terça-feira, 27 de junho de 2023

O homem do campo

 

Alfafar - Portugal


Nota prévia: Nesta última ida à minha "Terra Mãe", fui à terra do meu avô. Este texto já é antigo, mas ainda não o tinha publicado. Deixo-o, com memória e saudade, para recordarmos os heróis da terra que fizeram o nosso país (e não os heróis da guerra que se sagram na História). 

 

Para o meu avô (e todos os homens do campo)

 

 

O meu avô era um homem do campo.

 

Nasceu como um homem do campo.

 

Morreu como um homem do campo.

 

E foi como tal que se construiu, sem nunca negar as origens ou querer ser outra coisa.

Tinha terras. Em algumas delas, havia vinhas. As vinhas tinham raízes presas à terra. Profundas. Tal como ele. Quase tão profundas como as dele.

 

Ao longo da sua vida, sem mais do que a quarta classe, o meu avô cultivou cultura junto das gentes e dos livros. Fez-se homem na cidade. E foi muitas coisas. Teve trabalhos de secretária e rotinas sem sol. Mas a terra? Trazia a terra agarrada às pontas dos seus dedos calejados. Plantando e colhendo a vida, estação a estação.

 

Mesmo quem não sabia de onde ele vinha, sabia: o meu avô era um homem do campo. Era algo que emanava do seu jeito, sempre educado e cortês. Como se a dureza da força que o fazia carregar poceiros que pesavam mais do que eu pudesse, de alguma forma, ver-se sob as camisas às riscas e os bonés.

 

Das uvas que cultivava, podava, sulfatava e colhia, o meu avô fazia sumo e vinho. Água ardente e, ocasionalmente, vinagre. Às vezes não o fazia de propósito. Enchia, com ele, copos à refeição. E havia quem bebesse. Porque o meu avô, que era um homem do campo, era também um homem bom, a quem se queria agradar.

 

Menina, nos meus jeitos citadinos, fui levada muitas vezes às colheitas. Vivi as vindimas com cortes superficiais nas mãos e dez quilos de lama seca nas sapatilhas. Vivi-as com queixume. Cortando as uvas e surripiando bagos dourados e doces. Vivi-as com curiosidade, brincando no trator, sob avisos e olhares preocupados da minha mãe – outra menina da cidade – e a permissividade do meu avô que me recomendava apenas cautela, enquanto pisava as uvas na loja sob a casa de campo.

 

Servia-me um copo de sumo de uva. “O primeiro vinho”. Não tinha fermentado. Mas fazia-me saber que, de alguma forma, aos seus olhos, eu merecia provar, apesar da tenra idade, o sabor dos meus esforços transfigurado em matéria.

 

Numa pequena aldeia, próxima de Coimbra, na alçada de Penela, eu senti, assim, pelas mãos de um homem do campo, o sabor de uma tradição. O sabor que ela tem antes de fermentar. O sabor que ela tem antes de chegar aos outros e deixar que eles provem também. Foi assim, atrevo-me a dizer, que conheci um sabor que não pode ser entendido por quem não conhece, do campo, o trabalho de sol a sol.

 

O meu avô era um homem do campo. Como há muitos, de Norte a Sul. Na sua vida conquistou, durante os dias, o dourar de esforços que não se esgotavam no vinho – posto que havia maçãs, nozes, azeitonas e dióspiros - mas que, no vinho, ganhavam expressão e força. E levantava-se com os raios de sol que lhe abençoavam o esforço. E deitava-se com o cansaço que lhe abençoava as noites.

 

Habituei-me a ver refeições servidas com o seu vinho. Acompanhando o seu vinho. Habituei-me a que as garrafas fossem rainhas na mesa e senhoras de brindes, embora eu brindasse com sumo. E havia alegria na mesa cheia, onde se serviam cozidos e chanfanas e sopas de casamento.

O meu avô era um homem do campo. Filho de uma cultura da terra e de uma tradição lusitana. Do sol e das videiras, fazia irmãos e irmãs. Apaixonava-se todos os dias pela forma como o sol nascia, aos poucos, vestindo os campos de luz. Apaixonava-se todas as noites pela forma como a luz da lua entoava canções de embalar no telúrico caminho das verdes histórias.

O meu avô era um homem do campo. Na pequenez da sua individualidade, o meu avô, mais do que homem, era campo. E, sendo campo, o meu avô era Portugal.

 

Recordo-o no sabor do vinho que já não é ele a fazer. E lembro-me sempre que, quem o faz, e, provavelmente, avô de alguém que diz, também, com orgulho: “o meu avô é um homem do campo”.

 

E, nos tons rubros do vinho tinto; no dourado do vinho branco; na vibração verdejante dos vinhos verdes, eu pinto a bandeira do meu país.

 

O meu país, tal como o meu avô, é homem do campo. Às vezes sinto-o como uma colheita tardia. Com as uvas mais doces a dourar ao sol, amadurecendo aos poucos a envolvência dos seus sabores. Tornando-os mais puros e honestos.

Ainda esperamos a mão que nos beije com o toque da apreciação. Que nos prove o travo de uma cultura ancestral e que se deixe embriagar pela doçura da nossa tradicionalidade.

 

Sirvo um copo de vinho.

 

Convido – como o meu avô, antes de mim e como os seus pais, antes dele – para que o bebam. Devagarinho. Provando o beijo do sol sobre as uvas. A gentileza calejada das mãos que as colhem. O toque firme dos pés que as pisam.

 

Para descobrirem, no sabor aveludado e silvestre, todas as nuances de uma história que não vem nos livros e que faz com que cada homem do campo seja, na verdade, um pilar do nosso Portugal.


Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

 

 

 

terça-feira, 20 de junho de 2023

As vossas histórias

 

 

Olá. Esta é a minha história. Era. Não é. Foi. Agora é a vossa. Desafio-vos a que tentem que não seja. Vossa. Mas é. Eu escrevi a minha história muitas vezes e vocês nunca a leram. Leram? Não! Não leram! Leram as vossas... Mas não se preocupem! Eu gosto mais dessa vossa história do que da minha. A minha não era para ser. E a vossa é. Eu escrevi uma e vocês deram-me milhares. Superam-me em todos os passos. Concluo que não gosto muito das coisas que eu escrevo. Mas gosto muito das coisas que vocês leem. E é por isso que escrevo as histórias que vocês criam. Adoro. Adoro. As vossas histórias.

 

 

Todo o autor quer. Dizer. “Era uma vez uma árvore”. Ser dono dessa vez que era. Mas essa vez são vezes. E a árvore, que era, quem sabe, um chorão no meio do rio com as folhas a beijar a corrente, é agora um carvalho, um pinheiro, uma azinheira. Nenhum poeta escreve florestas como um leitor. Ainda mais se o leitor for criança e criar, na imagem desse “Era uma vez uma árvore” uma que seja pinheiro selvagem e dê maçãs vermelhas envenenadas.

 

O texto é um lugar de não existência. Todo o autor imortal foi uma impressora de pensamentos que foram personagem na mente dos outros. Matamos todas as personagens quando as transcrevemos. E ela renasce sempre outra quando alguém a lê.

 

Toda a minha vida dedicada às palavras. Um compromisso que estabeleci aos seis. Uma troca justa, para que mais trinta houvesse. E para que desses trinta eu pudesse trazer imortalidades. Equivoquei-me com a ideia de que podia criar alguma coisa. Verti-me no papel e vi que todas as minhas palavras eram borrão de psicólogo, exibidos uma vez por sessão para garantir que nada demasiado obsceno sai dos olhos dos outros. Tento explicar que as palavras eram obscenas, antes de serem borrão. Que eram mórbidas, também. Esventrei sonhos e arranquei entranhas com as unhas enfiadas nos globos oculares da alma. Digo. Ninguém quer saber.

 

E vejo uma lágrima ser rio. Verto o mar todo numa poça de mijo de um cão vadio ao lado da roda de um trator agrícola citadino. Descrevo o smog que vira peste e pústula na pele. Sorvo o pus com as agulhas de arroz ... Ouço falar do belo. Desisto. Fico à espera que me digam que sou trevas. Digo que sim, mas vivo como se fosse trevo. À espera da sorte. Da morte.

 

Faço a contagem decrescente. E outros dizem parabéns. Gosto mais dos parabéns do que da contagem. Gosto mais da celebração do que do momento inevitável onde todos os possessivos padecem.

 

Não vou levar textos para o caixão. São todos vossos. Toda a minha vida dedicada às palavras. Para ser das palavras. Para que palavras me velem na hora da vela acesa. Cânticos com letras que escrevi. E são vossas. Poemas com versos que escrevi. E são vossos.

 

Não sei se tenho dentro órgãos sadios. Mas se tiver. São vossos.

 

 

Concluo que não gosto muito das coisas que eu escrevo. Mas gosto muito das coisas que vocês leem. E é por isso que escrevo as histórias que vocês criam. Adoro. Adoro. As vossas histórias. Adoro o pinheiro que dá maçãs envenenadas. Foi dele que arranquei a maçã que trinquei quando disse “quero ser escritora”.

 

A maçã rola pelo chão e para dramaticamente em frente aos meus olhos vítreos...

 

A maçã era dulcíssima!

 

Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

 

 

 

terça-feira, 13 de junho de 2023

Tudo o que sei sobre a vida

 


A pergunta, com algum sarcasmo, com algum escárnio, com alguma razão: mas que raio sabes tu sobre a vida? É um facto! Não sei muita coisa. 33 anos não chegam para saber muita coisa...

 


Nascemos e começamos a morrer. É isto que eu sei sobre a vida. As pessoas acham que nascemos e começamos a viver. Eu acho que viver, vivemos sempre. Nem toda a existência é humana. Mas quando o corpo miúdo rasga as entranhas das mulheres-herói que nos transportam no ventre, é para que inspiremos o ar, expulsando o mar dos pulmões, e comecemos a morrer, gota a gota.

 

Havemos de nos sentar em bancos de jardim e de andar de bicicleta por cidades povoadas de segredos. Havemos de dançar as danças infinitas de quem quer que o abraço chegue – como diz o Rui – até aos ossos. Encontraremos quem, dançando, nos entra no tutano. Ainda bem! Porque é aí que conheceremos o exclusivo tempo verbal do verbo gasto e o usaremos, de facto, mesmo que num silêncio pacato e nosso. Vestindo esse verbo que é peça de tamanho único, aprenderemos a olhar os dedos apontados das crianças para novidade do mundo, lembrando com saudade o tempo em que os olhos não tinham lentes-de-história-e-passado. Vestindo esse verbo, beijaremos a areia e inclinaremos o mar. Carregaremos, sobre os ombros, gente em vez de fardos.

 

O digital quer-nos fazer crer que a vida cabe em quadradinhos. Retangulozinhos. Mas a verdade é que é feita de círculos. A minha amiga Vanessa diz que foi num “círculo que encontrou um canto”. Eu encontro todos os meus cantos em círculos e gosto muito desta frase, em parte porque é genial... mas também por vir justamente de alguém que está no meu círculo e que me faz amar um bocadinho mais as dinâmicas circulares do mundo. Mas tudo o que não é círculo, é ciclo. E seguimos, repetindo padrões. Uns melhores. Outros piores. Lutando. Dando. Recebendo. Surgindo de quase nada e indo para o quase-nada que se dará à terra, sem nunca sermos outra coisa que não a “poeira de estrelas” que Sagan cantou no seu poema-ciência.

 

  Nascemos e começamos a morrer. Nesse caminho para a morte, se tivermos muita sorte, entenderemos que morrer é justamente o que dá valor à estrada e a todas as ervas que crescem na orla dos caminhos. Esse é o conhecimento que pesa no corpo. A aprendizagem que nos leva, da corrida infantil até à calma dos passos ponderados, apoiados na bengala, porque dois pés já não chegam para nos prender ao chão. Pesada, ela verga-nos o corpo em reverência, no entendimento de que a Natureza é mãe. Vamos baixando aos poucos, antes da hora de deitar e descansar no seu embalo. Parte intrínseca desse todo que é tudo.

 

Não sei muita coisa. 33 anos não chegam para saber muita coisa. 34, tão perto, também não vão chegar. Mas à pergunta - que raio sabes tu sobre a vida? – sinto que o desconhecido se consubstancia no verbo que não gastei, mas que me modela. Sei sobre a vida que há o círculo. E que ele importa. Que há o espaço dos outros. E ele importa. Que há lutas necessárias. E elas importam. Que há quem escolha andar connosco. E isso importa. Que vou morrer. E isso importa mais.

 

Que raio sei eu da vida?

 

Tão, tão pouco! E – talvez – tudo o que preciso de saber!


  Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

terça-feira, 6 de junho de 2023

Correiofobia

 


Eu costumava ter medo de aranhas. De largar a mão da minha mãe em espaços abertos. De ser queimada pelo fogo preso durante os espetáculos pirotécnicos. De me esquecer do nome ou da cara das pessoas.

 

Crescer deve ser isto.

 

Ter medo de abrir a caixa do correio.

 

 

 

Desço as escadas aos pulos. Literalmente. Hábito de criança que me ficou. Levo a chave em riste. Uma espécie de espada medieval, pequena e prateada. Cruzo-me com o vizinho do lado e os simpáticos cães. Digo um “boa tarde” corrido. E chego.

 

Frente a frente, encaramo-nos por alguns momentos. O silêncio impera. Há aquela musiquinha de suspense estilo Western Movie. Sei que nos vimos no final da semana passada. Há precisamente quatro dias atrás. Mas é a história do mundo. Tanto, tanto acontece em quatro dias. Aproximo-me. Há o avanço para o toque. Há o toque. O som. O ranger do metal (ou serão os meus dentes?). O vazio. O suspiro.

 

Sorrio. O vazio é o meu estado favorito no que diz respeito à correspondência. Na era do digital ninguém envia cartas a ninguém e, quando envia, é muito raro que seja algo que se queira ler. As nossas relações tórridas por correspondência são hoje para com as empresas dos serviços municipalizados, a segurança social, as finanças e a polícia. Em suma: contas, dívidas e multas. As empresas e o Estado são como aquele familiar que só nos fala quando é para pedir dinheiro.

 

Abrir o correio e não ter lá nada. Esta é a definição de alívio no século XXI. Porque vivemos numa era onde a vida assenta na tentativa e erro. E ai-de-nós que não consigamos entender o português clássico que ainda se usa nas diretivas para o pagamento de todas as dez mil obrigações mensais.

 

Nesta era de correiofobia, os consultores imobiliários são uma espécie de psicoterapeutas de panfleto. Uma sessão sempre que, a par com as ditas contas, dívidas e multas, aparece um papelinho a perguntar se estamos a pensar vender a nossa casa e o número a contactar. Oscila o olhar entre a brochura e as contas. Senhor, com o devido respeito, eu neste momento já estou a pensar vender o corpo às peças para transplantes no mercado negro.

 

 

Ninguém nos disse em crianças que iriamos ter medo do mundano. Também ninguém nos explicou que seriamos explorados até à exaustão e levados a cumprir um regime do impossível, com normas que beneficiam sempre os mesmos.

 

Comentei – num tom de quase-riso nervoso - que fico ansiosa ao abrir o correio. Disse isso a três pessoas diferentes. As três, unanimemente, me disseram que era “normal”.

 

Eu não acho normal. Não acho normal que a política do medo defina os dias. Que atos tão simples quanto abrir o correio causem ansiedade. Mas quem sou eu? As pessoas acham“normal”. Deve ser. É coisa de adulto, dizem.

 

 

 

Crescer deve ser isto.

 

Será que crescer é isto?

 

Gostava de respostas. Que cheguem por email ou comentário. Porque o correio stressa-me.


   Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu novo livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com