quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Não voltes




Não voltes. Por favor. Não voltes. Lembra-te de seguir, em linha reta ou não, mas sempre em frente. Não olhes para trás. Não te questiones. "E se?". Não voltes.

Claro que eu quero que voltes. Mas, de qualquer forma, o que eu quero nunca importou. Então, por favor: não voltes! Mesmo que seja o que eu quero. Não importa. Lembra-te que quero não querer. Que quero querer que vás. Que quero querer que não voltes.

Faz-me a vontade. Ao menos esta, já que ao longo dos tempos que passavam fora da nossa janela de tempos parados, não me fizeste nenhuma outra. Não voltes.

Se voltasses, imagina só. Imagina o caos. Esse caos que seria abrir a porta. Outra vez. Pisares pedras que já foram pisadas e nas quais já se cortaram as solas dos pés e da alma. Imagina como a dureza desses cortes causaria dor. E como, cansados da dor, nos lançaríamos na cama. Se voltasses, imagina só. O caos. Tu e eu envoltos numa paixão feita de luxúria, a sentir no corpo um prazer desconhecido aos outros. Só teu e meu. Outra vez. Não voltes.

Se voltasses, vê bem. Vê bem a possibilidade. A porta aberta poderia ter traços da ferrugem por não se ter aberto a mais ninguém durante tanto tempo. E, nos recantos mais tristes e confusos dessa acumulação férrea, poderia começar a cair uma inflexível chuva de pó e de sonhos. O pó só causa asma… mas os sonhos são perigosos. Causam cegueira. Imagina. Se voltasses, a cegueira do sonho podia fazer com que só nos víssemos um ao outro e a tudo o que, em tempos, amámos um no outro. E isto poderia ser o começo da ilusão. E a ilusão poderia gerar felicidade. E a felicidade, como bem sabemos, é uma estratégia de guerra usada pela tristeza para se apoderar, com afinco, das almas inocentes. Não voltes.

Se voltasses, pensa um momento. Pensa na pele. A pele gasta de dedos que nela erodiram memórias. Quereres explicar. E eu querer ouvir. E quereres calar. E eu querer esquecer. E terminar tudo em duas línguas demasiado ocupadas para falar. Em dedos demasiado ocupados para se enrolarem no desespero das narrativas do que não existe. Imagina só. Um perdão sem explicações, a deixar em aberto tantas coisas que podiam, deviam, ser faladas. E não haver necessidade de dizê-las porque, na verdade, tu e eu sabíamos, desde o primeiro segundo, que era destino. A condensação nos vidros da respiração tosca dessa sabedoria. O chover desse conhecimento dos astros, além do que se vê nos telescópios e nos documentários. Não voltes.

Se voltasses, quanta loucura. Vê como é impensável. Aquele espaço eternamente vazio, que em mim se faz na presença obsessiva de palavras e, em ti, na ausência de luz nos olhos, poderia preencher-se. A nossa mente, já atolada de pensamentos, poderia ficar empossada de algo além de ar. E teríamos de evocar os Deuses antigos porque os novos são poucos e quase sempre inúteis. Daríamos por nós a criar uma religião ancorada no amor eterno. Um que nos faz crer que até as almas podres têm existência entre a poeira caótica das estrelas do Universo. E saberíamos que não há, na distância entre nós e qualquer astro, medida que nos defina ou ao nosso amor paquidérmico e cheio de tudo. Quão perigoso seria sabermos que temos a maior força de todas? Quão perigoso seria retomar o poder universal das coisas nas nossas mãos enlaçadas e corpos nus? É impensável. Não voltes.

Não voltes. Por favor. Não voltes. Mesmo que eu queira. E quero muito. Mas não voltes. É demasiado arriscado. Demasiado caótico. Demasiado inesperado. Não voltes. Corremos o risco de ser felizes.






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quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Em cima do palco


Autor da foto: Miguel Pião


Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, sou fénix. Renasço das cinzas de mim.

Mas, depois, subindo ao palco, ela percebia que não era cinza. O linóleo debaixo dos pés ou a madeira envernizada. O subir de telas e panos. O descer das luzes incandescentes nos olhos de brilho. O brilho que é mais incandescente que as luzes que descem. E nas quais ondeiam pedaços de poeira. Que não é cinza. Mas magia.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, sou deusa. Vivo de imortalidade.

Mas, depois, chegando até ao microfone. Fazendo com ele uma dança de pares, onde os beijos de língua eram palavras. Sentindo a obscenidade no toque plástico na mão, quando o retirava do tripé, ela não se sentia imortal. Sentia que ia morrer. Ali. Que podia morrer. Ali. Que nem sequer se importava de morrer. Ali. E não havia imortalidade nas palavras ditas e sonhadas, ainda que a poeira ondeante de sonhos parecesse parar os ponteiros.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, sou esperança e História. Vivo de amanhãs e de anteontens.

Mas, depois, quando se movia, dançando, ela percebia que era toda feita de “agoras”. De momentos que se principiavam, que terminavam, que se sucediam. E aceitava a inevitabilidade do momento que já tinha sido ontem e já tinha sido amanhã mas que, ali, era simplesmente um “já” repartido em memórias concretas do segundo presente.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, não tenho género nem forma. Vivo sem definições.

Mas, Deuses, subia ao palco e sentia-se mulher. Subia ao palco e sentia-se bonita. Subia ao palco e sentia o exultar da feminilidade pelos poros e por todos os orifícios, incluindo os que alguns considerariam impuros. E não tinha vergonha do corpo nem pudores falsos. Tinha apenas vontade de (se) viver. Vontade de aproveitar a sensualidade da psique. Como um desmaio lúcido, no qual era gente.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, não sou eu. Vivo sem mim.

Mas era mentira. Porque ela avançava debaixo das luzes, sedenta dos risos da plateia, sedenta dos olhares da plateia, sedenta das palmas da plateia. E, por mais que se cobrisse de figurinos, despia-se da muralha, despia-se da pele, despia-se da carne e punha ali – totalmente nua e exposta – a alma.

Despida. Exposta. Desarmada. Ela procurava em si o texto. Vomitava ali o texto. Rasgava ali o texto. Sempre de olhos saltitando, entre o papel, a luxúria e a plateia, na qual persistentemente procurava algo. Alguém. Talvez tu. Sim. Definitivamente tu. Porque ela se despia. De quase tudo. Mas não de amor, porque era essa a essência da alma. E a essência era o que se via, de pés nus no linóleo, debaixo das luzes, exultando a expressão mais louca do ser.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir. Mas agora não. Agora, não anui. Porque não concorda.

Em cima do palco, eu sou eu. É fora dele que não sei quem sou.





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terça-feira, 10 de setembro de 2019

A vala comum das mágoas

Fotografia de Analua Zoé 


Gosto de pensar que, na sucata que é a vida, o meu coração amontoado com todos os outros corações tristes não é só mais um, na vala comum das mágoas.

Eu sei que já lhe faltam bocados. E que, de tão lavado na esperança de que lhe saíssem as nódoas, ele começou a ganhar ferrugem, principalmente na aurícula esquerda, que deveria receber dos pulmões o ar que escasseia. E também sei que o pintei por cima, de forma nada bonita, para tentar esconder justamente o lado ferrugento das tentativas de salvar o que não tinha, como bem sabemos, salvação.

Mas ainda gosto de pensar, que, mesmo que esteja na vala comum das mágoas, o meu coração vale alguma coisa para alguém. Que ele ainda tem estofos confortáveis, onde uma ou outra pessoa possa sentar-se, de vez em quando. Mesmo que não permaneça.

Seria triste imaginar que o meu coração – que claramente já não serve para nada – viu esquecida toda uma história de vida. Por isso, quando penso no meu coração, na sucata da vida, na vala comum, tento imaginar que mais alguém, além de mim, sabe que as coisas quebradas também podem ser bonitas.

Eu acredito nisso. Que há uma beleza nas coisas quebradas. Sejam carros ou corações. Há uma beleza feita de ferrugem. Pelos quilómetros percorridos de mágoas. Uma beleza feita de cacos. Feita de caos. Feita de histórias. Uma beleza inusitada que fica entre tudo o que foi e tudo o que é. Como um fantasma de dias idos… mas melhores. Que ecoa. Contando uma história de vida.

Talvez o meu coração seja isso. O contador de histórias da sua vala comum. Talvez use os fogos do submundo para fazer uma fogueira, ao redor da qual se sentem corações e engrenagens inúteis – para o ouvirem contar a aterradora e horrível narrativa do amor.

Gosto de pensar que, na sucata que é a vida, o meu coração amontoado com todos os outros corações tristes não é só mais um, na vala comum das mágoas. Porque ele é isso. A história que viveu. Mesmo que a sua aurícula esquerda esteja particularmente ferrugenta e que globalmente se encontre sujo e destruído.

Há uma beleza nas coisas quebradas. E outros corações quebrados são, talvez, capazes de a ver. Mas desenganemo-nos. O carro sucatado não vai andar mais. Nem o meu coração vai sentir. Nem a maioria das pessoas poderá, alguma vez, ver beleza neles.

E, embora eu goste de pensar que, na sucata que é a vida, o meu coração amontoado com todos os outros corações tristes não é só mais um; na vala comum das mágoas, eu sei que ele o é. Todos os corações têm história. A do meu, é o esquecimento. Não houve amor que o reclamasse. Houve só amor que reclamasse dele. Morreu incógnito e só. Lançou-se à vala nessa condição. Não terá lápide que o identifique. Nem inscrição que conte que, em tempos, ele foi um bom coração.





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terça-feira, 3 de setembro de 2019

As feridas que ninguém vê


Fotografia de Analua Zoé 

As feridas que ninguém vê. Atadas com ligaduras firmes. Umas de pano. Umas de vento. Algumas de mentira suave - Estou bem. E tu? – As feridas que ninguém vê. E que tanta gente causa. E que tanta gente ignora. E que tanta gente critica.

Sim, eu sei. Devia provavelmente escondê-las, para que ninguém as visse. Ou esconder-me atrás delas, como tantos fazem. Ter, sobre elas, uma postura de vergonha ou de vitimização. Fingir que não as tenho ou reduzir-me a elas. Devia, em suma, ser os outros.

Eu percebo o desconforto que deve ser olhar para todas as minhas cicatrizes. Saber que algumas são fruto de feridas como as que ainda trago abertas e que outras sararam, sabe-se lá como, com água do mar e tempo. E encontrar, de permeio, as feridas que não saram. Como aquelas feitas de amor, num só corpo, abertas de dedos cravados na pele que hoje sangra lágrimas por dentro.

Não é difícil perceber. Causa desconforto. Um desconforto que se acentua porque eu não cubro as feridas e não me reduzo a elas. Porque as uso como brasão mas não como escudo. Porque as tomo por irmãs e não por escravas. Porque não tento evitar que vejam que sou imperfeita.

Tenho muitos defeitos. Defeitos que se acentuam pela magreza. Pela brancura. Pela sombra que coloca até o defeito que não há no espelho de mim. Pelo jeito socialmente desajustado. Pela testa franzida e os ossos salientes nos ombros. Pelas rugas teimosas entre os olhos. Olhos que tenho. E que não são cegos. E também vêem cada defeito de mim.

Eu vejo. Vejo mais. Vejo feridas. Vejo rugas. Vejo cicatrizes. Vejo a mancha permanente na mão direita. Vejo os traços tortos da tatuagem nas costas. Vejo os sinais que se amontoam junto ao pescoço. E vejo as estrias. E vejo as varizes. E vejo a flacidez quando o exercício se delega para amanhã, esquecido por entre o trabalho. E vejo a madeixa de brancos que surge na parte superior esquerda da nuca. Sim! Eu também sei. Eu também vejo. Os defeitos. As feridas que ninguém vê.

Mesmo assim. Com clareza de olhos que vêem, sinto-me capaz de amar. Amo cada uma das minhas imperfeições e cada um dos meus defeitos. Até aqueles que me fazem dar resposta a quem não merece resposta. Amo-os. Porque atrás delas. Das feridas que ninguém vê. Da pele branca. Do corpo magro. Atrás delas, a alma não está podre.

Eu tenho muitas feridas. Feridas que ninguém vê. Algumas delas são feias. Algumas delas são por dentro. Mas nenhuma delas é fermentada a maldade.

Deito-me ao lado das fontes e sei que, como a água, existe algo de permanentemente fluído, transparente e puro em mim. Mesmo que não se veja no meu corpo imperfeito e cheio de cicatrizes. E penso que talvez a pureza de mim derive justamente das imperfeições que me fazem monstro aos olhos alheios. Porque foram elas que me ensinaram que as nossas mãos, as nossas bocas, as nossas palavras nascem do alimento interino de nós e devem apoiar, elogiar, mimar os outros.

Prefiro ser quem chora a fazer chorar alguém. E dos poucos arrependimentos que trago é o de saber que nem sempre fui capaz de entender as feridas alheias. Dos poucos arrependimentos que trago é saber que, inadvertidamente, rasguei a pele de outras almas-água. Esta é uma das minhas feridas abertas. Que nunca sarou. Nem vai sarar.

As feridas que ninguém vê. Ato-as com ligaduras firmes. Umas de pano. Umas de vento. Algumas de mentira suave - Estou bem. E tu? – Algumas feitas de silêncio. Algumas feitas de resposta. Algumas feitas de eternidade.

Ato as minhas feridas. Dou nós lassos nas ligaduras que caem. Ato as feridas. Não as escondo. Não me escondo atrás delas. Deixo que se evidenciem. Ato-as só para que se prendam a mim e me deixem saber que não sou perfeita. E mostro-me. Com todos os meus defeitos.  Atrás das imperfeições - atrás delas - a alma não está podre.






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