terça-feira, 9 de novembro de 2021

Estacionamento


 

Pousou as compras no carro. Semblante pesado. Fechou a mala. Voltou a abri-la. Tirou, de um dos sacos, um bolo pastoso e demasiado calórico que acabara de comprar. Fechou a mala. Outra vez. Entrou no carro. Fechou a porta. Fixou as letras luminosas do nome da superfície comercial. Trincou o bolo. Foda-se.

 

Tinha creme nos dedos e açúcar em pó caído sobre a saia. E na ponta do nariz. E nos cantos da boca. Limpou-a com as costas da mão e apercebeu-se da humidade leve sobre o rosto. Ainda fixava as mesmas letras. Um transe maníaco-depressivo. Suspirou. Encostou a testa ao volante. Depois, bateu com as mãos no volante, ao lado da cabeça imóvel. Violentamente. Buzinou sem querer. Levantou os olhos. As pessoas. As outras pessoas. Impassíveis. Surdez coletiva. Autómatos movidos no ritmo alucinante das horas do século do imediatismo.

 

A lágrima que rolava era agora o espelho e a montra e a bola de vidro dentro da qual se agitava o líquido nevoento e nevado das possibilidades de um ontem que fora. Tinha fome. Mais de vida do que de bolos. Mas ainda assim...

 

Olhou para o relógio do carro. Depois para a entrada da loja. Depois para os carros ao lado. Desertos de gente. Aparentemente. Olhou para o relógio do carro. Depois para a entrada da loja. Depois para dentro do seu corpo inútil. Foda-se.

 

Foda-se. Foda-se. Foda-se.

 

O pensamento tinha intenção. Mas o corpo não tinha energia. Repetiu mentalmente o processo aparentemente simples de ligar o carro e ir. Não ligou o carro nem foi. Ficou. Foi ficando. Olhando para o relógio e a entrada e as letras com o nome da superfície comercial. E os autómatos movidos a tarefa. Movidos. Movimento. E ela ali, parada.

 

Tinha dito ao psicólogo que não valia a pena falar de sentimentos podres, já carcomidos e cheios de bolor. Ele respondera que o bolor deu origem à penicilina. Do mal à cura. Sentira o ímpeto de o atirar pela janela entreaberta do consultório. E sorriu. Na ideia do corpo esmagado contra a calçada. Antes de voltar a si, agradecer e sair, cancelando todos os futuros encontros junto da secretária loura, jovem e aprumada.

 

Em casa, esperavam por ela. O marido, querendo o jantar pronto às oito. Os putos, correndo entre divisões atrás do gato mal-humorado, que lhes bufava. O cão, correndo atrás das crianças e embatendo contra os móveis, onde ocasionalmente se partia mais um bibelô ridículo que alguém lhes dera no Natal. E esperava-a a roupa. Que teria de lavar. Lavar era o menor mal. Só que, quando se lava roupa, ela tem de ser estendida e apanhada e passada e dobrada e arrumada nas gavetas certas. Então ficou. Foi ficando. Olhando para o relógio e a entrada e as letras com o nome da superfície comercial.

 

Foda-se. E se eu não voltar?

 

Subitamente a ideia de ficar ali, a olhar para o nome luminoso do supermercado parecia destino melhor. E se eu não voltar?

 

Descolando os olhos do seu ponto de refúgio, notou pela primeira vez que, dentro do carro ao lado, estava eu. Eu também olhava a entrada, observando as pessoas e a noite caída e o que ficava além das paredes, provavelmente. Escrevendo, mentalmente, sobre ela, esta narrativa ficcional sobre um universo possível que ela talvez nem tenha vivido.

 

O olhar dela puxou o meu. Entreolhámo-nos e desviámos o olhar com rapidez. Ligámos os carros. Fomos.

 

Não sei se ela tem marido, dois filhos, um gato e um cão em casa. Eu tenho roupa para lavar. E, em alguns dias, isso mata. Porque quando se lava roupa, ela tem de ser estendida e apanhada e passada e dobrada e arrumada nas gavetas certas...

 

Eu sei que o mundo está todo a tentar parecer perfeito. Foda-se. Eu não sou. Em alguns dias só quero ficar. Parada. Ausente. Com todas as minhas ideias dispersas e os meus sentimentos ambíguos. Ficar. Parada. Ausente. No carro estacionado. Ao lado de outro carro estacionado com uma estranha que me é estranhamente familiar e para a qual invento vidas. Parada. Ausente. A olhar para o nome luminoso da superfície comercial. A fingir que não existo.

 

Foda-se.

 

Sou humana.


 Marina Ferraz





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