terça-feira, 27 de julho de 2021

O resto da minha vida

 

 Fotografia de Analua Zoé

O resto da minha vida. Penso o resto da minha vida como moeda de troca. Sobra-me pouco. Por isso, o seu valor relativo sofre frequentemente quebras na bolsa. Mas ainda vale de algo para dois ou três investidores de peso e uns quantos sócios minoritários.

 

Se o resto da minha vida é valor, penso no amor como plataforma de gestão. Quanto vale, afinal, a vida? O resto da minha vida?

 

Pensar no resto da vida como valor concretizado faz-me questionar se daria a vida por alguém... e por quem... e por quê. Constato que tenho uma mão cheia de sonhos e outra cheia de pessoas por quem vale a pena pôr-me em frente da bala. Por vezes, penso, até por um abraço, até por um beijo, até pelo enleio nas noites... e penso em ti.

 

Não penses que daria o resto da minha vida por um abraço. Provavelmente não. Mas abdicaria facilmente de algumas semanas para sentir o meu corpo envolto pelos teus braços-muralha. Sem pena de perdê-las e sentindo que o resto da vida, sem essas semanas, valia agora mais.

 

Não. Também não daria o resto da minha vida por um beijo teu. Daria, talvez, um ou dois anos do tempo que me sobra, meia dúzia dos que já vivi, algumas das alegrias que me falta colher. Mas não daria o resto da minha vida por um beijo teu.

 

Daria, facilmente, uma década. Uma década inteirinha, com todos os seus nove anos mais um, para adormecer nos teus braços. Para sentir o calor dos teus dedos debaixo da camisola do pijama, pousados suavemente entre a cintura e a barriga, libertando-me de anseios e embalando-me na noite, com o calor dos frutos amadurecidos ao sol. Por esse momento, daria uma década. Mas não. Não daria, por esse enleio, de sossego isolado e carente, o resto da minha vida.

 

O resto da minha vida? Daria o resto da minha vida para te ouvir dizer – vomitando do âmago as palavras – que me amas. Podia morrer enquanto o dissesses. E valeria mais do que a soma ou a multiplicação dos dias vindouros. Porque ouvir-te dizer que me amas valeria o tempo de duas vidas. Dava o resto da vida e todas as seguintes. Para morrer, em definitivo, no dizer dessas palavras-mel, que me adoçam os sentidos do impossível.

 

É como te digo. Penso o resto da minha vida como moeda de troca. Sobra-me pouco. Por isso, o seu valor relativo sofre frequentemente quebras na bolsa. Do pouco valor que tem, talvez não interesse muito que a desse, com facilidade, em troca dessa declaração de amor. Talvez essa declaração de amor valha mais, por si só, do que o resto da minha vida.

 

Mas o amor é a minha plataforma de gestão. E, precisas de saber. O resto da minha vida e toda a vida que já vivi. As minhas vidas passadas. As minhas vidas futuras. Todos os “eu” que eu fui. Todos os “eu” que eu poderei vir a ser. Todos os que poderia vir a ser e jamais conquistarei. Trocaria tudo isso. Até à última migalha. Não por um abraço. Não por um beijo. Não pelo enleio na noite. Não pela palavra “amo-te”, sentida e cheia de sentidos. Trocaria tudo isso... para tu seres feliz. Pelo resto da tua vida.

 

Marina Ferraz






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terça-feira, 20 de julho de 2021

Lei da bala

 



Revolução é, literalmente, o ato de revolver. Faz-se a fogo. Nem sempre se revolve com um revólver, é verdade. Mas, usualmente, faz-se na lei. Nessa. A da bala.

 

 

Empunharam cravos. Cravos. Vermelhos como o sangue. E as ruas mantiveram a calçada branca imaculada. Com passos. Militares. Rumo à liberdade. Capitães. Do mês das chuvas. Chovia o sonho. Alagava a alma. Esse. O da liberdade.

 

Livres, como as gaivotas. Ao som das canções. Nas vozes do povo. Unido. Vencedor. Senhor do tempo que fora da outra senhora. Livres, como os cravos vermelhos empunhados. Nos canos de espingardas virgens de sangue.

 

Cantou-se o cravo. E a vida. E a mudança. E a vida. Entranharam-se os cravos, com todos os seus rebordos recortados. E a vida. Plantaram-se os cravos, cortados uma vez por ano para celebrar, nas ruas a liberdade.

 

Uma vez por ano, a liberdade na voz soava à revolução. Noções disparadas na ponta das línguas contentes, dispostas a celebrar a vida nessa emoção liberta de passados que, aos poucos, começavam a repetir-se quando o mês não Abril.

 

Ruas cheias de gente. Hoje vazias de gente. Onde se despiam máscaras de tirania. Onde se vestem máscaras de tirania. E cravos. Cravos vermelhos. Cantam-se os cravos. E a vida. E a mudança. E a vida. Entranham-se os cravos, com todos os seus rebordos recortados. E a vida. Plantam-se os cravos, cortados uma vez por ano para celebrar, longe das ruas – e sem a união do povo - a liberdade. A liberdade. Que esvai, aos poucos, no chão de pedras brancas imaculadas, tantas vezes negadas aos passos.

 

Canta-se o cravo. E a vida. E a mudança. E a vida. E a liberdade. Que começou a morrer. E ia morrendo. E aqui permanece, na borda d’água de um estado de direito, que rouba o direito. Passo para o abismo incoerente.

 

Dos heróis. Dos que denunciam. Dos que saem e confrontam. Outrora se dizia pátria. Hoje, pária. Levam cravos. Acreditam. Na vida. Na liberdade.

 

Mas revolução é, literalmente, o ato de revolver. Faz-se a fogo. Nem sempre se revolve com um revólver, é verdade. Mas, usualmente, faz-se na lei. Nessa. A da bala.

 

As pessoas esquecem. Imagino o som silenciado das gaivotas com os disparos. Tiro certeiro, calando novas ditaduras que se propagam e se negam. As pessoas esquecem. E sinto as mãos agrilhoadas à falsa liberdade de uma constituição trespassada pelo esquecimento. As pessoas esquecem porque o chão, imaculadamente branco, não tomou a cor dos cravos recortados.

 

O problema não são os cravos, mas o esquecimento. As pessoas esquecem. É simples esquecer. Cravos. Balas não. Porque é mais fácil varrer as pétalas do que o sangue.

 

 

Revolução é, literalmente, o ato de revolver. E eu sei-o. Mas não quero matar a paz com a guerra. Ainda que muito da paz se tenha conhecido nessa lei. Nessa. A da bala.

 

Grito. Palavras-bala, que me tornam a pária. E vou de braços abertos. Para que os outros, com as balas de metal, me perfurem com mentiras ocas e regras vazias. Deixo a espingarda em casa. Piso as pedras imaculadas. Meio louca, mas lembrando o que nem vivi, sigo a querer acreditar nos cravos e que eles são as balas certas. Vou.

 

 

Se perguntarem por mim, fui comprar flores.


 Marina Ferraz






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terça-feira, 13 de julho de 2021

Não preciso

 



Desengana-te, meu querido, eu não preciso de ti para nada!

 

Nas estantes dos meus livros já existem mulheres suficientes que precisaram. De ti. De alguém como tu. De um ser qualquer, capaz de dar o que elas, por educação ou virtude, não conseguiam fazer. Não sou personagem literária, mas autora. Coloco nas linhas a capacidade de ser e de fazer o que me aprouver. Sozinha. Sem precisar de afago, de embalo, de palavra de incentivo. Aceito-os, mas não preciso deles. Sei exatamente onde pôr as vírgulas nas frases da minha vida. Não preciso que me pontues. Nem que me acrescentes superlativos ao excesso do que já sou.

 

As prateleiras altas da cozinha podem fazer-te pensar que preciso de ti. Não preciso. Já comprei os degrauzinhos extra que me elevam ao patamar superior... e raramente os subo porque, dotada de racionalidade, soube colocar à mão as coisas de uso corrente. Baixei até os copos de vinho para a prateleira de baixo, à medida que a ausência começava a pedir taninos. E não! Não preciso que me abram as garrafas. É uma arte que domino. Tão profissional e exímia que, se um dia fizer outro currículo, talvez coloque isso na primeira página. Sobre mim. Sei abrir o vinho sozinha. E apertar os atacadores também!

 

Poderás pensar que preciso de ti. Para o corpo. Mas o corpo sacia-se facilmente com gestos e toques. Com o escorrer da água quente dos duches pelas costas. Com a meiguice do toque trazido pelas mãos que espalham o creme hidratante. Com as mãos que preparam as refeições e que oferecem o conforto e o prazer, se tal lhes for solicitado. Não tenho medo do corpo. Nem nojo do corpo. Nem esses preconceitos, presos no limite da pele que emana desejo. E, por isso, sou autossuficiente também no cuidado físico.

 

Também tenho as contas pagas, apenas com o fruto do meu trabalho. Não preciso de prendas, nem de prendinhas, nem que vão comigo às compras. Não preciso que me paguem os jantares, nem as roupas, nem os essenciais do supermercado. Nem a mensalidade da casa. Nem a luz. Nem a água. Nem o gás. Nem o ginásio. Nem a gasolina. Não sobra muito, é verdade, mas está tudo pago. Dívidas tenho apenas para comigo e vou-as saldando com as migalhas, em extras ocasionais que sei dar a mim mesma quando e porque me apetece.

 

Amo-te. Mas desengana-te, meu amor, eu não preciso de ti! E, se precisasse, seria porque não te amava. O amor não é figura de utilidade nem palavra de uso. O amor é a plenitude dos sentidos quando se desligam as necessidades. Quando não precisamos que o outro seja útil. Ou importante. Ou que tenha um bom carro, uma boa casa, um bom emprego. Amor é o que sobra quando sabemos que o outro, mesmo se despido de tudo o que tem, ainda nos é mundo, ainda nos é tudo.

 

Eu não preciso de ti!

 

Haverá maior prova de amor do que saber que não se precisa de ninguém... e, ainda assim, amar?

 

Eu não preciso de ti!

 

O que eu preciso é de abrir os dois degraus da cozinha. De subir à prateleira mais alta e de guardar este amor. Não penso que o vá usar muito. Porque, apesar de gratuito e independente, penso que tu não o queres, não precisas dele... e é demais só para mim!


 Marina Ferraz






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terça-feira, 6 de julho de 2021

Aqui

 


“Perder-se também é caminho.”

- Clarisse Lispector

 

 

- Que lugar é “aqui”? – pergunto, sem saber onde estamos, porque estamos sempre entre o lugar onde dissemos que íamos e o lugar onde já estivemos e os lugares onde poderíamos ir.

 

Se respondesses, talvez me dissesses que “aqui” é onde tu estás. Mas tu não estás onde eu estou. O peso que a alma me perde quando vais para esse “aqui” que não é meu, faz-me desaparecer nos meandros da sombra de um “eu” que também não me pertence. E o teu “aqui” não me serve. Justamente porque a alma perde peso quando vais. E o coração vai, arrancado do peito, dar-te razão ao “aqui” onde tu moras e eu não.

 

Intercalo entre a pergunta e o silêncio. A mente constantemente dançando com os fantasmas do anteontem, imersa na imortalidade das palavras que me faz escrever e desejando a morte que já tarda há demasiadas vidas.

 

Não sei onde estou, concluo. Olhando em redor, sem bússola nem mapa, sou o espelho das palavras de Lispector. Ao perder-me na estrada – será isto uma estrada?! – percebo a vontade própria das pernas que avançam e avançam e avançam. Passos de bebé. Passos de gigante. Passos de corrida. Passos de boneca. Passos de urso. Passos de bailarina. Mamã dá licença? Nunca se chega a lugar nenhum e o jogo continua. Mamã dá licença? Quantos passos?

 

Deixei a contagem dos passos para quando souber onde estou. Agora não sei. Talvez nunca tenha sabido. Ou talvez tenha sabido apenas quando, mergulhando o corpo nos teus braços e o nariz no teu pescoço, descobri o único sítio onde quero estar. Mas foi tão breve a passagem por esse santuário só meu – e nunca meu – que é como se nunca tivesse sabido. Onde estou. E, mesmo aí, precisei de perder-me para me encontrar, precisei de perder-me em ti. Talvez ainda aí esteja. Perdida...

 

Penso que deve ser estranho ter respostas para as perguntas de retórica da mente que vagueia. Estar perdido é-me forma de andar. Estar perdido foi sempre, para mim, forma de andar. Pelas caves. Pelos cortes. Pelos pensamentos itinerantes, nómadas e pouco saudáveis de uma mente que podia desligar as emoções. Só as emoções. E, com elas, o desejo de saber onde está.

 

Quem sabe sempre onde está, está no lugar errado. É esta a conclusão que tiro, ao perceber que foi perdida que estive no sítio certo. Quem sabe sempre onde está, está no lugar errado.

 

- Que lugar é “aqui”? – pergunto, novamente.

 

E tenho a certeza de que me dirias que “aqui” é onde tu estás.

 

Eu também acho que “aqui” é onde tu estás.

 

Onde estás?








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