quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Em cima do palco


Autor da foto: Miguel Pião


Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, sou fénix. Renasço das cinzas de mim.

Mas, depois, subindo ao palco, ela percebia que não era cinza. O linóleo debaixo dos pés ou a madeira envernizada. O subir de telas e panos. O descer das luzes incandescentes nos olhos de brilho. O brilho que é mais incandescente que as luzes que descem. E nas quais ondeiam pedaços de poeira. Que não é cinza. Mas magia.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, sou deusa. Vivo de imortalidade.

Mas, depois, chegando até ao microfone. Fazendo com ele uma dança de pares, onde os beijos de língua eram palavras. Sentindo a obscenidade no toque plástico na mão, quando o retirava do tripé, ela não se sentia imortal. Sentia que ia morrer. Ali. Que podia morrer. Ali. Que nem sequer se importava de morrer. Ali. E não havia imortalidade nas palavras ditas e sonhadas, ainda que a poeira ondeante de sonhos parecesse parar os ponteiros.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, sou esperança e História. Vivo de amanhãs e de anteontens.

Mas, depois, quando se movia, dançando, ela percebia que era toda feita de “agoras”. De momentos que se principiavam, que terminavam, que se sucediam. E aceitava a inevitabilidade do momento que já tinha sido ontem e já tinha sido amanhã mas que, ali, era simplesmente um “já” repartido em memórias concretas do segundo presente.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, não tenho género nem forma. Vivo sem definições.

Mas, Deuses, subia ao palco e sentia-se mulher. Subia ao palco e sentia-se bonita. Subia ao palco e sentia o exultar da feminilidade pelos poros e por todos os orifícios, incluindo os que alguns considerariam impuros. E não tinha vergonha do corpo nem pudores falsos. Tinha apenas vontade de (se) viver. Vontade de aproveitar a sensualidade da psique. Como um desmaio lúcido, no qual era gente.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir.

Em cima dele, não sou eu. Vivo sem mim.

Mas era mentira. Porque ela avançava debaixo das luzes, sedenta dos risos da plateia, sedenta dos olhares da plateia, sedenta das palmas da plateia. E, por mais que se cobrisse de figurinos, despia-se da muralha, despia-se da pele, despia-se da carne e punha ali – totalmente nua e exposta – a alma.

Despida. Exposta. Desarmada. Ela procurava em si o texto. Vomitava ali o texto. Rasgava ali o texto. Sempre de olhos saltitando, entre o papel, a luxúria e a plateia, na qual persistentemente procurava algo. Alguém. Talvez tu. Sim. Definitivamente tu. Porque ela se despia. De quase tudo. Mas não de amor, porque era essa a essência da alma. E a essência era o que se via, de pés nus no linóleo, debaixo das luzes, exultando a expressão mais louca do ser.

Sempre. Sempre que ela subia ao palco. Sempre. Havia alguém que dizia: “Transformas-te completamente”. E ela costumava anuir. Mas agora não. Agora, não anui. Porque não concorda.

Em cima do palco, eu sou eu. É fora dele que não sei quem sou.





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1 comentário:

  1. Adoro odiar que a tua escrita se cruze com a minha. Fora isso... 3, 2, 1... SLAM!

    "Como um aríete lírico subo ao palco
    A honrar a escrita com a oralidade.
    Os lábios soltam sopros poéticos,
    As mãos tremem, mas não é nervosismo.
    É da força das palavras que redigi,
    Que bravas e imprudentes se atiram ao mundo."
    M.H.

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