terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Forca

 

Fotografia de Hélio Silver
Modelo: Ana Pessoa


Cordas. Momentos. Nós.

 

Nós. Cordas. Acordas e os momentos foram. Nós. Um tempo passado qualquer. Até ser só silêncio. Cordas. Filamentos unidimensionais vibrantes. Teoria. Unindo cada elemento da Natureza. Quero ser. Natureza. Com ela como ela é em nós. No nós. Nos nós. Digo que está na hora. Aprendo-os, um a um.

 

Formo o laço com a ponta que a precede e seguro-a. Puxo a parte comprida para o solo. Laçada. Da ponta mais longa num entrelaçar sem culpa. Uma laçada a mais. Espaço reduzindo. Laçada afastada. Robustez. Puxo, entre mão e mão, criando distância entre ponta e ponta. Nós. Nós como nós. À distância.

 

Leio sobre sucesso e silêncio. O papel da noite. O papel da hora na qual se esquece a vida. E sobre a estaca. Nova. Ou a ventoinha. Estável. Ou o vão de escada. Pedra-mármore.

 

Uma última dança de pés pendentes. Descalço os pés. A sola do pé é sonho desenhado no bailado do fim. E os momentos dançam. Nós firmes. Cordas robustas. Espaço e hora alinhados com o horizonte do (a)mar.

 

Orgulho-me da forca. Da suavidade do seu toque sobre a pele, ardendo de desejo. Pelo vibrar dos filamentos. Teoria. Unindo-me à Natureza. Até sermos nós.

 

É um salto e um deus velho, com prefixo e prótese. Um salto. Um sopro. O último. Seria o último. No nós. Nos nós. Nas cordas. Mas o tempo vem. A corda parte. A corda desata. A trave estala. O chão. O momento. O sôfrego engolir do ar. A falha. E o riso. Sempre o riso. Desse fantasma imprudente que me ensina sobre as laçadas e me observa as tentativas loucas do fim que não vem.

 

Incapaz de cumprir o meu propósito, pergunto-lhe o que me falta. Logo a mim, que aprendi sobre os nós e as horas e as estacas. Logo eu, que escolhi a corda certa e o momento exato. Sorri. Ri. Responde-me que não é sobre o que me falta.

 

Presa ao insucesso e ao fracasso - desconhecido dos outros, mas tão profundo em mim – sinto a espiral de desencanto ao lembrar a forca ineficaz, sempre falha no cumprir do meu ímpeto.

 

É antes – asseverou - o que tens de sobra. O que pões nessa forca sempre te fará viver mais um dia...

 

Perguntei. O quê?

 

Sorrindo, respondeu-me:

 

Uma cedilha.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Filosofia

 


“Nenhuma doença faz bem à saúde.”

- António Costa

 

 Filosofia. Pura. Da que faria corar Aristóteles e equivocaria Platão. Epicuro poderia discordar, já que defendia que “não se pode não ter medo quando se inspira o medo”. Mas não deixa de ser filosofia. A filosofia da constatação do óbvio. Algo similar à que pinta nas retretes das estações de serviço, de Norte a Sul. E que, de tão óbvia, parece certa, embora, na prática, dois dedos de testa cheguem para a questionar.

 

Eu poderia, no geral, concordar. Sobre a doença. Que não faz bem à saúde. Mas não é verdade. E não o é por várias razões.

 

Para começar, toda a imunidade que construímos ao longo da vida provém – literalmente - de uma reação física à doença. É ficando doentes que o corpo cria anticorpos. À medida que combate vírus e bactérias e partidos políticos. É assim que, ao longo do tempo, nos tornamos imunes às viroses, às infeções e à estupidez mórbida.

 

Na maior parte dos casos, a doença é o que cura a doença futura, com ou sem a ajuda de medicação extra – sim! Que ninguém nega o papel incrível da ciência no processo! – Mas, aqui, um aparte: se não fosse a doença e a curiosidade humana sobre a doença, nenhuma cura teria saído dos laboratórios. Diriam, com toda a sua sabedoria, os homens que os ocidentais tomam por incultos, que é preciso o veneno da cobra para se curar a mordida.

 

E se a doença não for curada, numa análise muito pessoal, acho também que faz bem à saúde. Nunca se ouviu falar de um morto que ficasse doente. Talvez todas as doenças mortais façam, na realidade, bem à saúde.

 

Sobre a classe política portuguesa e todas as suas demonstrações de eloquência, posso ainda asseverar que me fazem sentir que a doença teria, se em escala e proporção letais e ubiquamente orientadas para esta categoria social, o potencial de fazer muito bem à saúde do país, que continua num remoinho de decadência às mãos de pobres tontos que vivem de chavões, lugares comuns, usura e contas offshore.

 

Simone de Beauvoir, também ela filósofa, desta feita existencialista, disse um dia que “começamos a morrer assim que nascemos”. É nesse caminho que estamos. Eu estou. Estou a morrer. Cada dia a mais é-me um dia a menos. Estou a esgotar o tempo. A subtrair as respirações. A ter uma contagem cada vez menor de sístoles e diástoles.

 

A vida é curta. Não quero vivê-la com medo. E recuso a ideia da doença que faz mal à saúde. O que faz mal à saúde é isto. Saber que vou morrer. Que não tenho medo da morte. Mas que me assusta a ideia de morrer sem ter vivido. E que é isso que querem que faça. Para não adoecer...


 Marina Ferraz





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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

As putas

 

Fotografia de Hélio Silver


Eu sou uma puta. E, desculpem. Pensei o conceito. Conclui que sou puta com muito orgulho!

 


Dizemos. De pequeninas. Às nossas crianças. Às meninas, principalmente. O mundo está a mudar. Podes ser o que quiseres. Sê forte. Independente. Ama-te. Podes ser o que quiseres. As mulheres podem ter gostos, desejos, vontades. Já têm voz. Lutaram pela voz. Encontraram a voz. Mereceram a voz. Conquistaram-na. Sê. Sê essa mulher pela qual as mulheres do passado lutaram tanto…  Dizemos. De pequeninas. Porque queremos acreditar. Mas esquecemo-nos de as avisar. Nem todas as mulheres são assim. Só algumas. As que a sociedade não chama de mulher. Mas de puta.

 

O exercício de olhar para as mulheres fortes que nos rodeiam é imprescindível. Para aquelas que aprenderam a falar, sem medo das palavras. Para aquelas que, degrau a degrau, conquistaram aqueles parcos 13% de cargos de chefia que fizeram manchete de jornal. Para aquelas que vivem a sua sexualidade ao limite do que julgam certo, sem prestar conta do número de parceiros e sem negar que gostam do prazer pelo prazer. Para aquelas que falam sobre qualquer tema, em qualquer lugar, com desenvoltura. Para aquelas que vestem o que querem. Para aquelas que não prestam contas a ninguém e que se bastam. Um toque de orgulho bate no quadrante feminista, feminino, do peito. Bate, não bate?! E, depois, paramos. Perguntamos a toda e a cada uma delas: alguma vez te chamaram de “puta”?

 

É um teste que já fiz. Mas não se guiem por mim. Façam. Perguntem. Perguntem à vossa mãe, à vossa irmã, à vossa avó (que até vai à igreja todos os dias e se benze quando vê uma mini-saia). Perguntem à vossa colega, à vossa chefe, à vossa amiga, à vossa professora. Perguntem a alguém que admiram. Todas somos, fomos ou iremos ser putas na boca de alguém.

 

Ser puta, hoje em dia, já não é uma profissão. É, ao que parece, uma forma de respirar realizada por mulheres. Mais pelas mulheres que não cumprem os padrões de conformidade com a norma arcaica patriarcal e misógina. Mas, em última análise, por todas as mulheres.

 

Algumas são como eu. Naturalmente putas. Putas como as putas são quando isso significa ser-se mulher e não ter medo disso. Putas como quando o orifício que nos determina o sexo não é uma falta, mas antes um bónus no género. Putas como quando o corpo não nos enoja nem nos envergonha e não é a inércia, a apatia, a passividade e o emudecimento a talhar a pauta da nossa sexualidade e das nossas conversas sobre a sexualidade.

 

Tenho a certeza de que as profissionais do sexo poderão ofender-se. Por lhes roubarem um título inerente – que os anos vulgarizaram a ponto de perder a tonalidade ofensiva, quando se trata de trabalho efetivo – mas chamaram-me puta. Rotularam-me. E eu tenho de concordar que, nas noções do moralismo e do machismo, devo ser. Puta. Provavelmente tenho conversas de puta. Visto-me como uma puta. Penso como uma puta. E só não fodo como uma puta porque nunca ninguém me pagou!

 

Enquanto as palavras de suposta ofensa me entram pelos ouvidos, eu penso nas palavras que dizemos às nossas crianças e de como nos esquecemos de as alertar. Penso como se tornou simples colocar o rótulo – antes tão pernicioso – agarrado ao toque do feminino selvagem. Penso e concluo: quem as diz não podia estar mais certo! Eu sou puta. E, desculpem. Se ser puta é ser eu, sou puta com muito orgulho! Porque percebo que, hoje, qualquer mulher que reclame para si os mesmos direitos que um homem naturalmente tem o é, foi ou será.

 

Desculpem se, quando eu durmo com alguém, isso me faz galdéria. Um homem seria garanhão.

Desculpem se, quando eu falo de sexo, isso me faz rameira. Um homem seria espirituoso.

Desculpem se, quando eu sou eu, me torno a vergonha da família. Se eu fosse um homem, seria o seu orgulho.

 

Reservo-me o direito de ser a galdéria, a rameira, a vergonha da família. Reservo-me o direito de ser “a puta”. Reservo-me o direito ao meu próprio corpo e à minha própria voz. Reservo-me o direito de ser eu.

 

E sim, estou puta! Estou puta e sou puta. Aparentemente. Por isto: porque me reservo o direito de pôr dentro de mim quem e o que eu quiser, desde que haja consenso. E, desculpem, a misoginia, o preconceito e as mentes retrógradas não entram em mim, nem com promessas de céu, nem com noções de politicamente correto, nem com o pedido para que eu me reduza para encaixar no mundinho pequeno dos outros. Talvez seja, de facto, puta. Mas não me vendo por tão pouco.

 

Não aceito que prendam a minha feminilidade com cordas nem que me acorrentem às ideias de um conservadorismo fora de prazo de validade. Serei a puta, então. Mas não me vendo. Não me rendo. Porque sou eu com orgulho, como as putas devem ser, perante um mundo que, aparentemente, ainda é (um)a Rua (de) Direita.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Voodoo

 


A agulha é a espada dos novos ditadores. Fabuloso. Com ela, injetam euros nas próprias contas, substâncias nos crentes e miséria nas sociedades. A agulha é a arma do momento. O boneco de voodoo somos nós.

 

 

Usaram a lã de carneiro para encher o bonequinho. No seu esqueleto, a cruz católica, que ainda se honra sem regra nem diploma, formando os bracinhos abertos à espera que caiam soluções do céu. Colocaram o tecido de máscara, forrado de falta de empatia, para o fechar e aconchegar no seu requinte de perfeição. E uma primeira agulha para coser cuidadosamente as bainhas. E uma segunda para desenhar olhinhos cruzados nas órbitas. E uma terceira... para nos proteger. E dizem que tem a intenção do que nele se verte. Mas... quem verte o quê?

 

Das intenções, não sei. Mas deitaram sal nas portas dos restaurantes, dos ginásios e das discotecas. Não vá entrar o demónio, pelas mãos de quem não tem o seu próprio amuleto. E lá vemos os incautos favoritos, a agitar o seu bonequinho de voodoo à porta. Orgulhosamente. Parte da solução de todos os problemas menores. Os Protegidos. Os Protetores. Os Promotores da Ordem. Mil elogios em horário nobre. Seja!

 

Eu estou cansada de brincar com bonecas. Aliás, eu nunca fui muito fã de bonecos. Estava entretida. Mesmo na infância. Com os livros. A perceber como, em tempos, outros discursos (ou os mesmos), moviam outras massas (ou as mesmas), levando-os a outros separatismos (ou aos mesmos) e criando outras manchas negras no mundo (ou as mesmas). Diziam-me que os livros abriam os horizontes, mas frequentemente me ordenaram que os largasse e fosse brincar. Teriam medo de horizontes abertos?

 

Acho que tinham. Medo. Porque horizontes abertos criam ideias. Ideias criam pensamento crítico. Pensamento crítico cria desobediência. Desobediência cria mudança. E é o status quo lhes alimenta as contas e os egos.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

As contas esvaziam-se. Os espetáculos cancelam-se. As doenças matam por falta de acompanhamento. Cirurgias cruciais que nunca são feitas viram autópsias precoces.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

O problema é que dizem que o problema é outro. Que a solução é outra. Quando a solução não funciona, o problema é de quem não confia na solução. O problema é quem não confia na solução.

 

Vai! Vai brincar com bonecas!

 

Mas não te apoquentes. Porque não és assim tão melhor. Chegas. Do nada. Uma espécie de fonema incerto. Lançado dos confins. Para defender o mesmo, de outra maneira. Olha: ainda sobrevives! Fico feliz. Sorrio. Sorrio de verdade. Até sentir. No peito. Lá. Onde dói mais. Mesmo em cima da ferida que não sara. O rasgar de novas emoções. Penso por segundos que a humidade é sangue. A humidade é lágrima, caindo. Sobre o decote aberto e a ferida de Pedra.

 

Vão espetando – todos - a agulha. Essa arma. Ela entra mais fundo, para libertar mais um bocadinho da saudade líquida que me fica de passados livres – hoje com mais mutações do que os vírus. São doses e doses dessa saudade. Para eu ir morrendo, mas a respirar...

 

A agulha é a espada dos novos ditadores. Fabuloso. Com ela, injetam euros nas próprias contas, substâncias nos crentes e miséria nas sociedades. A agulha é a arma do momento. O boneco de voodoo somos nós.

 

Ouço: Vai! Vai brincar com bonecas!

 

Perdoem-me! Já tenho o peito dilacerado. Talvez tenham sido os livros. Talvez tenham sido as espadas. Talvez tenhas sido tu. Talvez seja tudo junto. Nunca tive uma cruz no esqueleto, nem jeito para a costura e os lavores. Dispenso as espadas modernas. Fico-me pela palavra. Chamem-me louca! É a única arma que sei desembainhar e brandir. Chamem-me pária! Pena é que tantos, tenham escolhido (e escolham ainda) os bonecos em vez dos livros...

 

Trago o peito rasgado. Página do livro que aparentemente ninguém leu. Mas, por favor, deixem-me ir com ele assim, aberto. Não preciso de agulha que mo remende.

 

 

A agulha é a espada dos novos ditadores.

 

E, se o boneco de voodoo somos nós... eu não brinco mais!


 Marina Ferraz





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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Seguro

 



Não é seguro. E ainda bem que não é. Porque, se fosse, o caminho ia ser vazio. O tempo ia ser inútil. A vida não seria mais do que um caminho desinteressante para a morte.

 

 

2021. Dezembro.

 

Mas poderia ser 2020.

 

Por este caminho, poderia ser 2050.

 

 

Segurança é a apologia do momento e, como tal, “seguro” virou a nova palavra de ordem. É uma moda como outra qualquer. E certamente um negócio muito eficaz e que está a encher vários bolsos por aí, enquanto esvazia outros. Os 1% do costume vendem a ideia de segurança e 98% compram-na sem hesitar. O mundo não é seguro, mas está cheio de idiotas. Acontece.

 

Agora, as suas compras são seguras. A cultura é segura. Ir votar é seguro. O rodizio de piza de uma cadeia conceituada é seguro. Ir ao hospital é seguro. Ir ao cabeleireiro é seguro. Fazer...

 

{Pausa para higienizar o texto, borrifando um bocadinho de revirar de olhos antisséptico sobre o ecrã e desinfetando o teclado com um suspiro.}

 

As promessas de que tudo o que serve interesses comerciais e estatais é seguro são vazias... e as tentativas de comprovar que tudo o que não se rotula desta forma é indesejável é, provavelmente, a menos segura de todas as coisas pouco seguras.

 

Eu aprendi isto algures entre os 2 e os 4 anos de idade, quando queria voar e não me deixavam, caí do baloiço, apanhei um choque na ficha elétrica, o meu irmão me partiu a cabeça na praia, o mar me ia matando e à minha irmã ou fui mordida por um simpático caniche... Aprendi com facilidade, sem precisar que mo dissessem. E achei que era evidente. Viver não é seguro.

 

Em Junho, a Dona Maria, de 75 anos, estava no quintal de sua casa quando um carro se despistou e invadiu o seu jardim. Morreu na segurança da sua casa.

 

Um jovem de 26 anos estava pacatamente na sua vida quando o prédio desabou. Morreu na segurança da sua casa.

 

Nove pessoas estavam num autocarro seguro, que certamente cumpriria todas as normas de circulação estipuladas pelas leis locais. Um prédio desabou sobre ele. Morreram na segurança do trajeto quotidiano.

  

Setembro 2021: um raio caiu junto a um abrigo de animais, deixando duas pessoas feridas. Uma terceira perdeu a vida.

 

O mundo não é seguro. Viver não é seguro. Não sabemos se o próximo passo que vamos dar não é, em efetivo, o último. E se for? Será que interessa? A mim, parece-me pertinente dar esse passo. Porque é isso que nos move, que nos leva a outras paragens, que nos alarga os horizontes, que nos constrói como pessoas e que nos permite viver.

 

Toda a gente morre... não tenho a certeza se toda a gente vive. Mas sei isto: toda a gente morre. E custa-me ver mortos a deambular nas ruas, com tanto medo da morte que mais parecem ter medo da vida. A aceitarem tudo o que lhes estendem como pilulas de salvação, engolindo medicação e patranhas com a mesma facilidade, porque empurrado com água tudo desce.

 

A mim mata-me. Esta busca pela segurança. Porque eu quero viver a vida. Até ao tutano dos ossos da alma da vida. E alertam-me. Não é seguro.

 

Pois não. Não é seguro. É um risco. E gostava de ser livre de poder tomá-lo, antes que o prédio desabe, o carro me atropele no quintal ou o raio me caia em cima da cabeça.

 

Quero a rua e a adrenalina, a farra e o trabalho, os eventos e os treinos e os saltos de paraquedas. E as montanhas-russas e as caminhadas entre as árvores, fora do trilho. Quero amar. Quero subir aos palcos e gritar até ficar afónica e dançar à chuva.

 

Porque não é seguro. E ainda bem que não é. Se fosse, o caminho ia ser vazio. O tempo ia ser inútil. A vida não seria mais do que um caminho desinteressante para a morte. A vida não seria mais do que outro tipo de morte.

 

 

Nota: Ler este texto não é seguro! Corre-se o risco de se perceber que só nos deram uma vida.

 

 Marina Ferraz





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terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sem pretéritos



eu acreditei que o amor não precisava de seguir as regras da gramática mas eventualmente pus-lhe um ponto e vírgula

 


Cheguei a ti com a palavra Amor nos lábios. E disse-te. Que era uma promessa. Que nunca a tinha dado a ninguém. Que era tua. E, nas mãos vazias, trazia só o conceito.


Esse. De um Amor que estava disposta a dar, sem retribuição.

 

Enchendo-me as mãos com as tuas e o peito de expetativas, disseste-me que eu estava errada. Que só se pode amar plenamente em duo. Que o querias fazer. Comigo. O dueto. Nos teus braços fazia sentido. Por isso, acreditei...

 

 

Só que o Amor lida mal com grilhetas. Talvez porque seja um sinónimo muito aproximado de liberdade. Ou talvez porque está cansado de ser confundido, nas ruas, com a paixão e a vontade do corpo e o medo da solidão.

 

E o Amor disse:

 

O voo é livre,

mas asas não são liberdade

 

Uma borboleta

pode ir onde quiser

no seu sopro de asa dupla...

 

Duas borboletas também...

Mas, se presas uma à outra,

têm quatro asas...

 

e a morte à espera

no chão...

 

 

Do nosso amor em dueto, sobrou o silêncio da calçada. E eu de rojo. Foste e o Amor ficou. Preso à pele suja. Acontece!

 

 

À medida que ias, deixando-me nas mãos vazias o espaço dos teus dedos - penhascos negros e com aves de ausência - percebi que sobrava, ainda, o conceito. Do amor. Mas não esse teu amor. Alegadamente pleno. Em duo... Novamente de um amor pleno a solo. Ecoando. Com a mesma genuinidade. Com a mesma ingenuidade. Com a mesma intensidade. Voltei a perceber(-me), porque longe dos teus braços (me) fazia sentido. Basta um. Só um. Para amar.

 

Cada vez mais acredito que o Amor é um sobrevivente incauto dos dias. Demasiado estável para a instabilidade humana e, por isso mesmo, muito raro.

 

E é verdade.


eu acreditei que o amor não precisava de seguir as regras da gramática mas eventualmente pus-lhe um ponto e vírgula

 

O Amor precisa de gramática, sim! Precisa muito que lhe revejam a gramática. Que o limpem de pretéritos. Perfeitos, imperfeitos, mais-que-perfeitos. Que façam dele um verbo irregular, justamente pela estabilidade que o motiva.

 

O Amor é demasiado constante para ter tempos passados. Demasiado puro para que não permitam que a conjugação presente se faça em todas as pessoas.

 

E o seu uso devia ser moderado...

 

Porque há duetos que o destroem.

 

E borboletas...

 

... muitas borboletas a morrer no chão, porque alguém o confundiu, nas ruas, com a paixão e a vontade do corpo e o medo da solidão...


Marina Ferraz





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terça-feira, 16 de novembro de 2021

O Monstro dos Abraços

Fotografia: Nuno Sousa



Ela disse-me que era o Monstro dos Abraços. E eu acreditei. Pelo menos na primeira parte. A do Monstro. É-o, de facto. Mas não nos termos do mundo. Nos meus.

 

 

Ainda é pequenina. Em idade e em tamanho. Mas tem uma sabedoria que suplanta facilmente os anos cujas velas sopra. E uma alma maior do que o corpo. Tão maior...

 

Gosta de jantar fora. De sushi. De piza. De brincar com outras crianças. Ou com adultos. E de artes plásticas. E de dançar. E de sentir-se contemplada nos momentos de sucesso. E de contar histórias sobre os dias que passa, aqui e além, tão cheios de instantes que merecem partilha.

 

Não gosta da escola. A escola corta-lhe as pernas. Tenta moldá-la. Tenta limitá-la. Tenta excluí-la. Ela não gosta que a moldem ou a limitem. Muito menos que a excluam. Quer ser livre, dona do mundo e senhora da sua própria aprendizagem. Protela tarefas... mas não por preguiça. É naturalmente curiosa. Inteligente. Esperta. Quer saber de quase tudo. Interpreta a vida com uma sabedoria muito maior do que a dos anos vividos. Questiona cada momento, como se cada momento fosse lição. E ouve. Atentamente. Quase sempre.

 

É Monstro. É Monstro porque é diferente do mundo. Porque é artista. Porque não foi fabricada nos moldes convencionais. Porque não foi tecida para ser o que os outros querem que ela seja.

 

Cativa. Cativa outros Monstros. Iguais a ela e a mim, embora sejamos todos tão diferentes. Cativa os Monstros. Este Monstro. Este que eu sou.

 

Salta da cadeira, ocasionalmente. Agarra-me pelo pescoço e diz-me: gosto de ti. Também gosto dela. E acrescenta: Sou o Monstro dos Abraços. Diz isto, apertando-me com mais força. E, no abraço dela, eu compreendo que, na sua pequenez, é ela que me protege, oferecendo segurança à minha debilidade adulta.

 

Dou por mim a querer ser parte dos ensinamentos que ela quer receber. Dou por mim a querer ser escudo de proteção. Dou por mim a querer cultivar sementes de bondade no mundo, para que o mundo dela seja melhor que o meu.

 

E sei. Sei. A vida não lhe será fácil e o caminho não lhe será brando. Porque ela é. Monstro. Nos meus termos. Diferente, única, fabulosa e cheia de mundos que o mundo rejeita.


Ela disse-me que era. O Monstro dos Abraços. E eu acreditei. Na verdade, eu já sabia. Pelo menos na primeira parte. A do Monstro. Mas, embora saiba melhor a primeira, também aceito a segunda. Porque quando ela salta da cadeira e me abraça, os abraços têm sabor. Sabem justamente ao mundo que, um dia, eu quero para ela...

 

Marina Ferraz





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terça-feira, 9 de novembro de 2021

Estacionamento


 

Pousou as compras no carro. Semblante pesado. Fechou a mala. Voltou a abri-la. Tirou, de um dos sacos, um bolo pastoso e demasiado calórico que acabara de comprar. Fechou a mala. Outra vez. Entrou no carro. Fechou a porta. Fixou as letras luminosas do nome da superfície comercial. Trincou o bolo. Foda-se.

 

Tinha creme nos dedos e açúcar em pó caído sobre a saia. E na ponta do nariz. E nos cantos da boca. Limpou-a com as costas da mão e apercebeu-se da humidade leve sobre o rosto. Ainda fixava as mesmas letras. Um transe maníaco-depressivo. Suspirou. Encostou a testa ao volante. Depois, bateu com as mãos no volante, ao lado da cabeça imóvel. Violentamente. Buzinou sem querer. Levantou os olhos. As pessoas. As outras pessoas. Impassíveis. Surdez coletiva. Autómatos movidos no ritmo alucinante das horas do século do imediatismo.

 

A lágrima que rolava era agora o espelho e a montra e a bola de vidro dentro da qual se agitava o líquido nevoento e nevado das possibilidades de um ontem que fora. Tinha fome. Mais de vida do que de bolos. Mas ainda assim...

 

Olhou para o relógio do carro. Depois para a entrada da loja. Depois para os carros ao lado. Desertos de gente. Aparentemente. Olhou para o relógio do carro. Depois para a entrada da loja. Depois para dentro do seu corpo inútil. Foda-se.

 

Foda-se. Foda-se. Foda-se.

 

O pensamento tinha intenção. Mas o corpo não tinha energia. Repetiu mentalmente o processo aparentemente simples de ligar o carro e ir. Não ligou o carro nem foi. Ficou. Foi ficando. Olhando para o relógio e a entrada e as letras com o nome da superfície comercial. E os autómatos movidos a tarefa. Movidos. Movimento. E ela ali, parada.

 

Tinha dito ao psicólogo que não valia a pena falar de sentimentos podres, já carcomidos e cheios de bolor. Ele respondera que o bolor deu origem à penicilina. Do mal à cura. Sentira o ímpeto de o atirar pela janela entreaberta do consultório. E sorriu. Na ideia do corpo esmagado contra a calçada. Antes de voltar a si, agradecer e sair, cancelando todos os futuros encontros junto da secretária loura, jovem e aprumada.

 

Em casa, esperavam por ela. O marido, querendo o jantar pronto às oito. Os putos, correndo entre divisões atrás do gato mal-humorado, que lhes bufava. O cão, correndo atrás das crianças e embatendo contra os móveis, onde ocasionalmente se partia mais um bibelô ridículo que alguém lhes dera no Natal. E esperava-a a roupa. Que teria de lavar. Lavar era o menor mal. Só que, quando se lava roupa, ela tem de ser estendida e apanhada e passada e dobrada e arrumada nas gavetas certas. Então ficou. Foi ficando. Olhando para o relógio e a entrada e as letras com o nome da superfície comercial.

 

Foda-se. E se eu não voltar?

 

Subitamente a ideia de ficar ali, a olhar para o nome luminoso do supermercado parecia destino melhor. E se eu não voltar?

 

Descolando os olhos do seu ponto de refúgio, notou pela primeira vez que, dentro do carro ao lado, estava eu. Eu também olhava a entrada, observando as pessoas e a noite caída e o que ficava além das paredes, provavelmente. Escrevendo, mentalmente, sobre ela, esta narrativa ficcional sobre um universo possível que ela talvez nem tenha vivido.

 

O olhar dela puxou o meu. Entreolhámo-nos e desviámos o olhar com rapidez. Ligámos os carros. Fomos.

 

Não sei se ela tem marido, dois filhos, um gato e um cão em casa. Eu tenho roupa para lavar. E, em alguns dias, isso mata. Porque quando se lava roupa, ela tem de ser estendida e apanhada e passada e dobrada e arrumada nas gavetas certas...

 

Eu sei que o mundo está todo a tentar parecer perfeito. Foda-se. Eu não sou. Em alguns dias só quero ficar. Parada. Ausente. Com todas as minhas ideias dispersas e os meus sentimentos ambíguos. Ficar. Parada. Ausente. No carro estacionado. Ao lado de outro carro estacionado com uma estranha que me é estranhamente familiar e para a qual invento vidas. Parada. Ausente. A olhar para o nome luminoso da superfície comercial. A fingir que não existo.

 

Foda-se.

 

Sou humana.


 Marina Ferraz





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terça-feira, 2 de novembro de 2021

Agenda

 

 Fotografia de Analua Zoé


Tentei organizar a minha agenda entre morte e morte.

 

Bebi o café depois da morte do direito ao descanso e antes da morte do direito ao salário justo. E sentei-me a trabalhar entre a morte do direito à não escravatura e a morte da ciência que se questiona.

 

Questionei, depois. Já não era tempo de questionar. O vento, as pessoas em redor, o pivô do jornal que passava na TV, todos me mandaram sonoramente calar. Reduzi-me à minha insignificância, entre a morte da liberdade de pensamento e a morte da presunção da inocência.

 

Dei os dados solicitados às entidades competentes entre a morte da privacidade e a morte da igualdade perante a lei. Procurei um julgamento justo. Mas informaram-me que esse tinha falecido precocemente e já há vários séculos. Chorei-lhe a morte, porque não sabia.

 

Pediram-me que ficasse em casa, aguardando o veredito certo da culpa. Fiz as tarefas mundanas entre o noticiário das oito e a apresentação do orçamento de Estado. E logo morria a cultura. Zero vírgula vinte cinco vezes, desta vez.

 

Saí, contra a indicação, para informar os outros de que o sol se estava a apagar. Mas as pessoas eram sombra. Colei o alvo nas costas, entre a morte da empatia e a morte do pensamento.

 

Vieram buscar-me entre as dez e as onze. Perguntei quem tinha morrido antes e depois, mas não me disseram. Afirmaram que deveria calar-me, entre as onze e a morte da liberdade de expressão.

 

As balas lá andavam. Soltas na rua. E havia o alvo nas minhas costas.

 

Um sussurro esvaiu-se em sangue sobre o opaco de mentes cegas.

 

Caí. O fim da minha agenda, na agenda dos outros. Entre morte e morte. Ao lado do meu corpo, inerte e trespassado, outros rastejavam.

 

Balas perdidas no ar não matam quem anda de rojo. Pensei. Mas que triste forma de viver.


 Marina Ferraz





2021 é o ano em que o Segredos de um Monstro faz 15 anos
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terça-feira, 26 de outubro de 2021

Do teu tamanho, ora

 



Gosto de ti.

Gostas de mim como?

 

 

Lá estava ela. A menina. Sempre a correr de um lado para o outro. Não há outra forma de ser criança. Senão essa. Sendo. Sendo-se como se é. Como se o mundo estivesse todo no alcance da vista. Sem limites. Sem limitações. Como se o Universo fosse composto apenas pelas estrelas visíveis no céu e o Sol não fosse estrela, porque brilha de dia. Como se o planeta não girasse verdadeiramente, já que a casa da nossa avó fica sempre do mesmo lado da rua. Lá estava ela. A menina. Essa que eu fui. A correr de um lado para o outro. Pai, dá-me cavalitas.

 

Era o maior pai do mundo. Exatamente porque era grande e eu não era. Tinha de olhar para cima para lhe ver o rosto. E de esperar que o encadeamento do Sol atrás do seu sorriso me permitisse fixar-lhe o rosto, ainda com o semblante recortado entre o manto de luz que o fazia herói de desenho animado.

 

Gostas de mim?

Uma pergunta que nenhum pai devia ter de fazer a uma menina.

Gosto.

Uma resposta que não sabia que era preciso acrescentar alguma coisa ao relato do que já era evidente.

Gostas de mim de que tamanho?

Um pensamento rápido. Num segundo. Numa palpitação breve do coração, que não teve tempo de fazer mais do que sístole e diástole. Acelerado. E já com vontade de que as pernas corressem outra vez.

Do teu tamanho, ora.

 

 

Havia, no contorno da sombra, a noite inteira. Mas a noite inteira ficava lá fora. E a criança já não era criança para correr. Embora o ritmo do coração fosse igual.

 

Ninguém queria saber se havia estrelas no céu, porque definitivamente já não faltava muito para o Sol nascer da insónia. A persiana aberta e o grito da luz amarelada das ruas, esquecido. Corpos meio despidos e almas totalmente nuas. Palavras que não precisavam de ser ditas na voz do toque.

 

Numa palpitação breve do coração, que não teve tempo de fazer mais do que sístole e diástole, ainda assim, a falha do silêncio fez-se e desfez-se.

 

Gosto de ti.

Gostas de mim como?

 

Em alguns dias, quando ninguém estava lá e eu estava prestes a desistir, tu estavas. Houve barcos a sair de portos e lágrimas dos olhos muitas vezes. Sentidos perdidos no espaço que fica entre livro e livro nas feiras, e sonhos assentes no pó do que ninguém entende.

 

Braços pequeninos que deste ao mundo e me servem de aconchego no pescoço, fazendo menos frios os invernos da vida. Palavras de companhia na viagem que teima em me amolecer até ao estado de quase-sono, evitando-me a quase-morte. Pedidos sobre a morte ansiada, como se um mundo sem mim não fosse ainda mundo. E brincadeiras subtis, de entendimento unívoco, no seio de multidões alheias.

 

Partilha do que é privado. Intimidade de um toque que não é, nunca foi nem precisa de ser físico. Ali. Nas paredes e tetos da alma que fica nos 60% invisíveis do Universo. Reservar nesse espaço do incompreensível também a memória. Pousar o copo de vinho e as culpas do passado na mesa arábica do perfume que se fixa no pulso.

 

As histórias. Repetidas ou não. Espaços de poema que se faz em modo complementar sobre como o amor está gasto nas palavras dos outros. Mas falar-se de amor - sem dizer amor - também nos nossos textos. Não vá alguém ter dúvidas de que há coisas que se dizem, sem dizer! Abismos e vazios. Monstros e feras. Um espaço de escuro que é conforto... e espelho de solidão que ninguém quer ou compreende.

 

Braços. Dedos. Peças que se encaixam, sem que faça sequer sentido. Vontade e respeito. Entendimento. Um idioma que talvez nenhum povo fale. Que carece de tradução. E ainda bem!

 

E a menina que fui. Dizendo. Gosto de ti. Do teu tamanho, ora. Mas não haver tamanho. Nem olhar para cima. Nem olhar para baixo. Nem olhar, de todo. Ali ao lado. Coração acelerado. Sem a mínima vontade de que as pernas corram. Querer só ficar. E fugirem as palavras.

 

Gosto de ti.

Gostas de mim como?

 

Porra. Sei lá...

 

Gosto de ti como se tu fosses tu.

 

 Marina Ferraz





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terça-feira, 19 de outubro de 2021

Dezoito mais um

 


Para a minha avó, Maria Graciosa
6 de Outubro 1930 - 19 de Outubro 2020



“Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz! Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar meu coração... É preciso que haja um ritual.”

(in “O Principezinho”, Antoine de Saint-Exupéry)

 

 

 

Ligava-te às dezoito horas. Todos dias. E, se te ligava às dezoito mais um, logo me dizias que já estavas preocupada. Desculpa.

 

 

As tuas mãos enrugadas pousavam-se sobre o colo, em cima do avental de xadrez azul ou verde, na antecipação da hora. Entre elas, o telemóvel. Não eras mulher de tecnologias. Mas importavas-te com isto. Com saberes que o telemóvel tocava. E que, quando tocasse, a voz de alguém estaria do outro lado.

 

As vozes que te chegavam, nesse dispositivo estranho e dantesco, eram quase sempre vozes que te amavam. Mas não as vias como vozes que te amavam. Vias como pedaços de céu, feitos para tu amares e cuidares e honrares, como se o próprio deus-filho, descido da cruz, tivesse recorrido aos meandros tecnológicos, para te falar na voz de seu pai.

 

Expressões tuas, de voz tão alegre quanto alegre uma voz pode ser, ficaram-me gravadas na alma, de uma forma tão intensa que, nem que a doença do esquecimento me assome, continuarei com a sombra cintilante desse trejeito na mente. Atenderes o telemóvel. E dizeres “Oh [e o nome de alguém]”. Caberem todas as coisas nesse nome que dizias. Fosse de quem fosse. E ser, ocasionalmente, alguém que perdeste por culpa minha... e doer-me a mágoa por detrás da tua voz, tão cheia de saudades.

 

Vi-te muitas vezes de mãos pousadas no regaço, esperando o toque do telemóvel. A minha voz era a que chegava às dezoito horas. Porque um dia, em minha casa, me apercebi que o comprimido das seis da tarde era sempre esquecido, e eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, comprimido a comprimido. Fosse como fosse. Então, estivesse a fazer o que estivesse. Fosse reunião, workshop, entrevista ou banho, eu largava tudo e ia. Às dezoito horas. Ligar-te.

 

Tu, que sempre esquecias o comprimido, nunca te esquecias da chamada. Atendias com uma rapidez clássica, no primeiro toque. E dizias: estava mesmo à espera da tua chamada. Fazias-me questionar as razões pelas quais te esquecias da hora, apenas para o comprimido. Mas, na realidade, o comprimido estava tomado... e só querias aquele minuto ou dois... ou hora ou duas... de me teres do outro lado da linha.

 

Conhecias-me pela voz. Estás triste. E eu deixava cair a lágrima silenciosa, alegrando a voz com todas as mutações teatrais da vida. Não, avó, estou bem. Estou só cansada. E um pequeno silêncio. E a tua. Não, eu conheço-te. Tu estás triste.

 

Devia ter estado sempre feliz, avó. Porque estava a falar contigo. E porque tinhas tido as mãos no regaço, segurando o telemóvel, à espera das dezoito horas.

 

 Ligava-te às dezoito horas. Todos dias. E, se te ligava às dezoito mais um, logo me dizias que já estavas preocupada. Desculpa. Fazia por ligar um pouco antes, quando dava. Nem sempre deu.

 

Eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, comprimido a comprimido. Fosse com a chamada corrente das dezoito horas ou com a das dezoito mais um, que já te preocupava. Eu queria segurar-te no planeta com as duas mãos, para haver sempre a tua voz do outro lado da chamada, cuidando das minhas tristezas e alegrias com o mesmo amor.

 

Talvez devesse ter-me apercebido que não era o comprimido mas a chamada que te agarrava à vida. E talvez devesse ter ligado mais vezes às dezoito menos um, para termos mais um minuto para falar.

 

Todos os dias, às dezoito horas, eu ainda olho para o telemóvel. Gesto inadvertido, de relógio biológico incompreensível, de sentido de tarefa, de vontade de ouvir. Esqueço-me que a dezoito (mais um), o dia anoiteceu triste e o planeta te perdeu a voz.

 

 

Ainda tenho o teu contacto nos meus favoritos.

 

 

Se te ligasse e atendesses, talvez dissesses. Estás triste. Conhecias-me pela voz. Estou, avó, estou mesmo. Tenho saudades tuas.


Marina Ferraz





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