados no que quero. A Liberdade. A equidade. A racionalidade. A cultura. A arte. O equilíbrio. O entendimento. A justiça. A estabilidade. O futuro.

 E olho para um lado e para o outro. Mas toda a gente acha que tem prioridade. Então, contra todos os conselhos maternos, vou atravessando assim mesmo.

 À espera de descobrir se vai ser a direita ou a esquerda a atropelar-me desta vez…

 

  Marina Ferraz




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terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Textos fofinhos

 

Fotografia de João Lamas

Eu quero escrever textos fofinhos. Gentis. Mas é difícil conectar-me com pessoas desconectadas, usando os ardis populistas que critico nas vozes do poder. Penso, depois de me dar demais, que não nasci para me vender. Sempre preferi sentar-me na mesa da falta e partilhar o pão do que comer acepipes com caviar em bandejas de prata. E é justamente por isso que serei sempre uma voz que não gera preocupação às estruturas soberanas. As minhas palavras são flechas. Certeiras. Duras. Cáusticas. Mas que acertam sempre nos muros de pedra e diamante que me recuso a transpor. Não passo de uma espécie de idealista inútil, aos gritos numa sala cheia de surdos. Escrevo este texto. E não sei para quem. E não sei para quê.

 

Posso dizer que, nas mesas onde me sentei, já comi entradas de dor com quem tem fome. Posso dizer que essas mesas não eram mesas. Às vezes, elas eram chão, calçada imunda, lado a lado com pessoas sem-abrigo, que me agarravam as mãos como se houvesse algo de divino no meu privilégio servil. Às vezes, essas mesas foram de gente que tinha perdido gente… e até tinham pratos cheios, mas cadeiras vazias que tiravam a fome do estômago revolto, na ideia da perda. Às vezes, foram camas de hospital, de lágrimas engolidas, implorando para que ao menos uma garfada da descuidada ração passasse os limites dos lábios.

 

A maioria das pessoas não sabe que eu podia estar do outro lado. Por duas ou três vezes na vida ponderei estar. Do lado de quem escreve os textos fofinhos. Com dias de festa ininterrupta e o som acautelador do dinheiro a cair levemente nas contas. E por duas ou três vezes ponderei se não devia ir. Para esse lado aparentemente sadio. Viver como vive a metade que não é metade mas 1%. Penso que teria ido. Que irei. Quando estar lá significar poder tirar a fome a quem a tem, criar abrigo, abrir espaço de mudança. Só que não fui. Nunca fui. Porque o preço da passagem foi sempre a minha alma. Porque o preço da passagem era fechar os olhos. Tapar os ouvidos. Ser um dos muitos surdos dessa sala onde continuo aos gritos. Idiota ineficaz. A propagar as ideias gastas que chegam sempre e só até quem não pode mudar nada.

 

Eu quero muito escrever textos fofinhos. Mas assusta-me a ideia de que, se começar a pintar arco-íris na merda, os lúcidos comecem a ver purpurinas onde há a poeira das bombas. Sigo, pelas mesmas ruas onde os cartazes exploram a ignorância impingida em anos e anos de educação frágil, sem saber se condeno ou agradeço a quem me ensinou a pensar além dos manuais escolares.

 

Eu queria escrever textos fofinhos. Como os que se pedem na primária. Sobre flores e jardins. Mas, meus amigos, nessa altura eu já matava rosas que atacavam malmequeres com sumptuosa vaidade. Nessa altura eu já atirava setas contra muros de pedra. Nessa altura eu já me sentava no lugar de quem não tem lugar. E já gritava nas salas dos surdos.

 

Eu queria escrever textos fofinhos. Em vez disso escrevo textos fracassados. Talvez um dia escreva um texto fofinho. Só para passar o muro num Cavalo de Tróia só meu, poupando a alma. E atacar, de dentro para fora, essa terra de parasitas vazios, que suga a vida dos outros.

 

Escrevo este texto. Não sei para quem. E não sei para quê. E preferia escrever textos fofinhos: Era uma vez um povo que passou o muro, disposto a lutar, a qualquer preço, pela justiça, pela equidade, pela Liberdade, pelo todo…

 

Sim. Um dia quero escrever textos fofinhos.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Na falta de inspiração para títulos

 


Ando desinspirada. Não sei se é da chuva. Não sei se é do nevoeiro. Não sei se é reflexo do mês incrivelmente longo de Janeiro. Não sei se é dos conteúdos que continuam a cair-me no colo e que quero ignorar, mas não consigo. Não sei do que é! Sei que tenho muito para dizer. Demasiado. E não faço ideia de como dizê-lo sem parecer o disco riscado do costume, a dar palmadinhas na mão das pessoas como quem diz “ai, ai… olha que ser fascista faz mal à Liberdade. Temos de ser bons meninos. E de pensar nos outros.”

 

Quero escrever. Mas escrever é um ato de rebeldia. As palavras são indisciplinadas. Fazem motim nas frases dos meus textos. São tão violentas que, por vezes, preciso de controlar o dedo – o indicador da mão direita, como não podia deixar de ser - para não censurar os sentimentos que teclei antes de pensar, e que ficaram à esquerda do cursor que pisca, à espera que lhe diga qual a letra seguinte.

 

O que tenho para dizer não nasce em mim. Nasce em publicações e em vídeos repugnantes, de seres humanos que não merecem a designação, e que acordam o conservadorismo exacerbado com palavras de ódio agarradas ao politicamente correto. Dou por mim a odiar os conteúdos, os vídeos e as pessoinhas que os fazem. E o conservadorismo. E o politicamente correto, também. Mas eu não sou pessoa de ódios. E dói-me no peito quando percebo que não o é. Nem ódio, nem raiva, nem rancor. É medo… Onde vamos? Pergunto. Não há resposta. E tenho medo desse silêncio.

 

Palavras que não merecem ser repetidas – mas que é preciso repetir, para que se saibam - informavam os portugueses, há dias, de que as crianças estão a ser subvertidas pelos conteúdos sexualizados das escolas e que se transformam em “nem homens, nem mulheres, uma coisa estranha que não sabemos bem o que é”. Dou por mim a imaginar crianças que me saíssem do corpo. Crianças que poderiam ser quem fossem, porque não creio que julgasse identidades ou sexualidades ou escolhas de vida. Mas, depois, lembro-me de que alguém pariu aquela besta. E dá medo até disso. De parir. Fascistas. Mais fascistas, num mundo onde os media anunciam que 19% das intenções de voto já são neste tipo de pensamento-embalagem, que fica dentro da caixinha mais pequena de todas as micro-caixas.

 

Ando desinspirada. Peço aos meus seguidores de Instagram que me deem títulos. Uso-os. Como usei este, de alguém que certeiramente identificou o problema que motivou o meu pedido. Falta-me inspiração para um título. Não porque me falte tema. Mas porque sei que erodiria o teclado se começasse a falar, sem foco, sem direção, sem limite, de tudo o que me perturba.

 

Os debates políticos levam entre 25 e 30 minutos. Os comentários políticos e os comentários aos comentários políticos levam horas e horas. Se eu tivesse tempo de antena para falar de tudo o que me incomoda, a televisão viraria peça de museu e até o streaming já teria passado à história quando eu me calasse.

 

Se tenho um título para isto? Não tenho. O que se está a passar é inominável.

 

E assim fica a habitual palmadinha na mão.  “Ai, ai… olha que ser fascista faz mal à Liberdade.”. Mas com um título fixe. Que não é meu.


Marina Ferraz




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terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Perda de capital

 

 Fotografia de Skitterphoto

A manhã irrompeu. As lojas começaram a abrir. O rebuliço lisboeta acordou. Demoradamente, que não existe pressa no mundo dos mortos, Eça de Queiroz, Pessoa e Saramago caminharam. Passaram por lá uma vez mais. Depois de tantas outras vezes. Pararam junto à porta fechada. Trocaram o olhar de quem sabe o que sempre soube. Contestaram a realidade com palavras que não serão conhecidas, já que ninguém os viu ou ouviu. Mas imagina-se que as palavras tenham sido, agora, semelhantes às que antes proclamaram. Imagina-se que o Fernando tenha dito: “Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina.”(1) E que Eça tenha acrescentado: “país governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha.”(2) Sem perder o ar idóneo que sempre o caraterizou, imaginamos ainda que José tenha retorquido “aproximam-se tempos de obscuridade, o fascismo pode regressar; já não há muito tempo para mudar o mundo". (3)

 

A porta fechada da Livraria Ferin era apenas uma das muitas provas de uma Lisboa moribunda. Realidade triste para mim que, lado a lado com os meus ídolos, sem os ver ou ouvir, me permito também falar. Tenho exclamações menos literárias e das que os transeuntes podem ouvir, porque estou viva. Envio os causadores destra trama diretamente para a genitália dos pais deles. Mas sei que eles não ouvem. O barulho dos trocos milionários a quedarem-se na conta bancária deve impedir a perceção sonora de tudo o resto.

 

Lisboa é um mar de lojas históricas que fecham portas. Só no ano passado, além desta livraria – uma das minhas favoritas – fecharam também a Casa Chineza, o Bota Alta e a Barbearia Campos, e estou certa de que muitas outras…

 

Rendas impeditivas estão a impedir Lisboa de ser a minha Lisboa. A Lisboa que fiz minha dizendo que ela não era de quem vive nela, mas de quem a vive… ainda bem que ela não é de quem vive nela, penso agora, porque viver nela está a tornar-se luxo para turistas e burgueses.

 

As tendas montadas na rua são de gente que vive nela, mas não pode viver condignamente nela. E as placas de AL transformam a cidade bairrista num espaço onde o atendimento é feito, por defeito, em inglês. Nunca o fado soou mais triste. Falta a roupa estendida a cheirar a sabão, de janela a janela. O cheiro do café e dos guisados substituiu-se pelo aroma a fritos das grandes cadeias internacionais de fast food.

 

A Lisboa da Amália quis mesmo ser francesa. Mas não lhe bastou ser francesa. Também quis ser inglesa, alemã, americana. Quis ser de quem pagasse mais. Abriu os braços com a sua hospitalidade desejável e que sempre elogiei. Mas, depois, vendeu-se… pôs as suas gentes fora de portas, globalizou o bairrismo, subiu as rendas até que apenas o privilégio pudesse pagá-las. Lisboa foi-se perdendo.

 

Fico parada à porta da livraria com um ardor no peito. Lanço mais um insulto descontente aos políticos e a quem os pôs no mundo. Depois, lanço um elogio fúnebre a esta cidade que amo. Uma expiração. Um desabafo.

 

Oh Lisboa… Eu sempre disse que era má ideia investir em ações com risco de perda de capital…

 

 Marina Ferraz


(1) Fernando Pessoa em “Crónicas da Vida que Passa”, em O Jornal  nº5 (1915)

(2) Eça de Queiroz, em “O distrito de Évora” (1867)

(3) José Saramago, em “Jornal Público” (2007)

 



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