terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Lágrimas de tinta



Chovem-me os dedos. Lágrimas de tinta. Onde? No papel. Neste papel. Chovem. Cada gota é uma tempestade. Cada tempestade é um olhar seco pelas avalanches do mundo. Deste mundo. Cínico. Arrogante. Perdoa-me. Apetece-me pedir perdão ao mundo. Mas o mundo não perdoa ninguém.

Chovem-me os dedos. Lágrimas de tinta. Que escorrem. Delineando palavras. Concretos de coisa nenhuma, saídos do pensamento tosco de mim. Não consigo. Hoje não consigo. É um universo de sentidos presos, à procura das frestas entre a minha sanidade. Infiltrando-se nas rachas da racionalidade moribunda do meu eu. Perdoa-me. Apetece-me pedir perdão à lógica itinerante dos tempos. Mas é a triste verdade. Ela não perdoa ninguém.

Chovem-me os dedos. Lágrimas de tinta. Delas, cria-se o rio das ideias maceradas no silêncio de mim, na solidão do eu, na cegueira dos eternamentes. Criei as ideias sozinha. Mãe solteira dos pensamentos. Chamaram-me meretriz. E fui. Rameira das gentes que não me pagaram o bastante para compensar todas as formas como me corromperam. Não pagaram. Mas deram-me as ideias. Delas foram progenitoras ausentes. Renegaram-nas. E fizeram de mim filha única dos tempos e mãe sozinha de pensamentos presos às raízes do que me torna, também a mim, gente. Apetece-me pedir perdão às pessoas. Mas as pessoas não perdoam ninguém.

Chovem-me os dedos. Lágrimas de tinta. Se queriam calar-me a voz, deviam ter-me cortado as mãos. Como fazem aos que roubam pão e fruta. E pedaços de dignidade. E tectos sob os quais dormir. Como cortam a esses. Porque, os que roubam ouro e diamante, esses permanecem de mãos cheias, atadas ao corpo roliço que não serve para nada, alimentando-se da pobreza alheia, anafando-se nela e dela tirando o provento dos dias por devir.

Deviam ter-me cortado as mãos. Deviam! Se queriam calar em mim as palavras, deviam tê-las cortado. Porque os meus dedos chovem. Lágrimas de tinta. E elas gritam. Como um recém nascido, faminto e que não sabe ainda de onde sugar o néctar da vida. Gritam e continuarão a gritar. Até que me cortem as mãos.

Chovem-me os dedos. A dor. Lágrimas de tinta. E revolta-me a indignação que os faz chover, como se dentro de mim fosse sempre Inverno. Não consigo parar. Não quero parar. E, porque magoa, apetece-me pedir perdão a mim mesma. Mas eu já não perdoo ninguém desde que os dedos me chovem.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Nove minutos de sol



Aviso: O texto que se segue contém linguagem forte que pode ser considerada imprópria e/ou obscena.

6:43
Estendo a mão à senhora do manto negro. Sentada no chão, encostada à parede suja de uma casa qualquer. Ela ignora-a. Deixo-a cair junto ao corpo. O céu negro. A tomar tons baunilha. A tomar tons rosados. Aos poucos. Ajudem-me. Ninguém. Só a senhora do manto negro. E dor. É noite que deixa de o ser e dia que ainda o não é. Sinto o coração bater no peito. Querer sair do peito. A dor. Encosto-me à parede. A senhora do manto negro permanece. Ao meu lado. Dentro de mim? Não vejo bem, parece tudo desfocado. Já não sei a diferença.

Começou como começa sempre, suponho. Tinha quinze anos. E começou da forma mais simples. Uma passa na ganza do Rui, o amigo fixe. Os meus pais eram uma merda com os seus horários e as suas regras. Um monte de merda ambulante, nos seus fatinhos engomados e com os telefones agrafados à orelha. Uns filhos da puta. Não se importavam em aparecer quando era importante mas davam-me piços de duas horas se não tinha 18 a matemática. Desses filhos da puta, estão a ver? Aqueles que acham que o mundo gira ao redor do cu deles e que a merda que fazem cheira a rosas. A passa na ganza do Rui foi o melhor momento que tinha tido em anos. A passa na minha própria ganza soube melhor. Para dar uma pequena ideia: é como aquele momento antes de acordar, em que se sonha de forma quase consciente. Aquela sensação de conforto, felicidade, alegria pura. Apetece brincar e rir. Pode não ser uma sensação real. Mas parece. Faz estremecer os recantos inquietos da alma.

6:44
Ainda negro. Mas já não. Amarelo? Acha que é amarelo? A senhora não responde. Aguarda.

Não consigo lembrar-me do Rui. Mas a imagem vem à cabeça. É a imagem ossuda e fantasmagórica da morte a estender-me o cigarro acabado de enrolar. "Esta cena é fixe e não vicia.". Eu não sei se acreditei. Aos quinze anos fingimos que acreditamos no mundo como queremos que ele seja. O fantasma não queria ferir-me. Era mais um iludido de quinze anos. Mas, sem lhe lembrar outro rosto, firmo para mim que foi a morte que me ofereceu aquela primeira ganza, porta de entrada para tantas outras.
O lado porreiro de ter pais de merda era que não davam muito pelas minhas fugas. Aos dezasseis já era presença frequente nos bares da cidade. Ofereciam-me bebidas e shots. Quando não eram os empregados do bar, eram os rapazes ou as amigas. Não precisava de muito dinheiro para ter noites em grande. Só o suficiente para bancar a ocasional ganza que, ao fim de pouco tempo, deixou de ser ocasional. Não era que viciasse. Era só que os efeitos pareciam cada vez menos satisfatórios. A dada altura, não eram suficientes para me fazerem feliz. Comecei a fumar mais. E mais. Mas foi assim que, aos dezasseis anos, senti que não era suficiente.

6:45
Negro a tender para baunilha. Definitivamente, baunilha. É baunilha aquela linha no céu. Apetece trincá-lo. Fincar nele os dentes. Fito a figura negra que aguarda, imóvel, ao meu lado. Será que está lá? Rio. Mas o riso dura o tempo de meia respiração. O coração bate frenético no peito. Não consigo respirar. Não consigo. Não consigo respirar.

"Isto não vicia e vai ser uma trip, miúda". Era uma rave. Uma festa. O pessoal estava ao rubro e o rapaz - não propriamente namorado mas amigo com extras - era uma pessoa que tinha em conta. Hesitei dois segundos. Devia, talvez, ter hesitado quatro ou uma hora. Mas aceitei. Era só ecstasy. Não viciava...
Deu-me a noite da minha vida. Senti-me feliz, viva. Era quase eufórica a minha vontade de dançar, cantar, saltar. Cores e movimentos e sons. Tudo amplificado e distorcido e elevado ao máximo. No meio do entorpecimento da minha vida, a pastilha que ele me deu foi como se tivessem, subitamente, ligado a minha felicidade no volume máximo.
No meio da confusão, puxei-o para mim e beijei-o, enquanto dançava com ele. Não sabia como havia de retribuir as sensações que recebia. Não sabia como agradecer. Acabei por agradecer como todos os homens querem que se agradeça. Acordei na cama dele. O efeito da pastilha tinha passado. À luz do dia, as coisas pareciam diferentes. Não me lembro do rosto dele mas vêm-me à cabeça a imagem de uma caveira negra, petulante. Foi a morte que me apresentou ao ecstasy.
Comecei a dormir ocasionalmente com ele, à troca de mais comprimidos. Mas, eventualmente, ele cansou-se e tive de começar a pagar.
No início, custou-me as mesadas. Depois, o pouco que tinha guardado. Mas era um preço justo. O preço a pagar para me sentir viva. Para me sentir feliz.


6:46
Será rosa? A senhora de manto negro não parece interessada em responder-me. Respiro sofregamente em busca de um pouco de ar. Não há.

A cena mais surreal das pastilhas é que nunca deixam de animar. Mas o efeito passa e, quando passa, parece que o mundo vai ficando sucessivamente mais merdoso. Uma sensação de desalento, de medo, de angústia. A depressão de ser tudo um monte de esterco quando o corpo não tem acesso às pílulas da felicidade. Para mim, naqueles tempos, a felicidade era cara mas tomava-se com facilidade.
As minhas notas tinham ido pelo ralo. Os meus progenitores ameaçavam-me constantemente com cenas que não podiam importar-me menos. Gritavam e eu fingia que ouvia. A escola, para cá. O futuro, para lá. E eu ia pensando no futuro. Na futura festa. Na futura pastilha. Na futura sensação de libertação quando aqueles idiotas calassem a puta da boca.
Decidi dar uso à bela expressão "matar dois coelhos com uma cajadada só". Precisava de dinheiro e queria fazer aqueles dois sofrer. Ao fundo da rua da escola havia uma lojinha de compra e venda de artigos em segunda mão. Vendi o que encontrei e achei que valesse a pena vender. Comecei com coisas cuja falta sabia que ninguém ia sentir. Mas depois as escolhas escassearam. Comecei a levar coisas mais notórias, desejando que não me apanhassem tão depressa.
Consegui um bom dinheiro. Com esse dinheiro, pensei, iria comprar mais pastilhas. Mas não comprei. O vendedor desdenhou o próprio produto. "Isso é para meninos! Isto é que é merda da boa!". A merda da boa era cocaína. Ainda não tinha dezoito anos quando experimentei pela primeira vez. Hoje, não me lembro do rosto do vendedor. Na minha memória, entorpecida e desgastada, parece-se com Anubis. Lembro-me dele assim: com uma cabeça de chacal sobre os ombros. "Isto é que é merda da boa!". Seria ele mesmo assim? Não sei dizer. Era o Deus da Morte que me vendia cocaína.
A sensação de euforia preencheu-me completamente na primeira vez que cheirei. Era como se o mundo fosse meu, como se nada me pudesse parar. Queria tudo e sentia que podia ter tudo. E sim, eu sabia que aquilo podia viciar. Como não viciaria? Era a melhor sensação do mundo.


6:47      
O céu e os seus tons baunilha. A dor. Tanta. Tento debruçar-me para vomitar mas não tenho tempo. Vomito sobre mim própria. A senhora do manto aguarda.

A melhor sensação do mundo era cara. Vendi as minhas coisas para comprar cocaína. Depois comecei a vender cocaína para comprar mais com o lucro. As ruas escuras onde se fazia negócio tornaram-se casuais para mim.
Foi com dezoito que os meus pais se aperceberam que andava a surripiar objetos da casa. Suponho que a minha mãe gostasse de alguma das peças de ouro que nunca usava e tivesse partido daí a demanda pelos palitos que tinha vendido. Eles gritaram. Eu caguei para eles. E eles tentaram ensinar-me, indicando-me a porta de saída.
Saí. Saí mostrando o dedo do meio, com a roupa que tinha vestida e uma dose no bolso. Nunca mais voltei para casa.


6:48
A luminosidade aumenta. Doem-me os olhos. A senhora de negro olha para mim como se me achasse estranha. Levo a mão ao rosto. Quero escondê-lo. Dói-me o corpo. O peito. Ajudem-me. Ninguém.

Eu costumava ser uma miúda com pinta. Tinha os olhos azuis e o cabelo arruivado, bem tratado e comprido. Tinha 1,70 de altura que me aguçou a vontade de ir para os mundos da moda e o peso em torno dos 52 quilos, todos muito bem distribuídos, como se quer. Nunca fiz muito por ser magra. Simplesmente era. Foi na altura da cocaína que me despedi de mim assim. Como era. A pinta foi-se. Mas já não me importava. Não havia nada que gostasse em mim. O mundo parecia-me uma imensa caixa de merda, tipo a dos gatos, onde toda a gente se estava a cagar.
Naquele tempo, já andava a cheirar há quase um ano. Comecei a emagrecer mais e mais. A dada altura emagreci dez quilos em poucos meses. Na altura, o meu namorado, que pouco ou nada sabia de mim mas insistia em declarar amor eternos antes da queca, assustou-se com a perda de peso. "Podia haver mais de ti para amar", disse-me. E eu lembro-me de me rir e de o beijar, só mesmo para não lhe responder. Para não lhe dizer o quanto eu queria menos de mim para odiar.
Estava a viver com os meus namorados. Trocava de namorado e casa com facilidade. Trocava de droga como dava. Quem me conhecia dava-me algumas borlas ou fiava, ocasionalmente. Às vezes aceitavam-me o corpo como moeda de troca. Cheguei a pôr mãos a algumas carteiras e a vender serviços em algumas esquinas de hotel. O que tomava, dependia. Dependia do dinheiro que conseguia e do que havia na altura. Qualquer coisa que me fizesse sentir bem, servia. Fosse de engolir, snifar ou injectar. Já nem sentia as agulhas entrar nas veias. Sentia só o prazer antecipado da felicidade líquida.

6:49
A luz. Ameaça a sua presença com tons brancos entre os prédios da frente. Os prédios balançam. Dançam ao som do nascer do sol. Tudo desfocado. As imagens vêm e vão.

Nos meus 21, a cena da moda era o LSD. Quando tomava, era fixe. Como abarcar o mundo todo de uma vez só. Viver num mundo de fantasia. As cores eram mais fortes, os sons mais concretos, o tempo parecia estender, encurtar, moldar-se a mim. Quando acabava, queria morrer para não viver mais no centro da mediocridade do mundo real. Tentei matar-me algumas vezes, durante as ressacas. Tentei. Mas nunca com competência. Tudo o que consegui foram algumas cicatrizes no pulso e gritos enfurecidos de condutores prudentes. Sai da estrada, sua louca. Mas não consegui morrer. E estava farta. Tão cansada de ser feliz e infeliz e sei lá mais o quê.
Tinha deixado de ser a "alma da festa". Das centenas de amigos, passei a zero. Fiquei sozinha. Pessoas sozinhas aprendem a chamar "casa" à rua. Dormia onde calhava. Com quem calhava. Somos todos tão descartáveis como lixo quando já não há nada que possam tirar de nós. 


6:50
Já espreita, muito levemente. O brilho incomoda. Não consigo respirar. Não consigo respirar. Sinto que há demónios a olhar para mim. Queima na pele. Queima nos olhos. Deixem-me em paz! A senhora de negro levanta-se. Vai deixar-me também... vou morrer sozinha.

A minha última dose foi ontem à tarde. Estava a ressacar. Doía-me o corpo. Sentia-me tremer. Foi um gesto de caridade darem-me o ácido. Não tinha dinheiro que chegasse. Dei o que tinha. Fiquei de pagar o resto depois. O gajo não pareceu confiar muito mas suponho que se tenha deixado levar pelo momento. Não é fixe estar a curtir a festa e ter uma miúda em desespero, a tremer por todos os lados, a implorar. "Vê como tomas isso...", avisou. O amenizar da consciência. Vi como tomei. Tomei de uma vez. Precisava.

6:51
Vivi no escuro. Os meus dias foram todos noite. Agora não. O sol já brilha por entre os prédios. O céu está claro.
A senhora de negro não parte. Estende-me a mão. É a primeira vez que, à luz do dia, me estendem a mão. É a primeira vez, em muito tempo, que me estendem a mão sem ser para receber dinheiro ou passar droga.
Agarro-lha. Vou. Para quem viveu a vida toda no escuro, a morte são só nove minutos de sol. E deve ser uma droga. Porque me faz feliz.


Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet


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Nota:  Este texto foi, também, a minha participação no 6º Concurso Literário da Editora Papel de Arroz, "O poder do vício".
Deixo, mais uma vez, uma nota de agradecimento aos responsáveis da editora, por continuarem a desafiar e incentivar os seus autores. Aproveito, ainda, para dar os meus parabéns a todos os participantes do concurso.


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Dilemas maternais


Parabéns. Não vais ser pai. Não vais ser avó. Não vais ser tio. Não vais ser madrinha. Recebe esta nota com agrado. Não vais. Não vais ser a pessoa a bordar fraldinhas. Não vais ser a pessoa a levantar-se a meio da noite. Não vais ser o desencaminhador. Não vais ser a pessoa a espetar os polegares nas bochechas bolachudas da minha criança. Convido-te, por isso, a celebrar comigo.

Não julgues que vens celebrar a minha loucura. Vens celebrar a minha liberdade. A minha feminilidade liberta de preconceitos e de normas que me fez dizer que é tão válido não querer ter filhos como querer ter uma equipa de futebol a correr e a fazer tropelias pela casa. Não. Não fiques chocado. Sou mulher. Não quero ser mãe. E estou farta de ouvir as frases desusadas, fora de época e recheadas de preconceito e falta de aceitação. Estou farta do "ainda és nova, tens tempo". Estou farta do "isso é agora". Estou farta do "eu também disse isso e...". Não! Eu não quero ser mãe. E tenho tanto direito de não querer como qualquer outra pessoa tem de o querer.

Incomoda-me particularmente quando me dizem "Isso é se o teu companheiro não quiser ser pai". Porque é que ele pode querer não ser pai, se eu não posso querer não ser mãe? E porque é que ele querer ser pai havia de mudar a minha opinião? Porque é que a opinião ou vontade dele valem mais do que a minha?

Questões. Questões que me moem por dentro, no lugar onde não há-de crescer nenhum feto até se fazer gente. Questões que me dão dores de parto constantes sobre o futuro desta sociedade tão avançada que continua agarrada às noções da idade do bronze.

Quando me dizem "quero ser mãe", não costumo dizer "isso passa-te". Não costumo dizer "isso vai destruir a tua vida". Não costumo dizer "o que está errado contigo?". Costumo sorrir. Aceitar a beleza que é alguém querer gerar outro ser, criá-lo, fazer dele gente. E, quando acontece, costumo fazer desenhos fofinhos e pedir que os bordem em babetes com fita de bibe da cor que julgo mais interessante ou adequada. Costumo estar presente em batismos. Dar os parabéns depois dos partos. Oferecer a ajuda quando necessária. É uma escolha que aceito, em toda a sua plenitude.

Não querer ser mãe não quer dizer que não concordo com a maternidade. Quer apenas dizer que eu não a quero para mim.

Mas, de alguma forma, a minha escolha ofende as pessoas. Dizer que não quero ser mãe parece atacar directamente toda a gente que foi, é ou quer ser berço do futuro da humanidade. E eu questiono. O que é que, na minha escolha de mulher adulta e informada que conhece as opções e decide pela sua cabeça assusta tanto?

Não sei a resposta. Não saber, incomoda. Incomoda-me. Como incomoda os outros essa escolha que tomo e que sei, no mais profundo de mim, não ter espaço para a mudança. Essa escolha permanente que me rotula, entre outras coisas, como "louca", "egoísta", "maluca", "leviana" e mais umas quantas palavras de teor mais ofensivo e que dispensam enumeração.

Ofereço a mim mesma a escolha e a todos os outros o convite. Venham celebrar comigo. Não estou grávida nem quero estar. Não sou mãe nem quero ser. Venham celebrar. Não o afastamento da maternidade. Não a minha opção. Venham celebrar a liberdade de escolha.

Ser mulher, tal como ser homem, significa ser pessoa. Ser gente. Uma mulher não tem de ser mãe. Uma mulher não tem de ser nada que não queira. E espero que um dia, em breve, a sociedade dê à luz esta ideia... e seja mãe de uma nova era.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet e editada por MF

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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Mudou tudo



Mudou tudo.
A manta está desarrumada. Pousada, como sempre, nas costas da poltrona. Descaída para um lado. Torta. Por dobrar. A manta está desarrumada. Apetece-me agarrar nela, rasgá-la em pedaços, queimá-la. Arrancá-la das costas da poltrona onde sempre a pousámos, julgando que a arrumávamos. Não! A manta está desarrumada. A poltrona não é lugar de manta.
Mudou de tudo.
Os móveis estão fora de sítio. Velhos e gastos da permanência imutável junto às mesmas paredes. A madeira pesa. Tento arrancá-los do lugar. Não se movem. Os móveis estão fora de sítio. Apetece-me reduzi-los a cascalho e varrê-los. Sei que julgámos que estavam bem ali. Mas não estão. Estão fora de sítio. Qualquer um veria com facilidade: estão dispostos erroneamente. Não fazem sentido nem ficam bem.
Mudou tudo.
A roupa está mal passada. Mal dobrada. Atolada nas gavetas demasiado cheias. Está engelhada, como sempre. Agarro nela, deito-a ao chão. Fica melhor no chão do que na gaveta onde fingia ter sido bem arrumada e passada a ferro.
Mudou tudo.
A louça não está bem assim. Empilhada, distribuída, na sua quietude de anos que lhes determinaram que era assim que estava bem. Não está. Está desalinhada, desorganizada. Não me traz sentido de estética ou de prática. E quero agarrar nela. Destruí-la. Fazer dela cacos desorganizados pelo chão. Quero ouvir o estilhaçar de copos e pratos e taças apenas para não ficarem ali - onde sempre estiveram - desordenados.
Mudou tudo.
A fotografia. Quão errada esta fotografia onde sorris e eu também. Onde estás vivo e eu também. Mudou a fotografia. O abraço. Errado como se também ele pudesse ser um pedaço desalinhado da casa. Ali permanecemos - como ontem e há um ano - abraçados e a sorrir. Quero agarrar a fotografia. Rasgá-la ao meio. Quebrar o abraço. Riscar os sorrisos. Desenhar lágrimas no meu rosto iludido e inocente.
Mudou tudo. Sinto raiva da casa que está igual. Mudou tudo. Não aqui. Dentro de mim. Dentro de mim que te amava. Que te amo. Que te vi morrer. Que voltei para casa. A minha casa. E descobri que ela permanecia igual, como se não sentisse a tua falta.
Mudou tudo. Mas entrar em casa é familiar, doce, bom. E dou por mim a querer chamar o teu nome e a ouvir os silêncios da ausência de resposta.
Morreste. Mudou tudo. Não aqui. Dentro de mim. E a casa permanece igual, sem que nada faça sentido.



Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

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