terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Textos fofinhos

 

Fotografia de João Lamas

Eu quero escrever textos fofinhos. Gentis. Mas é difícil conectar-me com pessoas desconectadas, usando os ardis populistas que critico nas vozes do poder. Penso, depois de me dar demais, que não nasci para me vender. Sempre preferi sentar-me na mesa da falta e partilhar o pão do que comer acepipes com caviar em bandejas de prata. E é justamente por isso que serei sempre uma voz que não gera preocupação às estruturas soberanas. As minhas palavras são flechas. Certeiras. Duras. Cáusticas. Mas que acertam sempre nos muros de pedra e diamante que me recuso a transpor. Não passo de uma espécie de idealista inútil, aos gritos numa sala cheia de surdos. Escrevo este texto. E não sei para quem. E não sei para quê.

 

Posso dizer que, nas mesas onde me sentei, já comi entradas de dor com quem tem fome. Posso dizer que essas mesas não eram mesas. Às vezes, elas eram chão, calçada imunda, lado a lado com pessoas sem-abrigo, que me agarravam as mãos como se houvesse algo de divino no meu privilégio servil. Às vezes, essas mesas foram de gente que tinha perdido gente… e até tinham pratos cheios, mas cadeiras vazias que tiravam a fome do estômago revolto, na ideia da perda. Às vezes, foram camas de hospital, de lágrimas engolidas, implorando para que ao menos uma garfada da descuidada ração passasse os limites dos lábios.

 

A maioria das pessoas não sabe que eu podia estar do outro lado. Por duas ou três vezes na vida ponderei estar. Do lado de quem escreve os textos fofinhos. Com dias de festa ininterrupta e o som acautelador do dinheiro a cair levemente nas contas. E por duas ou três vezes ponderei se não devia ir. Para esse lado aparentemente sadio. Viver como vive a metade que não é metade mas 1%. Penso que teria ido. Que irei. Quando estar lá significar poder tirar a fome a quem a tem, criar abrigo, abrir espaço de mudança. Só que não fui. Nunca fui. Porque o preço da passagem foi sempre a minha alma. Porque o preço da passagem era fechar os olhos. Tapar os ouvidos. Ser um dos muitos surdos dessa sala onde continuo aos gritos. Idiota ineficaz. A propagar as ideias gastas que chegam sempre e só até quem não pode mudar nada.

 

Eu quero muito escrever textos fofinhos. Mas assusta-me a ideia de que, se começar a pintar arco-íris na merda, os lúcidos comecem a ver purpurinas onde há a poeira das bombas. Sigo, pelas mesmas ruas onde os cartazes exploram a ignorância impingida em anos e anos de educação frágil, sem saber se condeno ou agradeço a quem me ensinou a pensar além dos manuais escolares.

 

Eu queria escrever textos fofinhos. Como os que se pedem na primária. Sobre flores e jardins. Mas, meus amigos, nessa altura eu já matava rosas que atacavam malmequeres com sumptuosa vaidade. Nessa altura eu já atirava setas contra muros de pedra. Nessa altura eu já me sentava no lugar de quem não tem lugar. E já gritava nas salas dos surdos.

 

Eu queria escrever textos fofinhos. Em vez disso escrevo textos fracassados. Talvez um dia escreva um texto fofinho. Só para passar o muro num Cavalo de Tróia só meu, poupando a alma. E atacar, de dentro para fora, essa terra de parasitas vazios, que suga a vida dos outros.

 

Escrevo este texto. Não sei para quem. E não sei para quê. E preferia escrever textos fofinhos: Era uma vez um povo que passou o muro, disposto a lutar, a qualquer preço, pela justiça, pela equidade, pela Liberdade, pelo todo…

 

Sim. Um dia quero escrever textos fofinhos.


 Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

 



Sem comentários:

Enviar um comentário