terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Coordenadas


Fotografia de Analua Zoé 


     A vida – disseram-me, um dia, num sonho – não é um lugar. É uma sucessão de encontros e desencontros. Metade do tempo não saberás o caminho. As coordenadas são estas: se estiveres perdida, estás no caminho certo.

     Perdi-me. Em ti. Por ti. Completamente. Contigo, perdi as certezas e as dúvidas também, à medida que buscava, no mel de olhos tristes, o espaço que me adoçava o amargo dos dias. Perdi-me. De mim. Das minhas infindáveis questões. Mergulhando nos teus abraços, na tua força. Perdi-me. Da minha solidão. Da minha vontade de estar só. Perdi-me. Do desejo que me atava à morte e à aceitação. Perdi-me.

     As muralhas do eu – perdidas – armadura intemporal do sobrava em mim, eram só pele frágil. E eu nunca fui mais forte.

     Olhando para ti, nessa força desprotegida, eu quis dizer-te. Quis assegurar-te do que gostaria que me tivessem dito, caso tivesse, algum dia, havido coordenadas em alguém como as que há, agora, em mim, no mesmo braço que empunha a caneta. Quis dizer-te: Sou tua. Estou perdida em ti. Por ti. E estou aqui. Sempre. Para sempre.

     A tua força frágil, ao lado da minha fragilidade forte parecia tornar desnecessária toda e cada palavra que eu dissesse. E a descrença dos teus olhos, afastando-te os passos e remetendo, tantas vezes, o nosso amor ao silêncio despido de nós, era uma espécie de faca com dois gumes afiados, rasgando as mãos que não largam e que fazem, assim, pactos de sangue.

     Se perderes a esperança, sabes onde me encontrar.

     Era isto que eu queria dizer-te. Nas palavras despidas de fé, semeadas no passado onde eu não moro, sei que a perdes. A esperança. E eu sei como a esperança é. Tão diminuta e transparente que, uma vez caída sobre as relvas do amanhã, se faz gota de orvalho e evapora. Como se nunca tivesse existido. Agarro-a nas minhas mãos, diamante inócuo, capaz de espelhar os sorrisos leves e a luminescência dos primeiros raios da aurora. Se a perderes, sabes onde me encontrar.

     Se perderes a felicidade, sabes onde me encontrar.

     À medida que me dizes. Não fui feliz nem vou ser. Justamente depois de te ter visto. Ser. Feliz. É isto que eu penso. Se perderes a felicidade, sabes onde me encontrar. E eu não sei se posso. Fazer-te feliz. Ou lutar contra o que não te deixa sê-lo. Sei só que tenho dois braços. Ouvidos. Coração. E que posso disponibilizar qualquer um deles para o que for preciso. Até os teus lábios deixarem de ser uma linha perpendicular com o chão que queres que te engula e encurvarem num sorriso sincero. Feliz. Dessa felicidade que não quero que percas. Mas, se a perderes, sabes onde me encontrar.

     Se perderes a força, sabes onde me encontrar.

     Fazes contas regressivas. Todo o futuro te é passado. E o passado foi o lugar onde aprendeste a ser forte, à medida que perdias a esperança e a felicidade. À medida que pagavas, com elas, o preço da força. Foi um preço elevado a pagar pela vida. Descomedido, se o considerares aplicado por quem se julga dono de mundos e razões que não tem. Olho para ti e é como se não pudesses ser outra coisa. Pareces-me forte como as muralhas que sobrevivem à passagem das Eras. Ainda assim, noto em ti, por detrás dela, o espaço raiz de uma mágoa. E quero dizer-te que podes. Deixar ir. Chorar. Ser a criança que não foste. Procurar o carinho que não tiveste. Ser alternativamente indefeso por dois segundos. E quero dizer-te que podes fazê-lo porque eu sei empunhar as armas. Vivo de loucura. Uma loucura que afasta raios e os fazem cair mais adiante, onde não ferem nem queimam. E, que me matem mil exércitos, mas não terás uma chaga sequer enquanto eu estiver aqui. Por isso, por favor, diz-me que se perderes a força, sabes onde me encontrar.

     Se te perderes de ti, sabes onde me encontrar.

     Mas os exércitos e os males do mundo são simples, não são? Podes bem com eles. Parecem-te brandos e suaves. Estás habituado a eles e levas a vida, provavelmente, já sem fé ou felicidade. Não são eles que te pesam. Pesa-te o corpo. Por mais leve que ele seja. São os passos que dás em ti que te pesam. Carregas decisões e fardos e histórias. E todos eles são cimento. Todos eles são betão. Os passos sobre a calçada são densos, parecem enterrar-te na sepultura vindoura todos os dias. E a alma separa-se, aos poucos, fugindo desse peso que não tolera… ou será o corpo que a expulsa por já não caberem nele 21 gramas a mais?! Seja como for. Penso que te perdes de ti. Às vezes. E quero que saibas que, além do corpo quente que me inebria de prazeres e sonhos; eu conheço o toque da tua alma. É ela que me dá vida. Foi por ela que, de forma quase inconsciente (e muito, muito insensata) me deixei arrebatar. Gostava de tentar devolver-te a ti. Então, se te perderes de ti, sabes onde me encontrar.

     Não sei. Não sei se queres. Se deixas. Se consegues. Mas, um dia, disseram-me, num sonho, que a vida não é um lugar. Que é uma sucessão de encontros e desencontros. Que durante metade do tempo não iria saber o caminho. E deram-me as coordenadas. Disseram-me: As coordenadas são estas. Se estiveres perdida, estás no caminho certo.

     Perdi-me. Completamente. Por ti. Em ti. Para sempre. Descobri. As coordenadas, afinal, não estão no braço. Estão na mão que escreve. Perdida de desejo, de vontade, de paixão e de amor por ti.

     Se quiseres perder-te em mim também, sabes onde me encontrar.





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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

As páginas centrais do livro





       Não sei o que está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.

     Nós não fomos os primeiros. Nunca. Ou quase nunca. Para ninguém. Mas também nunca nos importámos muito com isso. Pelas primeiras páginas do livro sempre tivemos o sentimento ambíguo de uma aventura que não sabíamos se podia ser boa, de uma narrativa ainda comprometida com explicações e descrições demasiado extensas e quase escusadas sobre um mundo que, tanto tu como eu, apreendíamos com facilidade e sem palavras. Ainda que o nosso olhar sobre o mundo fosse distinto – o teu mais prático e concreto, o meu mais intuitivo e onírico – não precisávamos do que vinha nessas primeiras páginas que não éramos nem queríamos ser.

     Apesar de nunca sermos os primeiros, também foi raro que nos quedássemos no fim do que quer que fosse. Se assim tivesse sido, talvez nos tivessem notado, em vez de permanecermos invisíveis. Mas tínhamos – temos – uma alergia às conclusões. Não gostamos quando acaba. Não gostamos da ideia de que acabe. Qualquer noção que se confunda com o fim nos lembra inevitavelmente que quase todos os que por nós passaram iam para lá: para o lugar onde chega o ponto final que remedeia tudo com a desistência. Não somos de desistir. Se, em vez de página, fossemos autores – e que ilusão é essa de criar algo, neste mundo onde tudo já existe – escreveríamos até ao último suspiro uma história que nunca terminaria.

     Tu eu sabemos bem. As pessoas ligam mais à lombada. E eu não sei o que está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro. Nunca passam por nós os olhos na decisão da demora. Perdem-se, talvez, na ilustração da capa; no nome e na biografia desse autor que deve ser um Deus qualquer em que não acreditamos. Espreitam a primeira página. Ou a última. Pousam o livro na estante. Levam o livro da estante. Tanto faz. Levam ou deixam, sem saber que existimos. Tu e eu. Nas páginas centrais do livro.

     Somos incrivelmente sós. Quem nos vê, rodeados de gente, não faz ideia. Mas tu és incrivelmente só. E eu sou tão só como tu. E mais sozinha, às vezes.

     Não sei o que está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro. Tantas vezes a vida embateu sobre nós, deixando-nos no negrume de uma quase inexistência. Tantas, tantas. Tantas, que julgámos que era porque não toleravam. E talvez não tolerassem mesmo. É o lado mais triste de todas as histórias, quando se chega a nós. Porque somos as páginas centrais de um livro. Aqueles que gostam de ler irão encarar-nos como um indício do fim. Aqueles que não gostam, irão ver-nos como marco de uma soma de páginas que nunca mais terminam. Passam por nós reclamando que nunca mais chegam ou que chegaram depressa demais. Passam por nós, numa reclamação frequente, constante, cheia de amargura.

     Nunca estivemos noutro lugar e julgámos sempre que nos odiavam. Ali, nas páginas centrais de um livro. Julgámos sempre que a vida era injusta por nos colocar justamente ali. No centro desse livro, que sempre foi fechado de forma violenta e abrupta. Sem cuidado nenhum, por todos os que queriam chegar à contracapa.

     Nas páginas centrais do livro, julgámos. Julgámos sempre que nos odiavam. As pessoas que nos liam. As pessoas que protestavam. O Deus no qual não acreditamos e que deve ser autor da história desse livro, do qual desconheço inscrições de lombada. Julgámos. Estávamos errados. Mas julgámos. E percebemos, mais tarde, que tudo era para que pudéssemos estar juntos na escuridão. Folha sem corte, dobrada e sobreposta na plenitude sem regras de duas páginas que se encontram uma sobre a outra e são só uma.

     E eu disse-te. Não sei o que está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.

     E tu respondeste. Não sei o que está escrito na lombada. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro.

     E as páginas centrais do livro eram uma folha só. E a solidão a dois era mais fácil. Principalmente por sermos um.

     Quando finalmente nos apercebemos de que éramos uma folha só, pensámos que podíamos sorrir. Mas alguém chegou. A essa folha dobrada ao meio, que era o centro do livro, no centro do mundo. Foi maldade? Foi destino? Não importa! Deixaram o livro aberto. E, na luz, somos duas páginas separadas ao sol. A vida - novamente injusta – punha-nos, sem razão, sabendo que éramos um, no centro desse livro, agora aberto. E a escuridão era, talvez, o único lugar onde podíamos estar juntos.

     Esperamos a noite. Ou que mãos caridosas fechem o livro outra vez. Mas demora. E dói. O sol cria lágrimas nos olhos. Sei que estás aí. Sinto que estás aí. És parte de mim e não te vejo. O sol cega.

     Não sei o que está escrito na lombada. Nem interessa. Mas sei. Sei que somos as páginas centrais do livro. Alguém o feche de vez, por favor. Não quero saber como acaba. Não quero que acabe. Quero-te.






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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Tudo sobre ti


Fotografia de Tiago Loureiro



      Eles sabem tudo sobre ti, menos quem tu és.


     Eles sabem o número do teu cartão de cidadão e o teu número de identificação fiscal. Sabem exatamente quanto descontas pra a Segurança Social e há quantos dias pagaste o passe dos transportes públicos.

     Eles sabem onde moras. Sabem a última vez que fizeram obras no teu prédio. Sabem quanto pagas de renda, a quem pagas a renda e quanto te sobra no salário depois de a teres pago.

     Eles sabem que foste tomar o pequeno-almoço fora e que, sempre que vais, pedes o mesmo. E sabem que compraste um par de botas novo, provavelmente na época de saldos.

     Eles sabem que tens um carro. Também sabem quantos carros tiveste antes de teres o carro que tens. E quando pagas o Imposto Único de Circulação. E de quanto em quanto tempo pões combustível. Sabem se o teu carro bebe gasóleo ou gasolina. Sabem quantos acidentes de viação já tiveste e se tiveste culpa neles.

     Eles sabem o que tu estudaste. E se trabalhas na área da tua formação. E quantos empregadores tiveste. Sabem quanto recebias em cada um dos teus empregos e até se a tua prestação foi boa ou má. Eles sabem se tens uma fonte de rendimento paralela. Sabem se fazes artesanato ou se fazes umas traduções de vez em quando, para safar uns trocos.

     Eles sabem a marca de papel higiénico que usas. E o supermercado onde o compras. Estimam o número de vezes que cagas com base na frequência da compra desse papel higiénico. É da mesma forma, com base nos detergentes, que sabem se limpas a casa ou não.

     Eles sabem as viagens que tu fazes e os monumentos que visitas. Sabem a música de que gostas, com base nos históricos de Internet e os concertos a que vais. Sabem quantas vezes por ano vais ao cinema.

     Eles sabem com quem tu dormes. Sabem quantos filhos tens. Sabem se queres ter mais ou se já fizeste a laqueação. Sabem se tens um problema que te impede de ter filhos. Sabem se os teus filhos vão à escola A, B ou C e quais os desportos em que já os inscreveste. Sabem se já plantaste a árvore e se já escreveste o livro.

     Eles sabem por onde andas. Sabem se tens as contas em dia. Sabem se alguma vez te esqueceste de pagar a luz ou a água. Sabem se recebeste uma chávena rachada no momento das partilhas da herança do teu tio rico que vivia no Algarve. E qual o valor exato dessa chávena.

     Eles sabem se jogas no Euromilhões. Sabem se apostas no Placard. Sabem se costumas ir ver a bola ao estádio, se pagas a Sport TV ou se compraste chuteiras para ir dar uns toques no campo da aldeia.

     Eles sabem. Não se interessam muito, a menos que possam ganhar alguma coisa com essa informação. Mas eles sabem tudo sobre ti. Tudo, menos quem tu és.

     Eles não sabem que tu pensas com a alma. Nem que te preocupas com o mundo. Nem que ficas com os olhos mais claros quando choras. Eles não sabem que estás apaixonado por uma pessoa que não podes ter, nem que passam muitas vidas pelo teu coração antes que ele aprenda a amar de novo. Eles não sabem que tens um universo de coisas na cabeça, tão vasto que até existem reinos de fantástico num canto da tua mente. Eles não sabem que estás farto que eles saibam tudo de ti.

     Eles sabem tudo sobre ti, menos quem tu és.

     À medida que te tornas um número, existe uma parte de ti que pode troçar deles, por serem ridículos. Por não saberem que, um dia, poderás ser bomba-relógio, a explodir na cara de todos os seus supostos conhecimentos. Sim! Uma parte de ti – que eles não fazem ideia de que exista – ri-se deles.


     Porque acham que sabem tudo sobre ti.

     E não sabem quem tu és.







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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Todos os meus músculos

   
Fotografia de Ricardo Torb


  Todos os meus músculos chamam por ti. Todos. Tensos, cheios de emoções. Todos os meus músculos chamam por ti. E eu tapo o rosto. Fecho os olhos. Finjo. Finjo a realidade. Essa que sabemos – tu e eu – sobre todos os meus músculos. Peças de corpo intransigentes e de vontade própria. Todos os meus músculos chamam por ti.

     Tento justificar com a música que toca a reação incansável dos músculos que enrijecem. Digo. É porque a música mexe comigo. E, algures, até a voz da cantora soluça, num riso calado. Como se… Até o guitarrista ou o baixista falham um acorde. Como se… E é improvável que o façam, porque é uma gravação a passar na rádio. Mas fazem isso. Apenas para se rirem de mim e da minha tentativa de justificar porque é que os olhos estão brilhantes e os músculos enrijeceram. 

     Claro que o corpo é poema. E é muito simples justificar qualquer coisa literariamente. Porque a literatura, como se sabe, é mentira. E, se nela reside desejo ou dor; vontade ou paixão, pode ser apenas para colorir as páginas. O poema é arte carnal, visceral. Vem das entranhas. E explica-se com facilidade que os músculos reajam a mentiras cáusticas. Não é por ti. É isto que o poema diz. Mas depressa se lança em semânticas raras, onde se coloca em causa a mentira da verdade e a verdade da mentira, até que a confusão é tanta, que sobra só mesmo corpo sem poema no próprio corpo do poema.

     Ser poeta é isso. Osso e sangue. E patologias. Muitas. Do foro psicológico, na sua maioria. Todas amalgamadas em pedaços inconcretos de estrofe. Misturadas em frases que ornamentam folhas. E, principalmente, em palavras que nunca chegam a tomar forma em lugar nenhum, senão entre sinais bioelétricos dentro da invisibilidade do que fica atrás dos olhos que cegam por ver dentro.

     E os músculos continuam tensos. Quentes. Tensos. Estirados. Desde o rosto, onde os olhos se fecham para te ver. Ao coração, que acelera para te sentir. À barriga, que se comprime para tentar acalmar as borboletas e todos os outros animais de zoo que insistes em colocar lá dentro sempre que te penso. E os músculos continuam tensos. Quentes. Tensos. Estirados. Desde as maçãs do rosto, que enrubescem. Aos braços que se agarram um ao outro para evitarem lançar-se na busca do impossível. Às costas, de asas interinas, que não rasgam a carne porque, se eu voasse, não resistiria em espreitar pela tua janela, apenas para, num vislumbre, saciar o meu indiscreto desejo de ti.

     Deixo-me ser poesia. Dessa que é visceral e totalmente louca. Detesto! Detesto as minhas rimas imperfeitas! Faltas-me tu para que a métrica bata certo. E eu continuo a mudar mobiliário orgânico da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, embatendo em duas ou três teorias antifascistas, antes de compreender que o problema não está na disposição dos órgãos mas no vazio das paredes.

     Sinto-me só. Custa muito admitir que me sinto só. Principalmente quando a pele nua tem músculos tensos. E eu entendo a sua linguagem e sei. Sei que todos os meus músculos chamam por ti.

     Todos.

     Mas principalmente o meu coração.






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