sexta-feira, 31 de julho de 2009

Último dia

Hoje é o último dia. O último dia antes de amanhã. O último dia em que fecho os olhos demasiado cansados de hoje. O último dia em que a nostálgica dor me remete para o mar infinito da saudade.
Pode não ser muito. Questiono-me se tem alguma importância este facto solto numa vida feita de momentos dispares. Mas hoje eu sei que te amei como nunca ninguém te amou. Tanto, que me custa a crer que uma pessoa, qualquer pessoa deste mundo, tenha amado outra com a mesma intensidade com que eu te amo.

Marina Ferraz

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A morte da fera


A penúltima pétala de rosa caiu naquela madrugada e o Monstro não tinha dormido. Os olhos fitavam-na com desapego. Esperara anos pelo amor, esperar mais umas horas pela morte não podia ser difícil…
Viu a pétala cair, fixando o seu movimento ondulante até esta tocar o chão, a seus pés. Pensou em pegar-lhe, agradecendo-lhe por lhe anunciar o fim antes da última pétala o condenar ao esquecimento. Não o fez. Não o fez porque sabia que as suas garras a transformariam em poeira se tentasse.
Então, o Monstro recostou-se na poltrona e fechou os olhos para, de seguida, os abrir. Não temia a morte mas não queria adormecer. Restava-lhe aquele dia, talvez menos…
A última pétala da rosa agitou-se mas não caiu, ameaçou-o apenas, fazendo-o uivar de temor.
O uivo, que podia ser uma lágrima ou um grito, percorreu o palácio, ecoando pelos corredores vazios e assustando os seres encantados que, tal como o Monstro, estavam agora condenados à morte.
Ouviu um barulho lá fora e forçou-se a levantar-se. Seria imperceptível a qualquer outro mas ele ouvia claramente o som doce da neve a cair no solo, formando uma camada gélida sobre a relva seca do jardim.
Estendeu a mão mas nenhum floco a tocou. Era como se a sua aparência repelisse até o gelo que caía sob a forma de algodão frio.
Fechou os olhos novamente, respirando fundo. Também queria recordar os cheiros e os sons. Agora que a morte estava tão perto, era fácil amar tudo em redor.
Entrou e voltou a deixar-se cair na poltrona, fazendo-a ranger sob o peso do seu monstruoso corpo.
Agarrou o espelho mágico mas não lhe perguntou coisa alguma, limitou-se a fixar o seu reflexo, procurando nele qualquer réstia de humanidade. Não a encontrou. Já não era um homem! Questionava-se agora se algum dia o fora…
A voz da feiticeira estava ainda gravada na sua mente. Amor… como podia ela pedir que ele aprendesse a amar ou fosse amado? O amor estava em vias de extinção e ninguém se havia de apaixonar por alguém com o seu aspecto. “Por um monstro!”, acrescentou para si.
Com uma raiva desmedida, atirou o espelho contra a parede, fazendo-o partir-se em mil pedaços.
Pela primeira vez desde que se lembrava, sentia um ardor estranho no nariz e apetecia-lhe chorar. Cerrou os dentes, forçando-se a parar de ser racional. Era uma besta, não uma pessoa. Não era altura de se reger pelos sentimentos em detrimento dos instintos.
A última pétala caiu. Demorou mais do que a outra. Ondeou pelo ar, dançando como se troçasse da dor que dava àquela fera. Ele respirou fundo pela última vez e depois caiu. Uma gota de água salgada percorreu-lhe o pêlo e caiu consigo. Todos os objectos encantados do palácio se imobilizaram. Um segundo depois, todos eles desapareceram juntamente com o Monstro, deixando no ar apenas pó, iluminado pelo sol nascente daquele dia.
O palácio mergulhara em silêncio e cheirava a morte, apesar de nenhum ser vivo ter sensibilidade bastante para o detectar. A fera morrera e a rosa murchara.
Foi então que o portão chiou. Não era aberto há mais de cem anos.
Uma rapariguinha do campo entrou, destapando a cabeça. Era de uma beleza estonteante. Tez pálida, lábios cor de cereja, olhos castanhos e abertos, esperançosos. Fitou o palácio com curiosidade e entrou a medo.
Estava totalmente deserto…
Imaginou-se num conto de fadas. “Princesa Bela”, murmurou para si mesma, sorrindo. Era fácil imaginar-se assim, era uma sonhadora presa a histórias irreais de livros de fantasia.
Rodopiou sobre si mesma e depois tornou a sair, sabendo como era ridículo imaginar que aquele velho palácio abandonado e a cair aos bocados podia, alguma vez, ser parte de uma história de encantar, como as dos seus livros.
Era o seu conto de fadas… mas ela chegara tarde demais.
É sempre assim! Toda a gente chega tarde demais. Toda a gente parte demasiado cedo. E os homens morrem como monstros. Sozinhos. Sem amor. Totalmente sozinhos.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet