terça-feira, 31 de julho de 2018

Tudo (menos o meu coração)




Se eu morrer, peço que levem das minhas entranhas tudo o que ainda tiver proveito.

Se me funcionarem os rins que já não uso, ou os pulmões com os quais já não respiro, tirem-nos da minha carne antes de me fazerem em cinza.
Parto sabendo que alguém respira por mim. Que alguém suplantou a dor e viverá na utilidade do que já não me servia.

Doem os meus olhos. Fragmentos de osso. Pedaços indignos de pele. Rapem-me o cabelo. Doem tudo. Deixando a carcaça vazia do que, um dia, foi o meu corpo.
Parto sabendo que alguém sorri por mim. Que alguém combate a doença e recupera, aos poucos, já sem medo dos anos vindouros.

Levem das minhas entranhas o que ainda tiver proveito. Mas, peço: apenas o que ainda tiver proveito. Não doem o meu coração!

Macerado, massacrado, dolorido, iludido, incapaz, incompetente e cheio de negrumes, o meu coração não serve as sístoles e as diástoles sem falhar, a cada segundo, alguma batida. E dói, quando bate. Tanto que é como se ameaçasse não bater mais.

Não doem o meu coração. Temo que, noutro peito, ele continue insistentemente a assumir a postura contundente e agressiva que sempre lhe modelou a ação. Temo que, mesmo noutro peito, ele continue tirano e ditador, insistindo em ideias loucas, sem amor-próprio. Temo que ele permaneça masoquista e pesado, arrastando para o abismo, entre batimentos, qualquer um que o receba.

E que termine por ser carrasco de quem tem esperança. Maldição de quem ora pela bênção. Castigo de quem já sofreu demais.

Se eu morrer, peço que levem das minhas entranhas tudo o que ainda tiver proveito. Levem-me. E reduzam-me ao mínimo fundamental antes de me fazerem poeira ao vento na Pedra da Ferida.

Levem tudo de mim. Doem tudo o que possa ser, para alguém, um sopro quente de vida e um aclamar de esperança à beira-morte.

Mas o meu coração? Deixem que o coração permaneça e vire também poeira!

Foi usado ao limite. Está roto, rasgado, incapaz de amar, recheado de dores que não podem ser descritas. Já não tem uso que se lhe dê. Já não tem proveito.

Se eu morrer, peço que levem tudo das minhas entranhas, menos o coração. Não tentem reabilitá-lo. Não tentem transplantá-lo para um peito mais ajustado. Peço que lhe guardem uma réstia de respeito.

Antes de ser inútil, ele foi um bom coração. Já chega de batimentos doloridos e de esperanças desajustadas. Se eu morrer, peço que deixem o meu coração descansar. Ao menos dessa vez. Finalmente. E pela eternidade.




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quarta-feira, 25 de julho de 2018

Ode à agressão




Atentai, senhores. Dizemos todas. Preto no branco. Nas redes sociais. E nas sociais redes da vida. Atentai, senhores. Vede. Dizemos. Esta pessoa que me feriu. Esta pessoa que me diminuiu. Esta pessoa que me levou de rojo até que não me sentisse pessoa. Olhai. Eis aquele que amarei a vida toda.

Tenho trinta e duas mil imagens inspiradoras para o dizer. E mais alguns clichés para completar a ideia. Coloco-as em frases soltas, em cada uma das minhas fotografias. E faço partilhas ocasionais que falam sobre a intensidade desta vivência.

No caminho que nos levou da felicidade iludida ao desaparecimento súbito de tudo o que podia rotular-se como amor, eu guardei só o melhor. Vede. Atentai, senhores: ainda estou à espera. Dele. Daquele que me feriu até que sangrasse o lado esquerdo da alma macerada. Daquele que me fez dizer “desculpa” como ponto final, no final das frases. Aquele que me traiu e colocou, em cima dos meus ombros, a culpa de todas as suas traições. Atentai na sua perfeição e no meu desejo de o ver voltar. Atentai senhores.

Quando pára? Esta necessidade materna de ser eterna defensora da ideia desajustada que tivemos da vida com alguém? Esta vontade intensa de divinizar quem nos magoou? Onde acaba? Esta vitimização escusada? Este desejo de tudo, esbatido em espaços vazios e inconsequentes de neurose?

Dizemos todas. Numa partilha regular ou ocasional. Dói e é por isso que sei que te quero. Não sei quem sou desde que partiste. Chorei por ti e é por isso que te amo. Que se foda o amor, se o amor for choro e dor e desapego. Se o amor for isto, eu não quero amar.

Esta é para ti, menina. E para ti, mulher. E para ti, independentemente do teu género e orientação, que continuas a acarinhar e a honrar uma história que te queima as veias. Tu e eu somos iguais. Continuamente identificados com frases que alguém fez – e provavelmente nem sentiu. Apenas porque a ode à agressão é mais simples do que a verdade.

A verdade é esta. Um dia amámos alguém e essa pessoa fez-nos felizes. Primeiro fez-nos felizes. Mas depois não. Depois, tudo se transformou na miserável procura pela memória do que tinha sido. Um dia amámos alguém e o amor, que ardia, passou a queimar.

A melhor forma de honrar esse amor é seguir. Deixemos a ode à agressão para depois. Ainda estamos a tempo de viver.




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terça-feira, 17 de julho de 2018

Je suis perdu




Foi há muitos anos atrás. No seio frio de um país estranho. Acompanhada por duas crianças que ainda mal dominavam o português, que eu insisti, pela primeira vez, numa ideia: “Je suis portugaise et je ne parle pas français. Je suis perdu.”
Elas aprenderam as palavras, sem saberem bem o que significavam. Pela repetição. Como as crianças sempre aprendem. Mas e eu? Será que eu sabia o que elas significavam?


Dou por mim. Hoje. No seio do meu próprio país. Adulta – serei?! – e a pensar se domino palavras e emoções. Se compreendo, de facto, o que se esconde por detrás delas. O que as transforma em mais do que formas codificadas numa ilusão feita de papel.

Há, no meu peito, dimensões de inexplicável que são como uma língua estrangeira que eu não domino. E salta-me, nos ouvidos, novamente a expressão “Je suis perdu.”.

Compreendo hoje que não sabia, na altura, o que significava a frase que ensinei. Era só uma adulta a aprendê-la pela repetição, como se fosse criança, tentando ensiná-la para acautelar o medo do improvável.

Prevenir uma situação em aquelas crianças pudessem ficar em perigo tomou a forma de uma frase que eu não sabia entender. “Je suis portugaise”… eu sou portuguesa… “et je ne parle pas français”…  e eu não falo francês. Até aqui, eu entendia. Mas faltava-me a estrutura emocional para compreender o que significava o resto. Faltava-me o abalo que só a vida pode trazer para explicar verdadeiramente as palavras. Essas palavras. “Je suis perdu”.

Sinto-me, hoje, de pés postos no conhecimento dos dias, que me trespassa, qual idioma antigo e morto, um sentimento de alheamento a mim mesma. Como se os passos me afastassem de mim. De ti. Do sonho. Do que eu possa querer sonhar. Não sei bem de onde vim. Não faço ideia de como aqui cheguei. Sigo. E não sei para onde. Não sei porquê. Não sei por quem. Je suis perdu.

Pela primeira vez compreendo. Sem ninguém que me repita a frase, para que a decore. Intrinsecamente. Compreendo o que significa. Estar perdido. É como ser eu a criança nas ruas de Paris. Subitamente, não é como se não conhecesse a rua e não tivesse as mãos quentes dos meus pais. Subitamente, é como se não tivesse ruas. Como se Paris tivesse sido roubado debaixo dos meus pés e caminhasse na bruma etérea do Sena. Não falo esta língua. Não sei de onde sou. Peço ajuda. Je suis perdu. Je suis perdu. Mas ninguém ouve. Não há ninguém para ouvir.

Cada passo é uma queda no abismo. Je suis perdu. E cada abismo é um salto na esperança que se esgota. Je suis perdu. E cada palavra faz um sentido novo nesta senda de nada fazer sentido. Je suis perdu. Je suis perdu.


Foi há muitos anos atrás. No seio frio de um país estranho. Acompanhada por duas crianças que ainda mal dominavam o português, que eu insisti, pela primeira vez, numa ideia: “Je suis portugaise et je ne parle pas français. Je suis perdu.” Elas aprenderam as palavras, sem saberem bem o que significavam. E eu também não sabia. Não sabia o que significava. A frase. Essa frase. Je suis perdu. Agora sei. E quem me dera não saber.





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terça-feira, 10 de julho de 2018

Neste frio




Um frio que me entorpece. Beijo de água na pele. Beijo de sal na pele. Sorrio. Sorris de volta. E eu sinto a alma gritar. Será que vai ser sempre assim? Pergunto e ninguém responde. E há o frio. Que me entorpece. Beijo de água na pele. Beijo de sal na pele. Para que nela não cresçam agruras e cicatrizes.

Tenho saudades tuas. Aqui ao lado. Haja quem entenda. Tenho saudades tuas.

Apetece-me fazer tudo o que eu não faria. Para me esquecer de que eu sou eu. Porque esse “eu” que te ama tem de encontrar em si um “eu” que não te ame. E não é fácil. Descubro, nos trilhos que eu não trilharia, que não só amo o caminho como amo as tuas pegadas e as nuances de Natureza que me recordam de ti.

Estás em toda a parte. Assombrando as águas e as marés. E os caminhos de terra. E os caminhos de alcatrão. Fumegando na cidade recheada de barulhos metálicos. Ouço-te, feito canção, e odeio tudo o que escrevo. Porque saltas nas palavras, carnívoro e canibal, alimentando-te das pontas dos meus dedos. Sinto-me roubada nas palavras. E odeio as palavras porque todas são o teu nome. E todas soam ao eco imortal do amor quente da tua voz. Nesse último “agarro” que se sumiu nas minhas noites.

Tenho saudades tuas. Aqui ao lado. Haja quem entenda. Tenho saudades tuas.

Em alguns dias, a solidão tem a tua forma. E noutros não tem forma que se descreva. Entre uns e os outros não existem dias. Apenas negrumes imaginados sobre o que o futuro podia ser e não é. Escrevo milhares de notas de despedida na minha cabeça. Passatempo imoral, aos pés de quem me quer bem. E, ainda que mentalmente, rasgo as notas e a ideia de partir. E vou ficando, como ficam os restos no canto do prato depois do banquete. Quando tudo é sujidade e trabalho, misturado com cansaço e melancolia. Vou ficando. E nunca é por mim.

Anseio pela partida que não reclamo. Imagino-a como o único dia feliz que terei de agora em diante. E sei que é irracional. Mas é difícil ser racional quando metade de nós é dor e a outra metade se foi. Ficou um frio que me entorpece. Até nas ondas dos lençóis da única metade da cama que se desfaz. Até nas ondas do mar. Amantes frias. Que me beijam a pele saudosa e infiel. Essa pele que me trai com a necessidade de ti. Contigo ao lado e do outro lado do mundo.

Tenho saudades tuas. Aqui ao lado. Haja quem entenda. Tenho saudades tuas.

Como quando não estás.

E quero agarrar-te num abraço. Desligar nele a humanidade tardia. E nunca mais ser.

Entorpecer neste frio. Pele de água e sal. Desaparecer neste frio. Deixar que me gele até o coração. Para não doer, ao menos por um bocadinho.

Para poder sorrir-te de volta. Quando me sinto morrer.




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quarta-feira, 4 de julho de 2018

O brilho dos teus olhos



Quem rouba o brilho dos teus olhos. Uma história de ódios sem nome, construídos na desonra do tempo que não passa e sempre retorna ao amanhã. Um sopro de dor. Que se veste de sonho. E se deixa cair na ilusão irregrada. Até não saberes. Até não veres. Até negares. Que o tens. Que alguma vez o tiveste. O brilho nos olhos.

Mas tu tiveste. Eu vi. Eu sei. Ainda que não vejas. Ainda que não saibas. E tenho medo. Por ti. Pelos teus olhos. Esses onde alguém insiste em beber luz. Drenando brilhos. Drenando sonhos. Transformando tudo em poeira. Baça. Macilenta. Cheia de nadas que se somam e se somem.

Dos espaços carregados entre dedos que se abraçam até embranquecerem. Com as lágrimas que se secam e se fazem chuva de verão. Com os poemas que se calam nos silêncios sossegados ou desassossegados do peito em chamas. Conceitos. Todos em forma de gente. Mas sem humanidade que reste. À medida que se alimentam, aos poucos, dos fragmentos desiludidos de ti e das tuas ilusões. Roubando. Tanto. Quase tudo. Juntamente com o brilho. Aquele que tinhas. E que trazias. Nos teus olhos.

Quem rouba o brilho dos teus olhos. Por falta de brilho; ou de brio; ou de coração. Uma história de morte que se dá nos batimentos de um coração. Que diz amar. Mas que ainda não aprendeu que o amor não existe senão numa partilha entre iguais. Que se querem. Que se completam. Que acendem o brilho nos olhos, em vez de o apagar.

Dói. Eu sei. É um entendimento que supera as palavras que nunca dizes. Um entendimento que só tem quem se espelha e reconhece, num rosto, outro rosto. Onde os olhos perderam o brilho.

Não tenho pena de ti. Nunca vou ter pena de ti, embora te saiba vítima de bestas e lanças de desamor. Porque te sei gente. Porque te sei forte. Porque sei que podes reacender o brilho dos teus olhos.

Não é hoje. Não é agora. O mundo peca mais por demoras do que por falta de ação. Mas virá. O dia. O dia no qual o brilho roubado será arma. Explosiva. Nuclear. Transformando as mãos que roubam num despojo ensanguentado e em cacos de carne pelo chão que pisas. E, delas, estrelas ascendentes serão luz. Voltando ao seu lugar. Na pureza de ti.

Preocupa-me que a hora tarde e os danos que a sua tardia prece deixa na mágoa de ti. E cria-se, por isso mesmo, um ódio muito simples por ela. Essa pessoa. Essa que rouba o brilho dos teus olhos.

Fico a pensar. E se os teus olhos, que eram todos brilho, não lembrarem mais? E se nunca mais seguirem a dança dos teus lábios? E se nunca mais sorrirem, feito pequenos sóis, no inverno das ruas sempre frias da humanidade? Mas não deixo que o medo me apague a fé da mesma forma que apagou o brilho. Esse. O dos teus olhos.

Levo em mim mil feitiços. Proteção desajustada de sal, sangue e sálvia. E prometo a minha alma ao sol, numa prece para que também os teus olhos o sejam. Abraço a honestidade das coisas frias e sei. Sei quem rouba o brilho dos teus olhos. E por isso sei que lhe hão-de queimar as mãos. Porque há coisas que não podem ser apagadas. Nem usadas. Nem manipuladas. Mesmo quando se roubam. É teu. Esteja onde estiver. O brilho. Esse dos teus olhos. Que alguém roubou.

Quando o quiseres, vai ser teu outra vez.

Até lá, meu amor, para que não te ensombrem os olhos que choram, fica com o meu.



*Imagem retirada da Internet




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