terça-feira, 26 de junho de 2018

Campo minado




As memórias são como minas terrestres.

E cada pegada é memória disso mesmo. Não eras o meu chão. Nem os meus pés. Talvez uma espécie da sapato.Com sola grossa e salto alto. Que me magoava e me torturava nos passos. Mas que, de alguma forma, também me engrandecia e fazia sentir mais bonita.

No campo minado de uma vida sem ti, meio deserta, meio arenosa, vou descobrindo que consigo andar. É verdade. Vou descobrindo que consigo correr. Vou descobrindo que consigo dançar. E é sempre num passo estável deste solo poeirento que descubro a força inevitável da decisão que é ser feliz.

Mas, de repente. Merda! De repente o pé assenta. Na memória. E explode tudo.

Pode ser pela agenda onde o teu nome ainda ondeia, em planos que não vão acontecer. Ou no estúpido do calendário que não sabe saltar do 5 para o 7. Ou no risotto de cogumelos e espargos que traz o teu sorriso pendurado no canto da panela.

De repente. O pé assenta na memória. Bang! Uma explosão que me arranca a alma e a dilacera. E uma nuvem de fumo que me deixa sem ar. Pedaços de mim por toda a parte. E vidro líquido, que escorre dos olhos e espelha passados.

As memórias são como minas terrestres.

Não existe passo que não seja incerto. Nem atalho que impeça os encontros. Está nas coisas mais pequenas. No elefante pousado no chão. No café matinal. No travo aveludado dos vinhos. No sabor do mar ao tocar a pele. Na posição adormecida que ainda entoa “agarra-me”. Na paisagem à porta de casa dos meus pais. “Não vás”.

O amor que acaba deixa de ser um campo florido e passa a ser um campo minado. Cada memória é uma mina terrestre. Quando se ama quem partiu, cada passo é risco de memória. É preciso ter cuidado com o local onde pomos os pés. Porque é a vida que nos pisa, quando tudo explode.

Não tenho medo de pensar em ti. Mas a recusa do sofrimento tem mais do que estradas de concreto. Assobiar melodias não apaga os perigos. E eles estão em todo o lado, porque, de alguma forma, durante muito tempo, reduzi os meus dias à ideia de nós. Esgotou-se o “nós” e fiquei eu. As memórias são como minas terrestres. E o caminho é longo.

Se podia parar? Podia. Mas eu nunca desisti de nada.
Não desisti de tentar.
Não desisti do amor.
Não desisti de ti.
E, certamente, não vou desistir de caminhar só porque a vida colocou no caminho recordações que se tornam explosivas com o som da tua desistência.

As memórias são como minas terrestres. O caminho é longo. Mas, se atrás deixo pegadas e sangue, faço-o pela possibilidade das memórias que ainda não criei.

Quem sabe. Talvez essas sejam flores.





*Imagem retirada da Internet



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quarta-feira, 20 de junho de 2018

Nuvens à espera



Estou farta de te ter colado à sola das minhas sapatilhas como se tivesse pisado uma pastilha elástica. Sinto que aprendi a andar sozinha. Sinto que aprendi que posso voar. E ainda me colas ao chão. Há jardins de insanidade por explorar nas nuvens. Deixa-me ir.

É uma sensação estranha, feita de uma palavra que pulsa digitalmente e nunca se transfigura em carinho concreto. Mas que me cola os olhos ao ecrã. Até amanhã. No hoje. E no bom dia que não é bom. Pulsa. Pisca. Olá. E as nuvens à espera.

Estou farta de te ter na distância segura de poderes voltar. Como se um passo de proximidade assustasse e um passo a mais te roubasse o fôlego. Meu menino, acorda. Eu não sou ar para ninguém. Nunca fui. Sou sufoco. Será que tens saudades do fôlego que te roubava? Daquele perdido em beijos intensos, por entre o suor e as palavras de desejo? Ou daquele que quase te roubou a alma e te fez esquecer quem eras? Eu não sou ar. Não me respires. E não me impeças de respirar. Deixa-me ir. Há sonhos por sonhar. Nas nuvens.

Demoras o olhar quando pensas que eu não noto. E eu finjo que não noto até não notar. Algures, de garrafas nas mãos, sorrimos o fresco de gargantas humedecidas e doces, porque a vida já pouco tem de sabor, embora esteja refrigerada no limite do congelamento. E constatas o óbvio. E eu rio do óbvio. E as nuvens passam com o vento. À medida que os ponteiros troçam. Não usas relógio. Eu também não. Parámos na ideia do amanhã. E já passaram dezenas de amanhãs. A piada óbvia deles, somos nós. E deve ter mais piada do que as tuas e as minhas. Essas das quais as nuvens fogem.

Estou farta de te amar. Estou farta de te amar sem poder dizer que te amo. Como se tivesse engolido silêncios e vácuos em cima dos sentimentos. E me engasgasse neles cada vez que abro a boca. São passos calados. Passos calejados. Com pés que me colam ao chão. E que não sonham já voar até às nuvens.

Faço compromissos comigo mesma e estou presa a ti. E não penso que estou presa a ti, porque tenho esse compromisso comigo. E ando às voltas da história eterna do que eu não sou. Olhando as nuvens. Fechando as asas. Eternas possibilidades. Que não o são. Não contigo colado a mim.
Estou farta. Farta de te ter colado, feito pastilha elástica, à sola das minhas sapatilhas. Deixa-me em paz.

Descalço-me. De ti. Despeço-me. De ti. Adeus. As nuvens estão à espera. 

(E nunca me abandonaram).





*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 12 de junho de 2018

A minha gata




Há uma presença na minha casa. Dá passos sofisticados e calmos. E passa despercebida a quem não sabe. Depressa se faz sombra num canto e desaparece. Depressa se deixa ficar adormecida num espaço qualquer ou se silencia, absorta, fixando o tudo e o nada, fora da janela. E tem sempre uma postura feliz. Seja na contemplação ou na brincadeira. Não fala e não escreve. Na maioria dos dias, simplesmente está e existe. Nesta simplicidade, ensinou-me muito sobre a vida.

Costumo sair cedo. Mais por hábito do que por obrigação. Deixo para trás uma taça cheia de água e outra com meia dose de comida. Despeço-me em voz alta, como se ela respondesse. E ela espreita-me, geralmente do quarto, girando a cabeça para o corredor e soltando um miado. Imagino que me diz “não vás”. E penso sempre que, no regresso, amuada e triste, por um qualquer tipo de despeito, me vai ignorar. Mas volto para ela. E ela espera-me à porta. Encosta-se às minhas pernas. E corre à minha frente, para onde quer que eu vá. Celebra a minha presença, incapaz de me guardar rancor pela ausência. E deita-se no meu colo, implora pelas minhas festas, devolve-as em lambidelas de lixa e com cabeçadas pontuais. Ela ensinou-me sobre o apego desinteressado. Sobre como receber alguém que se ama. Como cultivar afeto onde poderia haver ressentimento. E faz da minha casa um lar, cada vez que volto, à espera de encontrar paredes vazias e divisões silenciosas.

Eterna menina negra, ela não se deixa crescer. Dos brinquedos espalhados pela casa faz companheiros de viagem, que começam a ter nomes. E vai, desta forma, permitindo que me habitue a outros ritmos e outras vontades além da minha. Tropeçar em mini peluches e em collants rotos que ela não me deixou deitar fora torna-se comum na minha casa; tal como se torna frequente que eles me sejam depositados em cima das teclas do computador, para jogar “ao busca”. Tentei dizer-lhe que ela não é um cão. Mas ela não percebeu. Porque não conhece o preconceito nem os estereótipos. Quer apenas brincar “ao busca”. E, brincando com ela, eu aprendo que os rótulos são uma idiotice da nossa cultura.

Quando a vida atormenta, cansada e despida de energia, dou muitas vezes por mim a brindar a solidão com gotas de lágrima sobre a cama. Ou simplesmente no olhar seco sobre as paredes e as lombadas dos livros poeirentos. Talvez porque ouça muito mais do que fala ou porque se deixe sentir o outro e toda a sua energia, ela sabe quando eu não estou bem. E, logo ela, que me procura sempre por interesse próprio, seja para o carinho ou para a brincadeira, junta-se a mim apenas para dar, sem pedir nada. Traz todas as formas de ternura que conhece. Rodeia-me com os brinquedos dela, sem se mostrar interessada na brincadeira. Sobe-me para o colo e encosta a cabeça à minha. Ou simplesmente senta-se a meu lado, olhando para mim. E há mais entendimento do que dúvida nos seus olhos. Diz-me, sem qualquer palavra, que posso chorar ou não… mas que, de qualquer forma, não estou só. Com estas demonstrações de amizade, ela ensina-me que cuidar de alguém é simples.

Quando calha agitar-se, corre pela casa toda como se fugisse de assombrações, atira ao chão peças metálicas, entorna metade da água e mia em vários tons, volumes e intensidades. E não adianta dar-lhe mais água, mais comida, mais mimo. É um botão encravado no mio que só desliga quando ela quer. Certa vez, miei de volta e ela desapareceu durante meia hora. Foi também uma lição sobre como podemos ofender alguém se não conhecermos o seu idioma e não fizermos ideia do que estamos a dizer.

No final do dia, temo-nos uma à outra. Ela olha para mim como se tivesse sido um bom dia e faz-me sentir que o foi. Acabamos as duas relaxadamente a olhar para o nada. O pelo dela, entre os meus dedos, faz-me sentir que a suavidade da minha história ainda não terminou. Deitada aos meus pés, aquecendo o frio de um verão por chegar e de um sol que se apagou, ela mostra-me o toque da lealdade e do amor. E aprendo, com ela, que a felicidade se escolhe.

Do preto do seu pelo ao brilho da alma que eu sei que tem, não existe nada nela que me seja azar. Sinto, quando me espera à porta, que tenho uma razão para voltar para casa. E sinto, quando volto para casa, que a posso transformar num lar. É a minha companheira e a minha amiga. Torna-se família a meus olhos. Torna-se parte de mim. E, enquanto escrevo este texto, deitada no arranhador junto à janela, ela observa as árvores que se agitam. Não se importa com o vento frio deste Junho. Boceja e revira-se, olhando para mim. Faz um trejeito de miado que se perde a meio, num segundo bocejo, que termina com a língua e um dentinho de fora. Fecha os olhos com leveza. Tudo nela é tranquilidade. Ela ensina-me. Eu aceito aprender. Ser feliz é isto.





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terça-feira, 5 de junho de 2018

O meu erro




O meu erro nunca foi não ter amor. Foi ter um amor que não se esgota em ti. E tentar manter fechadas as asas e fingir que não era dona do céu e do meu destino.

O meu erro nunca foi o egoísmo. Foi dar-me demais e vezes demais, com uma intensidade que me tirava de mim. E precisar de me devolver a mim mesma ao final do dia, para tentar… ao menos tentar… sentir que sou gente.

O meu erro nunca foi não entender. Foi entender mais do que a realidade dos homens. Das mulheres. Dos humanos. Ver além do véu que separa o visível do oculto.

O meu erro nunca foi não mudar. Foi sempre a mudança, segundo a segundo, que se opera em mim, como se eu fosse duas, três, um milhão de pessoas distintas, dentro da mesma cabeça, cantando numa só alma.

O meu erro nunca foi a cobardia. Foi saber o que havia além das peças quebráveis que me tombavam das mãos e não ter medo dos cortes nem fingir que o tinha.

O meu erro nunca foi não saber falar. Foi conhecer a língua dos homens mas escolher a das árvores e falar no idioma das flores, por os achar mais justos e mais plenos.

O meu erro nunca foi a loucura. Foi sempre a sanidade encontrada nos meandros do incompreensível e nas esquinas da imperfeição. E o cuidado eterno pelo que não é linear e estanque. Pelo que é distinto, único, peculiar.

O meu erro nunca foi a falta de compreensão. Foi justamente as coisas que compreendia, mesmo sem saber, numa intuição tosca, modelada no centro do peito, qual plasticina.

O meu erro nunca foi o silêncio. Foi justamente estar cheia de palavras, metade das quais ninguém sabe, metade das quais ninguém pode entender.

O meu erro nunca foi não ser eu. Foi tentar pertencer-te, quando sei que pertenço à floresta.


O meu erro nunca foi um erro. Fui simplesmente eu. A ser eu. Como disseste que me querias.

Nem todas as mãos conseguem apanhar raios de luz.

Nem todos os corações conseguem abarcar raios de sombra.

O meu erro foi achar que tu conseguias.





*Imagem retirada da Internet



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