terça-feira, 27 de março de 2018

Não, não e não



Inesperada. Chega. Uma onda de tudo. Rompendo as entranhas. Rasgando por dentro a carne e a alma. Fazendo azias sucessivas pelo sistema digestivo. E pela espinha. Queimando. Até chegar ao nariz. Como um indício. De choro.
Olhos fixos no anteontem. E fios de cabelo a prenderem-me, feito âncora, à realidade. Ferrando as unhas nas mãos. Frias. Lívidas. Não, não e não. Da inércia ao pulo. Correndo. Até chegar. E olhar. Nos meus olhos. Bem dentro dos meus olhos. Em frente ao reflexo. Que ameaça sucumbir. Não, não e não.
A menina desobediente do espelho encolhe os ombros. E eu olho para ela. Franzo o sobrolho. Deixo que desfeie a testa enrugada das expressões. Repito a palavra. Não. E ela não faz muito caso de mim. Mas também não deixa que o picante desassossegado das emoções seja mais forte do que as minhas ordens.
A onda mantém-se. Em banho-maria. E eu olho para ela. E ela olha para mim. E fazemos um ar cínico e despojado de regras uma à outra. Podíamos matar-nos ali mesmo. Sem compaixão. Sem remorso. Sem que ficassem penas a ondear em nosso redor. Em vez disso, olhamos uma para a outra. E fingimos que não vamos chorar. Dizemos não.
O ardor chega ao peito. Vibra na ponta arrepiada do nariz. E quer fazer-se dor. Tolhe-nos os sentidos desalentados e descontentes. Faz com que brilhem pequenos sóis de chuva no canto dos olhos amendoados. Não, não e não.
Ela resvala. Fraca. E os olhos são água. Mas a água não verte. Eu levanto o indicador, espeto-lho mesmo em frente ao rosto. Tu nem te atrevas! E ela, que sou eu, tem medo de mim. E saber que tem medo de mim também lhe dá vontade de chorar. A tristeza é grande. E a maior é essa.
Sufoco. Não, não e não. Mas engulo as lágrimas. O nariz arde. O peito arde. Tudo arde. E tenho frio. Forço um sorriso. E ela devolve-o.
- Não o sentes, pois não?
Ela abana a cabeça.
- Eu também não.




*Imagem retirada da Internet
Fotógrafo: Paul Apal'kin


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quarta-feira, 21 de março de 2018

A cor das minhas paredes




Às vezes, o teu vazio pinta-me as paredes. E, ainda que me não chovam os olhos, é como se houvesse invernos e grades em meu redor. Prendem-me a mim mesma e fazem-me perceber bem as razões pelas quais não estás. Por um segundo, eu também quero ir. Não sinto que sou um bom lugar para edificar amanhãs.
A cor das minhas paredes é o teu cheiro. Lavado com lixívia e detergente. Esfregado com panos e unhas. Mas impregnado. Imutável. Na memória sensorial que te torna eterno nos meus segundos de desespero.
Digo que não te amo. Assim. Simples. Não te amo. Grito. Em silêncio. O grito mais desenfreado de todos. E o mais pacato. Ninguém o ouve. Queima a ferros na pele. E dói. Mas não deixa marca. Tal e qual como esse passado que se finge que já foi. E nunca passa.
Sou filha do mar e das descobertas que um povo nele fez. Tenho sal na pele e especiarias na língua. Tento fazer o meu fado. Fiel. Mas a verdade é que, na pele, eu queria as tuas mãos. Na língua, eu queria a dança dos nossos beijos. E este país fadista é hoje todo saudade e mortos a boiar nas águas negras ao largo do Cabo das Tormentas.
Amas-me?
Faço a pergunta ao vazio das paredes. E as paredes desonram o passado. Dizem-me que pare. Que seque as perguntas como sequei os olhos. Que te deixe ser feliz. Que me esqueça de perguntar. Tudo. Isso. Também isso. Se me amas. E calo-me. Obedeço. Percebo que pouco mais tenho feito além de obedecer. O mundo é todo meu dono. E eu sou escrava dessas vontades que me não são. Vergo-me às chibatadas do tempo. E dou as costas, feitas de asas. Para que me arranquem as penas. Essas que consomem o espírito.
Eu sou muitas coisas. Eu não sou ninguém. E hoje sinto.
Pouco há no chão além de pedras. E corpos que apodrecem. Invejo, de ambos, a sorte da inércia. Invejo-lhes o sono pesado. E a forma como não vêem o vazio que hoje me pinta as paredes.






*Imagem retirada da Internet


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quarta-feira, 14 de março de 2018

Leva tudo




“Conservar algo que possa recordar-te seria admitir que eu pudesse esquecer-te.” (William Shakespeare)

Não preciso de nada teu. Não quero nada teu. Leva, por favor, cada um dos teus pedaços. Deixa só os meus, ainda que me sobrem salas vazias e pó. Não quero nada. Leva tudo contigo.
Não quero olhares complacentes nem penas atiradas ao ar. Nem mesmo nuances gastas entoando o tanto que te dei. Porque a vida não é sobre as coisas que são dadas. É sobre aquelas que se roubam, apesar do muito oferecido, numa ganância sentimental que só culmina no exagero do vazio.
Se vais procurar um espaço mais cheio, onde caibas, inteiro, acho que deves ir. Mas, por favor, não me deixes os monos da tua passagem. Não me deixes nada que possa lembrar-me das noites de riso, dos corpos dançando sem som, ao ritmo de um amor eterno que, afinal, tinha prazo de validade.
Não preciso de nada teu. Não quero nada teu. Leva tudo contigo.
Já basta que se tenha agarrado às paredes a memória do que ninguém sabe. Das melhores sensações, às discussões mais abruptas. Onde tanto foi feito, onde tanto foi dito. Basta que se tenha agarrado às minhas paredes o rancor e a solidão, entre os quais vou viver, tentando construir com o tempo algo de mais firme e mais meu. Não quero as tuas mesas nem os teus filmes, nem as tuas bugigangas. Não quero o teu sofá nem as tuas toalhas. Nem as tuas chávenas, nem as tuas velas. Hei-de encontrar outra forma de alumiar as noites frias. Hei-de encontrar outra forma de as aquecer.
Leva tudo contigo. Deixa-me, por favor, prateleiras sem nada, gavetas vazias e divisões onde o eco preenche espaços desalentados. E, de resto leva tudo. Por favor. O que já tinhas. O que compraste. As coisas que te dei. Principalmente essas. Leva-as. Se não as quiseres, podes deitá-las fora. Queimá-las. Mas leva-as. E, com elas, também este inútil coração – que não é mais do que cacos, outra vez. Leva-o, porque to dei e não o quero mais. Nunca mais. Queima-o com os livros e os poemas. Queima-o com os elefantes e as garrafas. Queima-o. Outra vez.
Não preciso de nada teu. Não quero nada teu. Leva, por favor, cada um dos teus pedaços. Deixa só os meus, ainda que me sobrem salas vazias e pó. Não quero nada. Leva tudo contigo.
Já basta que o chão tenha os teus passos. E que o teu cheiro seja uma memória de manhãs de sol. Já me basta sentir-te os beijos no café e o toque no cair da água sobre o corpo despido. Já me basta recordar-te os pedidos dos dias quentes. Não quero que te fiquem as memórias rasteiras, feito hera, a proliferar nas minhas paredes, nas minhas gavetas, na minha esperança. Leva. Leva também a esperança. Leva tudo contigo.
Com o vazio, reaprenderei a lição. Perceberei novamente a sina de se ser monstro, entre humanos. Espelho eterno do que nunca se sabe. E estarei mais próxima do que me fez ser eu, antes de me roubares de mim, para me prometeres algo que, afinal, não podias dar-me. Ou que podias… e eu não deixei. Ou que deixei… mas não conseguiste. Deixa-me reaprender, dando as mãos à solidão que, antes de ti, sempre me assinou os livros de visita.
Não preciso de nada teu. Não quero nada teu. Leva, por favor, cada um dos teus pedaços. Não os deixes aqui, a fazer-me lembrar do que podia ter sido e não foi. Leva tudo contigo. Para eu me esquecer. Para eu fingir que me vou esquecer. Como se pudesse esquecer… logo eu, que sei de cor cada detalhe de ti.






*Imagem retirada da Internet


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terça-feira, 6 de março de 2018

Overdose




A dualidade da vida é, talvez, um pouco mais simples do que as linhas pardas com as quais tentam pintá-la. Pisando as pedras do chão, em desenhos brancos e negros, sinto-me criança outra vez. Saltando, de desenho em desenho. “E quem pisar as brancas, morre.”.
“A miúda vai cair”.
Ainda soam as palavras. De alguém. Que, indo atrás de mim ou à minha frente, não saltava as pedras. Morria. Nas brancas. Sem arriscar os saltos. Julgando-me, talvez, infantil e idiota por insistir numa brincadeira de quilómetros. E julgando sempre que acabaria ferida, de rojo no chão, com os joelhos esfolados. Por não andar. De uma forma normal. Como os outros.
Mas andar como os outros sempre me pareceu pouco. Porque os passos que dão são sisudos e fechados em si mesmos. Não contam. Assentam-se no desejo do destino. E a meta é só lá à frente. Por vezes nem chega. Anda, também em passos “normais”, ao mesmo ritmo daqueles que acham que o caminho importa pouco.
A dualidade da vida é bastante simples: molda-se entre a falta e o excesso. E nas críticas daqueles que têm falta sobre aqueles que têm excesso. E nas críticas daqueles que têm excesso sobre aqueles que têm falta. E todos somos falta e excesso. Uns mais. Uns menos. Uns numas coisas. Outros noutras. Somos todos dualidade, embora nem todos sejamos vida.
Àqueles a quem falta o desejo de imaginar fossos no sítio das pedras brancas, falta geralmente visão sobre o que acontece no mundo e fora de si mesmos. E falta-lhes motivação para acordar. Razões para sorrir. Esperança num universo mais justo. Falta-lhes um sorriso que se dê, vadio, nas mesmas ruas onde caminham. Falta-lhes a loucura da decisão inesperada e do “é agora ou nunca”. Falta-lhes a capacidade de esquecer o risco que se prende à ação. Falta-lhes a vida que devia haver entre o berço e a sepultura.
Salto. De um desenho para o outro. Entre um desenho e o outro há pedras brancas. Mas imagino falésias que levam ao nada. E rodopio sobre as pedras escuras, dançando o jogo da ilusão. Tenho, talvez, excessos. De imaginação e sonhos e ilusões. Tardias e cândidas, fazendo de mim criança mesmo quando os anos passam. Tenho excesso da menina que fui. Excesso dos seus cabelos encaracolados e da sua timidez morta em cânticos à lua pelas ruas da cidade. Excesso de palavras presas, que criam mundos na minha cabeça, meio loucos, meio díspares, todos feitos de uma alucinação presente.
E sei que vou morrer. Tenho excesso desta certeza. E, talvez porque a tenho, em excesso, não me assusta a ideia da morte. É apenas pisar as pedras brancas do caminho. E a meta é essa.
Não tenho medo da morte, nem dos excessos. Sinto que posso viver nessa overdose de sentimentos e sonhos, de forma segura e eterna. Serei sempre princesa no meu tempo que não envelhece, de asas fechadas sobre as costas onde nascem luas e elementos feitos a tinta. Salto.
Quem pisar as brancas morre. Toda a gente morre. Mas alguns morrem de falta. Pisando as pedras brancas.
Eu não. Eu piso as pretas. Vou. Vou de excessos e rumo aos excessos. Também vou morrer. Quero morrer. A eternidade assusta-me. Mas, quando morrer, quero que seja de overdose de vida.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet


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quinta-feira, 1 de março de 2018

Abertura fácil



Sobre a minha cama existe um tecto. E, em cima dele, mora alguém que lhe chama chão. Amontoados nas prateleiras mais ou menos organizadas do mundo. Falando sobre andar lado a lado, à medida que nos empilham, até estarmos todos uns em cima dos outros e promovendo dietas saudáveis para verem se ocupamos menos espaço. É assim que vamos. Porque é mais fácil. Dizem.
O chão da vizinha, que é o meu teto, não prima pela espessura concreta do isolamento. E, por isso, sei quando o bebé chora e a forma como o choro do bebé se abafa com o ligar do aspirador ou de um qualquer canal de televisão no volume máximo; atirando palavras que misturam o cansaço do dia e a irritação noturna. Iniciam-se discussões que duram até ao bater da porta. Não sou eu, és tu que és difícil. Ele acha-se fácil. E diz isso.
Fugindo dos sons, os passos caminham pelo espaço limítrofe das calhas da porta, fechando com cautela a dita, para que, batendo, não acorde o bebé que se embalou nos gritos maternos. E encontra-se o toque, mais ou menos feito de gelo, de um vento que, vindo de Norte, traz consigo Invernos, seja em que estação for. E respira-se geada amanhecida. Continuadamente empoada, pelos traços nocivos de um fumo que desaparece. Perfume de asfalto alcatroado e de borracha queimada. E um toque putrefacto proveniente dos contentores que medeiam as prateleiras de gente da cidade. E o carro que virá, pela madrugada, com o som meio soprado e contínuo que lhe é caraterístico. A vida torna-se, assim, mais fácil. Digo eu.
Não há estrelas cadentes no céu. Mas fico à espera de ver passar lixo galático e universal, formando um risco ilusório no céu para pedir desejos. Também dos desejos o dizem. Que são fáceis. E são. Na sua utópica fantasia, onde tantos passados se enterraram, os desejos têm a facilidade da não concretização agarrada aos seus tornozelos oníricos. E é fácil. Ou é o que dizem.
No sol nascente, existe o cinzento colorido a fogo que traz uma esperança renovada. Para quem dormiu. Eu não. Mas, para quem dormiu. Para quem tem a sorte de tetos mais espessos ou chãos menos permeáveis. Para esses, ele é a renovação da esperança, e tem possibilidades à espera, na hora da tigela de cereais com leite. Essa que se corta, com faca ou tesoura, no local onde permanece a indicação de abertura fácil. É o que diz. Fácil. Mas já alguém abriu um pacote de leite pela abertura fácil, sem recorrer a objetos cortantes e três graus de impaciência?
Entro. Na minha prateleira. Para comer os meus cereais saudáveis. E cumprir os desígnios. Os de ocupar menos espaço no mundo. Enfezando-me e empilhando-me junto aos outros seres enfezados e empilhados. Dizem que é difícil escrever. Eu não concordo. Acho que é difícil calar os pensamentos. Esses que nascem, aos poucos, talvez entranhados de palavras ocas e cheiros nauseabundos. Dizem que é difícil pensar. Não é. É fácil. Como a abertura pré-estabelecida de um qualquer pacote de leite.



Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet


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