terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Mas era Natal



Ela caminhou pela rua com os pés descalços. A roupa, velha e rasgada, não bastava. O rosto, encardido e sujo, as mãos negras. Mas ela sorria. Com um brilho nos olhos. Com uma fascinação crescente na expressão alegre. Era a noite mais fria do ano. Mas também era Natal.
Caminhou pela cidade. As iluminações cativavam-na. Sentiu o estômago remoer, na memória longínqua da última refeição que fizera. Já não se lembrava quando. Fora naquele dia em que um senhor de sobretudo preto a tinha levado ao café. Afinal, era Natal.
Caminhou. Luzes amarelas e azuis. Vermelhas e verdes. Estrelas. Presépios. Presentes. Imagens sem fim, iluminadas, como estrelas, ao longo da rua. Sorriu, fascinada. Tinha fome e estava frio. Mas era Natal.
Passou por mil portas fechadas, bebendo do cheiro adocicado a amor e bolos. E imaginou, por segundos, que estava do outro lado, a comer e a sorrir. O pensamento bastou para que sorrisse. O que havia de fazer? Era Natal!
Passou as mãos pelos braços, esfregando-os para se aquecer, enquanto caminhava, vendo a névoa da sua respiração aparecer e desaparecer. As ruas estavam desertas. Quem havia de as povoar? Era a noite de Natal!
Cansada, nos seus passos de menina, nos seus passos de criança, procurou refúgio num beco entre duas casas. A saída de ar de uma velha pastelaria fazia-a sentir menos frio. O cheiro, ainda presente, do pão, fazia-a sentir-se mais saciada. "Um presente de Natal", pensou para si.
E, de alguma maneira, entre presentes e afagos, entre comidas abundantes e risos de lágrimas nos olhos, milhões de crianças não souberam que era Natal. Mas ela soube e sorriu.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Este amor


Sou casada com a esperança e enamorei-me pela ideia da felicidade. Este é um amor que ninguém pode vencer. É maior do que tudo e todos. É maior do que a vida.
Gosto da felicidade assim: rabugenta e difícil, a pedir-me a luta constante, em remates desiguais, feitos numa luta que, à primeira vista, não pode ser vencida. Gosto da felicidade perto e longe. Do caminho que me leva até ela. Do tempo que a traz até mim.
Mas é a esperança que fica, quando a felicidade vai embora. E é por isso que escolho viver com ela, todos os dias. Foi por isso que troquei com ela alianças de poeira e ouro branco. Foi por isso que, sob o olhar assertivo dos Deuses, lhe disse que sim.
Este triângulo amoroso funciona. A esperança sabe que amo a felicidade, a felicidade sabe que, sempre que se vai, a esperança fica. E ambas me aquecem pelos dias frios e as noites intermináveis, como se se ignorassem uma à outra ou como se também se amassem.
Sou casada com a esperança. Todos os dias de manhã, ela me acorda com um abanão suave e me diz: "Tem força, hoje vai ser melhor.". E, se eu não respondo ou choro, ela acrescenta, no tom maternal de uma anciã: "Ela há-de vir, a felicidade há-de vir".
E eu levanto-me de um pulo para abraçar a esperança, para lhe dizer que acredito nela e a amo, apesar de tudo. Ela sorri e agarra-me. Um abraço que me segue aonde eu for, que me protege do que quer que venha.
Às vezes é verdade. Outras vezes é mentira. Nem sempre a esperança tem razão. Há dias em que a felicidade adentra o quarto e me ilumina. Há dias em que ela não passa sequer à minha porta. Mas a esperança insiste, ao longo do dia, "trabalha, sorri, ela há-de vir". E eu, menina tonta, continuo a acreditar. Ela virá. Ela acabará por vir. Um dia, ela irá morar comigo e com a esperança para que todas estejamos bem.
Este amor. Este amor pelo futuro que ainda não chegou é a minha dádiva. Este amor pela esperança. Este amor pela felicidade. Ninguém gosta de estar triste. Mas, por vezes, quando a felicidade não vem, basta saber que estamos a caminhar para ela. E vale a pena ser triste com a esperança, mesmo que ela esteja errada e a felicidade não chegue jamais. Porque, enquanto a esperança me acordar de manhã dizendo "Ela há-de vir", uma parte de mim irá esboçar um sorriso e ser secretamente feliz, na espera do melhor de amanhã.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Por entre os dedos



Fugiste-me por entre os dedos entreabertos das mãos vazias e deixaste a culpa atrás de ti para eu poder sufocar sozinha no mar da pergunta sólida "onde foi que eu errei?".
Fugiste-me por entre os dedos e levaste nos bolsos tudo o que ainda importava. O meu amor, o meu sentimento e uns quantos feitiços  de céu que invocava apenas para que jamais caísses ao chão.
Então, tropeçaste nos medos e caíste nas desilusões. É o que acontece quando afastamos quem realmente se importa...
Vieram as palavras. Palavras feridas, caladas num silêncio que dói mais do que a pior das discussões. E, subitamente, a culpa era minha. A culpa era dos meus dedos entreabertos que te deixaram fugir.
Mas não! Desta vez, a culpa não foi minha. Desta vez a culpa não foi da minha insensatez. Se fugiste por entre os meus dedos foi porque não entendeste que devias ter preenchido esses espaços com os teus.
Fugiste-me por entre os dedos. E a culpa foi somente tua porque não me deste a mão.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Estás aí?



Estás desse lado. Eu sei que estás. Estás à minha espera. À minha procura. E, quando te perguntam porque estás só, respondes, com um meio sorriso "porque a solidão é uma estrada e ela é a minha meta".
Estás desse lado. Oculto por um mar de impossibilidades que nunca muda a maré para facilitar o encontro. Oculto por paredes de hera e contratempo. Com uma espada de fé erguida, caminhando em passos gastos na minha direcção.
Passo a passo. Um atrás do outro. Procuras e não me encontras por entre cidades cheias de gente vazia. Por entre desertos sem oásis nem alucinações. E desesperas um pouco mais a cada dia. Desesperas porque sabes que eu existo e não sabes onde estou. Porque sabes que, do outro lado, eu estou à tua procura sem saber onde tu estás.
Estamos perdidos, tu e eu. Amantes que nunca se viram e sempre se amaram, à espera do que todos dizem que é ilusão. Chamam-te louco? A  mim chamavam. Chamaram-me louca, enquanto se importaram. Mas já não se importam. Já não querem saber. Dizem que me perdi, que me dei, que me entreguei a uma ilusão. Mas não és ilusão, pois não? Estás desse lado, à minha procura, a tentar explicar às pessoas que a maior loucura de todas seria não procurares por mim.
Não desistas, por favor. Eu estou aqui. Estou aqui à tua espera. E, quando me perguntam, digo apenas que quero o horizonte que chega com os teus passos cansados.
Estás desse lado. Eu sei que estás. Estás à minha espera. À minha procura. E trazes junto ao peito uma imagem de mim que ainda não sou eu. Mas serei eu, um dia. Quando entenderes que essa imagem sem rosto tem os meus olhos e os meus lábios. Quando entenderes que não poderias amar mais ninguém.
Estás aí. Ninguém sabe mas eu sei. Estás à minha espera, à minha procura, curioso por saber se, deste lado, eu também espero por ti. E estás impaciente. Como se o era uma vez fosse longo demais e a história tardasse para acontecer. Mas acredita: ela vai acontecer. Porque, desse lado, estás à minha procura e, deste lado, eu espero por ti.
Estás desse lado. Não estás? Estás à minha procura? Estás à minha espera? Por favor... não deixes a resposta vazia ecoar no silêncio. Estás aí, não estás?

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet (autoria de Renata Pineze)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Em confidência



- Podem chamar poeirentas às minhas esquinas e fáceis às minhas conquistas. Eles nunca saberão, nunca sonharão o que me faz ser como sou!
A voz dele estava repleta de agonia. O rosto dele vinha marcado das lágrimas por verter. As mãos, velhas e enrugadas, tinham os jeitos de quem sabe que segurar uma cerveja entre os dedos não iria sarar a alma.
- Podem chamar o que quiserem, meu velho amigo. Podem dizer que as minhas decisões foram erradas. Não importa. Não importa.
Não dormia há dias. Podia dizer isso pelo arrastar das palavras, pelos silêncios mortos no centro das frases. Podia dizer isso pelo olhar cego, desvairado e intocável, rodeado de negro.
E continuou, de olhos loucos e perdidos nas bolhas quase inexistentes da bebida, num choro seco que doía.
- Ela ficou ali, sabes?  De joelhos no chão, a implorar. Mas ela não vê. Ela não sabe. Ela não pode saber. E, no topo das escadas, o choro. Aquele choro de inocência. Sem palavra. Sem mais do que um olhar a questionar. E eu saí. Eu saí. Eu saí como se o choro delas não importasse.
Deu um murro na mesa. A madeira gasta rangeu e ele cerrou os punhos. As veias, salientes e escuras surgiram, como se as palavras não bastassem.
- Elas ficaram ali, como se eu estivesse lá antes. Como se eu não tivesse posto o trabalho em primeiro lugar. Como se eu não tivesse perdido aniversários, Natais, primeiros passos e palavras. Elas choraram como se, antes de partir, eu tivesse estado lá.
A mágoa na voz adensou, à medida que o olhar escurecia, mais e mais, numa falsa tentativa de desapego.
- Nem uma foto, acreditas? Lá estão elas, as duas, sorrindo. Mas eu não. Onde estava o pai? Onde estava o marido? E elas choraram como se eu tivesse sido perfeito. Imploraram como se a minha ausência pudesse aumentar, como se a minha ausência ainda pudesse feri-las. Eles não sabem. Eles nunca sonharão o que me faz ser como sou.
Olhou para mim, finalmente, afastando o copo da cerveja com as pontas dos dedos encardidos pelo tabaco.
- Eu saí porque nunca estive. Sou um lugar vazio à mesa porque nunca dei graças. Sou o fantasma da fotografia porque nunca cheguei a tempo. Sou a pessoa mais infeliz do mundo porque virei costas e parti. E agora? Agora ele está lá. A chamar poeirentas às minhas esquinas e fáceis às minhas conquistas. A chamar erradas às minhas escolhas. A beijar a minha mulher. A embalar a minha filha. E eu estou aqui. Num bar. A beber até cair e a fumar até mal poder respirar. E não vou voltar. Porque elas estão lá, com ele, a sorrir, a tirar fotografias a três, a comer à mesa juntamente com ele. E estão a sorrir. Estão a sorrir porque eu saí para dar espaço ao sorriso. E, acredita em mim, foi a única coisa decente que algum dia eu fiz por elas.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Sombra


Não quero que sejas como eu. Não quero que vivas como eu vivo. Não quero que sigas os meus passos, que uses os meus gestos ou as minhas expressões. Não quero que penses como eu penso nem que acredites nas coisas em que eu acredito tão profundamente. É isso mesmo. Não quero que sejas igual a mim!
Não quero que te curves aos mesmos Deuses nem que sigas os mesmos trilhos. Não poderia amar jamais alguém que me seguisse aonde eu fosse sem perguntas, sem dizer "chega" aos meus exageros e sem erguer a voz aos meus erros. Não poderia aceitar alguém que me desse razão a todo o momento. Por isso, se há uma regra a regra é esta. Não quero que sejas como eu.
As pedras da calçada conhecem os meus passos. Sabem que eles não são sempre certos e que, por vezes, escorrego e caio nas curvas desta estrada que é a vida. As pedras da calçada sabem que eu firmo as mãos e me levanto sozinha. Elas sabem que eu sou desastrada mas forte. Elas sabem que eu consigo viver por mim.
Tu não és uma pedra da calçada. Não sabes quem sou. Não sabes a força que tenho para me levantar nem sabes que jamais aceitaria uma vida sem quedas. É isso que me torna humana. Às vezes é preciso que doa. Às vezes é preciso que o coração sangre para acordar mais forte, no dia que vem a seguir.
Não quero que sejas como eu. Que me imites os movimentos dançados, que sorrias quando estás triste. Não quero que te sentes à frente do papel branco e descarregues nele as angústias por achares que ninguém entende. Não quero que penses, para ti, que a vida é a página em branco que fica a seguir àquela que já foi escrita, riscada, amarrotada e atirada para o cesto do lixo.
Se te amar, acredita, vai ser porque tu és diferente de mim. Porque és uma peça que me falta. Uma confiança que não tenho. Um riso que não sai por entre as lágrimas. Se te amar, vai ser porque vou saber, de olhar para ti, se estás bem ou mal, feliz ou triste. Nunca, jamais poderia amar alguém igual a mim.
Acredita. Não quero quem me siga. Quero quem me complete. Não quero quem concorde comigo. Quero quem me chame à razão. Não quero quem se cale com medo de me magoar. Quero quem me grite motivos e razões. Não quero quem esteja nos bons momentos para desaparecer nos maus. Quero quem esteja sempre lá, concordando ou não, para me segurar nas quedas ou simplesmente dizer "eu avisei". Para seguir comigo, concordar comigo, agir como eu e desaparecer nos momentos de escuridão, eu já tenho a minha sombra. Esteve ali a vida toda, a imitar-me cada movimento, a seguir-me por cada caminho. Ela é exactamente como eu e eu nunca me apaixonei por ela.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Temas



O vento nas árvores. A história da menina que cresceu. O horizonte. Os contos de fadas. O mar distante. A tristeza e o medo. O que fica depois da última página do livro. É esta a minha forma de falar de amor. É esta a minha forma de escrever a vida.
Não é um tema só. São mil temas, rondando o que considero ser o pilar central de tudo o que acontece no Mundo. Não é só tristeza e amor. É a vida contada em memórias de tristeza e na esperança de um amor. De um novo amor. De um velho amor. Mas de amor, qualquer que seja a sua forma.
Sim. Eu escrevo sobre amor. Sobre o que o amor fez. Sobre o que ele faz. Sobre as coisas que ele trará, se o destino for um vento favorável e a maré não me derrubar. Escrevo sobre o amor porque é ele que me rege. Porque é nele que me revejo e me encontro. É nele que eu me conheço.
Acusam-me muitas vezes de acreditar em contos de fadas. E têm razão. Acredito! Porque posso acreditar no que eu quiser e escolho acreditar no que é belo. Não vou fechar os olhos ao que não se vê, só porque alguns não querem vê-lo. Não vou negar a mim mesma o sonho. E vocês? Quantos de vocês não acreditam em contos de fadas?
O vento nas árvores. A história da menina que cresceu. O horizonte. Os contos de fadas. O mar distante. A tristeza e o medo. O que fica depois da última página do livro. É esta a minha forma de falar de amor… a minha forma de escrever a vida. Mas não se trata do meu amor e da minha vida. Trata-se de um amor maior e de uma vida comum que me sai dos dedos e quer tocar cada pessoa de uma ou outra forma.
É também o vosso amor e a vossa vida. São também os vossos pensamentos e as vossas formas de sentir. E, porque os textos têm vida própria, eles são a minha esperança no mundo, entregue e aberta, à espera que escolham sonhar comigo.
E sim, são sobre o amor. Muitas vezes sobre a tristeza. Muitas vezes sobre o desgosto e o medo. Mas nem sempre tristes. Porque, no fundo, as palavras são um refúgio universal e, por mais tristes que os textos pareçam, aos olhos de quem está feliz, para um mundo feito de contrariedades e injustiças, eles falam apenas da realidade sonhada de uma menina que sabe a verdade mas escolhe viver de fantasia.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Respira fundo



Respira fundo. O mundo vai ser injusto, por vezes. A vida é mesmo assim. Ninguém pode entrar nela sem esperar sofrer um pouco. Ninguém pode evitar os contratempos. Ninguém pode contornar as barreiras que aparecem no caminho.
Mas respira fundo. Porque podes saltar cada barreira e correr rumo à felicidade que mereces. As pessoas não são definidas pelos erros nem pelas desilusões. São definidas pela alma que se mantém firme e real, mesmo quando o mundo aponta o dedo ou pisa, sem razão.
Respira fundo e fecha os olhos. Tudo o que precisas de ver está dentro de ti. Por isso procura. Procura essa dimensão de ti que te dá razão sobre o que quer que venha. Procura a parte de ti que te torna superior às injustiças. Tenho a certeza de que encontrarás dentro de ti a peça chave que te torna maior do que as maiores coisas.
Não duvido nem por um segundo. Não duvido nem que me apresentem as mil justificativas que comprovam teses diferentes da minha. Não duvido que sejas mais e melhor do que as injustiças com as quais tecem as histórias que circulam por entre os Universos de mesquinhez. E não importa o que ninguém diga. Não importa o que ninguém pense. Sei, porque o sinto, que a vida é somente a tela na qual pintamos a história. E a história não é um ponto de vista. A história é a complexidade do que fica além do que uma ou outra pessoa vê em nós.
Respira fundo. Respira fundo e ouve a tua própria voz. Deixa que ela se erga, completa e inquebrável. E ouve-te a ti. A minha voz, só mais uma por entre tantas vozes, também não importa. Ignora-a. É a tua própria voz que tens de ouvir.
Então, faz assim: respira fundo e respeita o que essa voz te disser. Respeita-a além de tudo, apesar de tudo e independentemente de tudo. O mundo vai ser injusto. Mas a tua alma e o teu coração, mesmo que te digam coisas duras de ouvir, serão simplesmente reais. Ouve o que eles têm a dizer...
Respira fundo. O mundo é mesquinho e as pessoas, por vezes, ridículas e injustas. Mas respira fundo e segue. Ouve a tua própria voz. E nunca, por nunca ser, deixes de tentar ser feliz. 

Marina Ferraz


*Imagem retirada da Internet (autoria de Paulo Freiras)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Um sorriso



Ela entrou na sala. Trazia uma saia azul escura e uma camisola branca, já meio gasta do uso. À primeira vista não era diferente de ninguém. O cabelo louro esvoaçava-lhe nos passos e o corpo de bailarina dançava levemente, por si só, com a naturalidade óbvia de quem não o faz por querer. À primeira vista era apenas mais uma, como tantas. À primeira vista não passava de uma menina bonita, demasiado nova para saber o que é o sofrimento, demasiado velha para ser chamada de criança. Mas, então, ela sorriu. Um sorriso aberto, num semicerrar de olhos. E o meu mundo iluminou-se.
 Não é uma história muito longa. É simplesmente um momento, captado na memória, qual fotografia. É a história do sorriso que marcou uma vida. A minha vida. A história de como uma menina se tornou eternamente parte do meu coração e me move, sem esforço, na direção do para sempre.
Ela entrou na sala. Foi tão simples como um passo que a pôs ao alcance dos meus olhos. Tão natural como uma brisa de Primavera a agitar as folhas das árvores. Mas bastou. Bastou isso para me fazer sorrir. Bastou isso para apagar as mágoas e me dar um pouco de paz.
É a mais pura das verdades: à primeira vista ela é apenas mais uma menina. À primeira vista é a criança loura, de olhos azul esverdeados e passos dançantes. Mas eu parei para olhar melhor e descobri a verdade. Ela é o sorriso atrás das lágrimas. A fé no fim da esperança. A luz por entre as trevas. A mão que nos segura na beira do abismo. Ela é a segurança entre os medos. A força nos momentos de desespero. O abraço quando chega a solidão.
Ela entrou na sala. Caminhou em passos dançados. Sorriu-me. Arrebatou-me. E mesmo que, à primeira vista, ela seja apenas uma menina, para mim ela é perfeita. Então, encho-me de luz e de carinho e abraço-a, como se os meus braços pudessem criar uma muralha e protegê-la a vida inteira. Como se num abraço a pudesse salvar de tudo. Mas fica sempre aquela pontinha de certeza que se alastra no peito, qual veneno bom: poderei não ser capaz de a proteger de todos os males do mundo mas ela protege-me a mim e, entrando na sala a sorrir, sem sequer o saber, ela salva-me a vida todos os dias.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 20 de outubro de 2012

A minha história



Se um dia alguém contasse a minha história, traço a traço, sem mentiras, sem nuances cor-de-rosa, então a minha história não seria uma história para todos. Seria um romance daqueles que ficam num canto poeirento da livraria porque ninguém compra o que não compreende.

Se um dia alguém contasse a minha história, diria talvez que fui a princesa da gaiola dourada, educada para ser tudo o que não fui, criada para seguir todos os trilhos que não segui.

Diriam, talvez, que sonhei demais, amei demais, chorei demais. Diriam que a minha vida foi feita na suavidade do exagero. Que nunca aprendi a viver de meios termos ou meios amores. Diriam que isso me matou, no alvorecer de uma Primavera e que tudo o que veio depois foi fragmento de uma morte em vida.

Se um dia contassem a minha história, a verdade da minha história, diriam que me apaixonei pela dor e que lhe dediquei, não só mil poemas, mas também a vida. Diriam que fugi, em encontros com o acaso, uma ou outra vez, para me perder nos braços da felicidade. Diriam que a felicidade fugia de mim, que eu fugia dessa fuga e que, por entre os becos do desencontro, acabámos por nunca passar muito tempo juntas.

Se um dia alguém contasse a minha história, traço a traço, sem mentiras, a minha história não seria sobre uma menina sonhadora, nem sobre uma mulher que a vida tornou forte. Esse romance versaria sobre as minhas mãos. As mãos que um dia pararam para escrever e para acarinharem as parcas pessoas que me conquistaram. Esse romance contaria que as minhas mãos se fecharam noutras mãos, que limparam lágrimas de rostos tristes e que se ergueram aos céus para invocar poderes maiores do que aqueles que a maioria entende. Contaria que as minhas mãos cruas e cruéis se fecharam em punho contra paredes de mágoa e lutaram mil batalhas apenas para perderem a guerra. Esse romance diria que as minhas mãos seguraram o meu coração na ponta da caneta e que isso me fez quem fui.

A minha história não seria para todos. E por isso não será escrita. Não será contada. Ninguém a saberá. Mas eu vou dizer-vos um segredo. Sim, eu sou escritora e falo muito sobre dor. Posso dizer que passei a minha vida a fazer isso mesmo: a dissecar cada pedacinho de sofrimento e a escrever sobre ele obsessivamente. Mas isso não significa que não dói! Significa apenas que as palavras, mesmo as mais duras, continuam a doer menos do que o silêncio. E que, talvez por fraqueza, não sou capaz de dar a mim mesma esses silêncios de papel. Então escrevo, por mais que doa!

Essa dor não é entendida e não fará parte de um romance sobre mim ou as minhas mãos. Essa dor vai viver comigo. Caminhar pelos meus dedos irrequietos e dormentes. Virar poesia e prosa. E, quando o tempo for certo, essa dor vai partilhar comigo a morte e vai voar pelo vento sobre uma ferida de pedra que contará, em silêncio, esta história pela eternidade…


Marina Ferraz
*Imagem retirada da  Internet

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Gaivota



Voa, gaivota, ao redor da minha ferida. O meu veleiro naufragou. As ondas engoliram a esperança alada do horizonte. Olhando, há apenas nevoeiro. Mas voa, gaivota.
Voa sobre o penedo da solidão escarpada. Sobre a areia do meu choro amargo. Sobre a solidão de mais um amanhã vazio.
Voa sobre o meu corpo de terra despida. Sobre as nuvens do meu olhar, onde há dilúvios sem fim à vista.
Voa, gaivota. Circunda no teu voo a ausência de mim. A ausência que é ser corpo sem alma a vaguear por desertos de vento. Voa dentro do meu peito, planando no sopro frio de uma morte que tarda. Mas voa, gaivota.
Voa, gaivota, junto às palavras que se sucedem e às ilusões que ficam intactas em mim. Voa na incerteza dos meus passos. Voa sobre a decadência da minha vontade, sobre a incoerência do meu pensamento.
Voa, gaivota. Sobrevoa o mundo. Este mundo que me destruiu até eu não ser mais do que um fantasma de mim. Este mundo que me atirou ao chão e me obrigou a cair tão fundo de costas direitas e rosto erguido. Voa sobre os vales e as praias. Sobre as casas imundas e as pessoas vazias e cinzentas. Voa.
Voa gaivota. Pescadores vão dizer que és presságio de chuva. Meninas apaixonadas vão sorrir ao ver-te em voo raso no caminho para casa. Milhares de pessoas vão passar indiferentes à tua dança eterna.
Mas voa, gaivota. Voa. Voa alto. Voa bem. Voa dentro deste peito quebrado. E, quando vier a tempestade e eu chorar, deixa as asas repousarem de mansinho no centro deste coração despenhado que, entre o desespero da vida e a ânsia da morte, tem apenas como certo o destino. Um destino de pedra e prata que lhe diz que, ao contrário de ti, ele nunca mais vai voar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Pessoas




As pessoas vão dizer-te que não és capaz. Que te falta alguma coisa. Que não basta. Que há um milhão de pessoas no mundo iguais a ti. Melhores do que tu. Mais focadas, mais exigentes consigo mesmas, mais perfeitas.

As pessoas vão dizer-te que nasceste no país errado. No continente errado. No mundo errado. Que não podes escalar as hierarquias nem definir outras regras. Que tens de te conformar com a realidade. Vão usar as palavras “acorda” e “põe os pés na terra”, como se acordar fosse bom e ter os pés na terra implique que não possas ter a cabeça num mundo de sonhos.

As pessoas vão empurrar-te de opinião em opinião. Vão atirar-te de regra em regra. Vão arrastar-te pelo chão rugoso das suas próprias vontades.

Não duvides. As pessoas vão magoar-te, usar-te, torturar-te. Vão tentar matar-te os sonhos, o sorriso, a vontade de lutar. E tu vais chorar, gritar, resmungar aos ventos a injustiça da vida, como se ela não fosse óbvia e inevitável.

Entende: o mundo não existe numa realidade só. O mundo tem milhões de olhares. Milhões de pensamentos. E todos eles um dia sentiram a injustiça. Todos eles um dia sentiram a dor. Talvez não a mesma dor que tu ou o mesmo sentido de errado, mas uma dor tão válida como a tua.

Por isso, as pessoas vão dizer-te para acordares do sonho e viveres a realidade. Tu não as vais entender. Algumas farão isso por maldade, por inveja, por necessidade de se sentirem superiores. Outras estarão apenas a tentar proteger-te da frieza do mundo, dizendo-te, de forma dura e directa, as lições que aprenderam à custa de muitas quedas. E todas essas pessoas vão soar cruéis aos teus ouvidos. Perceberás com o tempo que dói de pior forma quando as palavras proferidas são ditas por quem se ama mais.

As pessoas. Esses bichos de florestas de betão, sem outro Deus que não a ciência, sem outro sonho que não o dinheiro. As pessoas. Essas vítimas que nasceram por entre as outras e perderam sonhos mais válidos pelo caminho. As pessoas vão dizer-te para cresceres e entenderes que não podes ser quem queres, como queres, aonde queres.

Eu não posso proteger-te das palavras. Não posso dizer-te que não vais ouvir discursos de eternidade sobre o abismo. Não posso prometer que não vais cair no erro de te quedares nas opiniões alheias. Mas deixo-te isto: vou sonhar contigo, enquanto sonhares. Acreditar contigo, enquanto acreditares. Estar lá para te dizer que também caí na crueldade da vida e que isso não me afastou da convicção de que desejar algo é o primeiro passo.

As pessoas vão magoar-te. Vão usar balas de palavras, de desprezo, de autoridade. E, embora eu não possa mudar isto, posso prometer-te que, venha o que vier, eu não serei uma dessas pessoas.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Copo de água



Para o meu avô

A noite caía e, sentada sobre a cama, a menina chamava. Tinha os caracóis revoltos caídos pelo rosto e o jeito certo de quem julga saber tudo sobre o mundo e a vida. A certeza errada de que teria cinco ou seis anos para sempre e de que jamais deixaria de poder chamar por alguém, durante a noite, fosse por que motivo fosse.
A noite caía e a luz desligava-se sempre dois segundos antes da menina gritar, a plenos pulmões. “Trazes-me um copo de água?” E ouviam-se os passos, no corredor, sempre certos e convictos, carregando muito mais amor do que água dentro do copo. E, com o copo de amor, vinha um sorriso de verdade e um beijo de boa noite.
Então, em matando a sede de água e de carinho, a menina deixava a cabeça cair na almofada e dormia. O amanhã era a promessa de todas as coisas. A promessa de muitos copos com água, trazidos em bandejas de sorriso.
Houve muitos dias e muitas noites feitos em pedidos e em copos de água. E muito mais sorrisos entregues com a simpatia de um semicerrar de olhos. Mas as noites sucedem-se e as meninas crescem, para aprenderem que, um dia, não poderão gritar para pedir um copo de água antes de dormir.
Eu sei que já não sou essa menina. Sei-o bem. Mas, mesmo assim, quando a noite cai, ainda me sento na cama e fecho os olhos, para acordar a memória desse tempo em que podia gritar por alguém. Fecho os olhos para orar por um futuro no qual a minha alma seja livre de encontrar a alma de quem partiu. Fecho os olhos para ver, na escuridão do pensamento, o rosto que sorria ao entregar-me um copo de água e muitas medidas de amor incondicional.
“Trazes-me um copo de água?”. A pergunta fica no ar. Sem resposta. Sem passos no corredor. Sem um beijo de boa noite. Mas estás aqui. Mesmo sem me trazeres um copo com água. Mesmo sem entrares pela porta com um sorriso. Estás aqui porque, todas as noites, eu finjo, para mim mesma, que sou criança outra vez. E, na minha imaginação, entras pela porta do meu pensamento e preenches a saudade com mais um copo de amor. E é esse copo inventado que me adormece na ilusão de que nem a morte te pôde roubar de mim.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 22 de setembro de 2012

Seis



Seis. Seis olhos cansados. Os meus, os da minha alma e os do meu coração. Seis olhos cansados de verem a verdade e de se iludirem com as cores mais ténues da fantasia.
Seis. Seis mãos cansadas. As minhas, as das minhas dúvidas e as das minhas ilusões. Seis mãos que querem dar-se a outras mãos mas se mantém abertas, recebendo a esmola dos tempos, como se bastasse.
Seis. Seis sentidos abertos e profundos. Cada um deles atento e indiferente. Ver, ouvir, sentir, cheirar, saborear e saber. Saber profundamente o desfecho de histórias sem começo, no silêncio imediato de quem mede a vida sem pesos e medidas definidos.
Seis. Seis vidas cruzadas por duas pessoas em mil momentos. Seis crenças a rasgar a alma onde se acumulam seis eternidades cruas.
Seis. Seis respirações descompassadas em seis batidas fúteis do coração que só o coração não nota.
Fecho os olhos. Fecho os olhos à batida certeira do relógio no passar das seis. Fecho os olhos e sussurro baixinho palavras que ninguém vai ouvir. Que ninguém ouviria, ainda que gritasse.
Seis. Porque é seis o primeiro dos números perfeitos e eu preciso de algo perfeito nesta vida de desilusões incontáveis.
Seis. Seis olhos que se fecham. Os meus. Os da minha alma. Os do meu coração. Seis olhos que se fecham para desejar que as coisas mudem... ou para não abrirem mais.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

domingo, 16 de setembro de 2012

Primeiro dia



O primeiro dia é um dia igual aos outros. Talvez se imagine que seja um dia de sol. Talvez se imagine que o mar vai clarear e ganhar três tons distintos. Talvez julguemos que, nesse dia, vamos correr serras e prados ou descalçar os pés na areia e receber o toque do mar. Mas não. O primeiro dia é um dia igual aos outros.
Dar o coração pela primeira vez a alguém não pesa. Quem nunca sofreu por amor não teme a conclusão abrupta nem o inferno de uma separação precoce. Então, o primeiro dia é como todos os outros dias, só que, sendo o dia onde nasce o primeiro amor, um coração foge do peito de alguém e o nosso destino passa a ser carregado nas mãos de outra pessoa.
São sorrisos e flores. Saltos e gritos. Histórias e momentos. Talvez se imagine que vá ser o melhor dia da vida de alguém ou o principio inabalável de um "para sempre". Mas, de alguma maneira, o primeiro dia em que amamos é só mais um dia para guardar no meio de tantos outros dias.
Ainda assim, para alguns românticos, o primeiro dia é eterno. E a data, nunca guardada em agendas ou calendários, perpetua-se na memória e estende-se aos cantos mais loucos da imaginação.
Depois, nesse mesmo dia, todos os anos, o lugar vazio onde um dia tivemos um coração que podíamos chamar de "nosso", dói um pouquinho na ausência de quem tanto o fez bater.
E, embora seja um dia igual aos outros, olhamos para as fotografias, apenas para descobrirmos que, nesse dia, o primeiro dia, o sol brilhava e o mar clareou a ponto de ganhar três tons distintos. E que corremos por serras e prados, molhámos os pés na água gelada do oceano, fomos felizes. Mas não é isso que torna o primeiro dia diferente dos outros dias. O que o torna diferente é que, mesmo que os anos tenham corrido, pensar nele ainda nos arranca um sorriso.
O primeiro dia em que damos o coração é um dia igual aos outros. Um dia que poderá acontecer a qualquer momento, para qualquer pessoa. Mas, de uma forma inexplicável, o primeiro dia marca um momento único: o momento em que, por forças maiores do que os homens, a nossa vida passou a ser vivida por alguém.
O primeiro dia é um dia igual aos outros, sim. Só que ao contrário de todos os outros, também é um dia que se repete em nós todos os dias.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

sábado, 8 de setembro de 2012

Pormenores



Para o meu irmão

São pormenores. A maneira como pousas o braço sobre os meus ombros ou como me despenteias de propósito, em tom de brincadeira. As conversas sobre tudo e nada. A apresentação deste livro ou daquele programa que achas que poderei gostar.
São pormenores. Quando páras e olhas para mim com orgulho. Quando me aborreces por horas para me explicares que estou errada relativamente a algo e como, no fim de me fazeres chorar com as palavras duras que eu precisava de ouvir, abres um sorriso e me convidas para um café.
São pormenores. A forma como me defendes quando alguém me ataca ou diz mal de mim. O interesse que tens pelas pequenas coisas que eu faço. A tua felicidade nas minhas vitórias e o teu incentivo para eu continuar sempre.
São pormenores. O teu sorriso, de olhar pousado no vazio. A forma como seguras o cigarro entre os dedos e conversas por horas sem sequer te lembrares de o acender, como se até os vícios fossem secundários quando estás comigo.
São pormenores. O olhar atento, o pensamento distante, o sorriso que é capa e carapaça mas, ainda assim, também é verdade. A força, o discernimento, a luta constante contra o que julgas que está errado no Mundo.
São pormenores. A maneira interessada mas ausente como abres o jornal, o entusiasmo com que falas de jogos novos e te envolves nos interesses mais profundos da política e economia, como se soubesses um pouco de tudo. A forma como me deixas entrar nos espaços recônditos das tuas piores memórias e, ao mesmo tempo, me dás esperança num futuro melhor.
São pormenores. Quem olha para ti não vê. Não sabe que tens esse espírito que anima os lugares por onde passas ainda que por dentro não estejas bem. Não sabe que és capaz de passar da pessoa mais carinhosa do mundo à mais dura se assim tiver de ser. Quem olha para ti não sabe que és sensível e forte ao mesmo tempo, que passaste pelas provações do tempo e ainda estás de pé, disposto a fazer sorrir cada pessoa que por ti passe.
Quem olha para ti não sabe que tens uma alma rica. Que dás a mão aos amigos e até aos estranhos, se os vires mal. Quem olha para ti diz que te vê e não sabe que tu és um milhão de pormenores que te tornam especial.
Podem ser pormenores mas tu falas e eu acredito. Acredito que podes mudar o Mundo. Acredito que mesmo que a vida traga as piores coisas, é possível sobreviver. Acredito que existem heróis, como os da banda desenhada, e que esses heróis são justamente feitos desses pormenores que ninguém vê.
São pormenores... mas eu fecho os olhos e imagino-te assim: ao pormenor. E essa visão de ti é tão perfeita que, às vezes, por entre a saudade, esboço um sorriso e acredito, de coração, que tudo vale a pena. Sim! São pormenores. Eu sei os teus, tu sabes os meus e ambos sabemos que não há distância que possa roubar-nos as coisas que partilhámos no pormenor de um olhar.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

domingo, 2 de setembro de 2012

Setembro



Setembro. Foi em Setembro que eu nasci na consciência de quem sou. Foi em Setembro que aprendi a amar o que fica dentro, fora e além de mim. Intempestiva como as marés e saudosa como os ventos, foi em Setembro que aprendi que posso permanecer de pé mesmo se tiver lágrimas nos olhos e um coração dorido.
Setembro. Foi em Setembro que abracei as palavras pela primeira vez e foi em Setembro que decidi, na alvorada da minha infância, que seria uma escritora de coração. E foi em Setembro que me condenei a viver uma vida de papéis brancos e de caneta na mão, com as mágoas nas pontas dos dedos e a saudade infiltrada nos locais mais inóspitos da alma. Mas também foi em Setembro, numa tarde chuvosa de Setembro, que uma vez, uma única vez, me ofereci para desistir de tudo o que já tinha construído com palavras.
Foi só uma vez, acreditem em mim! Foi só uma vez, em Setembro. No calor do momento, um grito e um gesto. Um pensamento certeiro nas palavras atiradas ao ar. Foi só uma vez mas eu quase desisti das palavras por um amor maior. Foi em Setembro: os meus lábios não souberam calar o medo num beijo. E eu perguntei se devia deixar de escrever. Falava a sério, embora só o tenha dito uma vez e sem querer, porque o perguntei a alguém que me fazia viver em poesia, que era poesia, que eu amava como a poesia.
Setembro. Foi em Setembro que ganhei a consciência do fim. Foi em Setembro que aprendi que algumas pessoas não podem ficar. Que outras não querem ficar. Que a morte ou o tempo se anunciam e a nossa alma quebra. Foi em Setembro. A consciência roubou-me a felicidade. A criança morreu em mim e os contos de fadas foram morar para o horizonte distante que se tornou, entretanto, a minha maior fantasia.
Setembro. Foi em Setembro que conquistei mais um sonho. Foi em Setembro que avancei sem medos, fugindo de tudo o que me magoara. E foi em Setembro que, anos depois voltei, disposta a enfrentar tanto quanto tinha deixado para trás.
Eu nasci com a alma de Setembro porque foi nos muitos Setembros da vida que eu aprendi a rir, a chorar, a sofrer, a amar, a seguir. E é por isso que o velho calendário na parede marca sempre o mesmo mês, como se o tempo se suspendesse nas memórias que ali guardei.
Setembro. O meu Setembro de fel e amargura. O meu Setembro de felicidade e contentamento. Sim! Foi em Setembro. Foi em Setembro que eu me tornei tudo o que sou!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet (Shay Mitchell)

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cavaleiro negro



Era um cavaleiro negro, montado num cavalo de sombra. Não tinha senhor nem lealdade. Não tinha honra. Não tinha fé. Não tinha um sonho que lhe guiasse a jornada nem um lar que o acolhesse no regresso.
Seguia os ventos, perseguido por tempestades e temporais. Tinha sede de vingança e paixão pela guerra. A lâmina suja de sangue ressequido e as mãos calejadas vazias de tudo o que algum dia amara.
Era um cavaleiro das trevas. Movia-se por entre as estrelas. Roubava povos e saqueava casas. Nunca levava mais do que precisava para viver. Nunca deixava sinal de ter lá estado.
Por onde passava ficava a morte. A recolha calma das almas pútridas dos seres que não tinham feito por merecer uma vida. Por onde passava ficava o silêncio de cidades desertas e o chiar das portas velhas, que se abriam de par em par.
Com o tempo, o cavaleiro deixou de ter nome. Mais tarde, deixou de ter rosto. Um dia, deixou de ter forma. E já não era corpóreo quando passou por mim e adentrou a minha alma, lutando contra as certezas e esquartejando as esperanças. Já não era mais do que um fantasma feito de negro quando me roubou a vida, deixando apenas as respirações mentidas e o meu coração a bater.
Não tinha senhor nem lealdade. Nem um lar. Nem um destino. Creio que foi por isso que se alojou em minha casa. Creio que foi por isso que passou a alimentar-se das minhas incertezas. Creio que foi por isso que escolheu torturar-me.
Prendeu-me com as correntes mais firmes. Não as de aço ou de metal. As de sentimento. Arrastou-me pelo chão mais crespo. Um chão feito de espinhos e de impossíveis. Esquartejou-me com palavras e silêncios. Ganhou-me aos poucos. Troféu inegável da sua vitória sobre o mundo.
Era um cavaleiro negro montado num cavalo de sombra, esse medo que chegou à minha vida e me tomou por sua. E, mesmo sem partir, deixou-me o coração deserto de esperança e os olhos cheios de lágrimas. Deixou-me a alma escancarada e suja.
Hoje,  também eu não tenho senhor ou lealdade. Também eu não tenho fé. Também eu perdi os sonhos. Hoje não passo de uma cidade saqueada. Mais um ser que perdeu a vida sem ter vivido. Mais uma porta aberta que não leva a lado nenhum. O medo destruiu-me. O medo salvou-me. O medo ficou. E, subitamente, o cavaleiro negro teve um lar. Dentro da minha alma massacrada. Dentro do meu peito vazio. Dentro da eternidade humana que acaba no bater final de um coração desfeito.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Caixa de música



A música parou de tocar e a bailarina tonta, de sorriso desenhado e aberto, deixou-se de piruetas. Não era tempo de dançar. Não era tempo de sorrir. Não era tempo de ter os braços erguidos aos céus na suavidade de um toque infernal.
A música parou e a caixinha de jóias perdeu a graça. Prata e ouro. Bijuteria. Não havia nada de valor. A música tinha parado e a bailarina já não dançava. O valor tinha-se ido com a arte. O valor tinha partido na primeira nuance de desaparecimento do sorriso.
E a criança gira a maneta é dá corda à pequena caixa. Gostava de saber o que pensa a bailarina. Boneca de corda. Boneca sem vontade. Eternamente bonita e suave, dentro do seu tule rosado, a dar voltas lentas e perfeitas. Não tem direito à palavra. Não tem direito à opinião. Tem apenas o direito de girar, escravizada pelas vontades alheias.
Quantos de nós somos exactamente assim? E porquê? Para quê este sorriso de fel, desenhado e perfeito por entre a dor? Para quê a dança dos cumprimentos e das roupas chiques? Para quê esses protocolos de intolerância?
Sim. De uma maneira tonta e ridícula, somos todos bailarinos de corda nas mãos de uma sociedade construída sobre regras ilógicas. E giramos todos, de sorriso nos lábios pintados, ao som da música infernal que orienta a vontade das minorias.
A música parou de tocar e a bailarina tonta continuou a sorrir, na quietude de quem sabe que dançará sempre, enquanto houver música, enquanto houver uma mão a moldar-lhe o destino.
Mas, um dia, a caixa fecha para sempre, a criança cresce, a música pára e a morte chega. Por quanto tempo teremos de dançar ao som de ideias alheias? Por quanto tempo esperaremos a morte  com um sorriso nos lábios? Somos todos bonecos de corda. E precisamos de errar nas piruetas, de saltar das caixas de música e de aprender a viver por nós mesmos. Antes que nos fechem as caixas, nos privem da música e nos deixem num canto a morrer sem sequer termos vivido.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Mágoa de sal



Tinha os olhos cor de mel e a pele de veludo levemente branqueada pela ausência do sol. Os pés, descalços e maltratados da caminhada rumo ao impossível, deixavam pegadas pequenas impressas na areia molhada. E as ondas lambiam as feridas, bebiam o sangue, deixavam a mágoa.

Ela dançou, serpenteando os passos por entre as rochas frias. Dançou sob as estrelas, de olhos perdidos num luar distante.

Quem era ela? Eis o segredo das marés. Sereia humana. Menina perdida. Mulher despedaçada. Ninguém sabe dizer.

Mas ela caminhou. Com movimentos plácidos e ondeantes, como se também ela fosse mar. E o oceano apaixonou-se por ela.

Amores impossíveis nascem a cada segundo. Tantas pessoas de coração condenado vagueiam pelos tempos sem encontrar nada que lhes dê alento. Mas não o mar. O mar é dono do tempo e senhor do seu coração. Então, o mar tomou-a nos braços, envolveu-a e roubou-lhe o último suspiro no movimento dançado de uma onda.

Nunca mais ninguém a viu, dançando na praia. Mas, à noite, escutando com atenção, ouve-se o mar contar esta história. Ouve-se o riso entrecortado em lágrimas da menina ferida pelas desilusões.
Sereia entre humanos, encontrou por fim a paz por entre as ondas. E nunca mais os seus olhos cor de mel se focaram no luar. Nunca mais sentiu. Nunca mais amou. E o dia nasceu. O vento apagou as pegadas e agitou as copas de mil árvores tristes. O mar festejou no sossego violento das ondas. E as pessoas, tão cegas e tão loucas, as pessoas nem notaram...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet (Evanescence)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Já chega, princesa



Já chega, princesa. Deixa os sapatos na escada mesmo e não fiques à espera que tos levem à porta, com um anel de noivado. Despe esse vestido que te prende os movimentos e não te deixa respirar. Solta os cabelos. Vai correr. Fugir da suposta perfeição do teu rosto pálido e da luz inigualável dos fios dourados que te adornam a face, onde os olhos azuis como safiras refletem o céu e os lábios escarlates têm a pureza das pétalas de rosa. Tens de fugir. Fugir do que te fizeram os teus antepassados e do que te fazem os teus companheiros de viagem, neste tempo sem finais felizes.
Precisas de entender: dentro de ti há mais do que cabelos louros ou olhos azuis. Tu sabes. Tu pensas. Tu acreditas. E é maravilhoso. Porque tu podes ser quem tu quiseres, sem seguir as normas que te impõem.
Há mundos além do teu mundo e amores além do teu amor. Não queiras vergar-te aos pés de ninguém. De costas direitas e de rosto erguido. De braços cruzados sobre o peito. De sobrolho franzido. Pedindo explicações. Podes fazê-lo. Não sejas somente o reflexo das amarras invisíveis desse reino sem magia. Sê quem tu quiseres. A menina pacata ou a aventureira sem medos. A esposa calada ou a mulher rebelde. Ninguém pode ditar quem deves ser. Por isso sê-lo. Sê quem tu quiseres.
Mas, primeiro, larga essa rigidez. Solta o corpete. Liberta-te da obediência cega. Foge e olha em redor. Vê o que não te deixaram ver. Entende que te cegaram. Compreende! Ninguém vai viver a tua vida. Ninguém pode exigir que vivas um destino predefinido.
Já chega, princesa. Chega de ensinares às crianças que o amor é a meta e o casamento a recompensa. Chega de sorrisos em vestidos brancos e de bebés com cheiro a caramelo, em roupinhas azuis e cor-de-rosa. Diz-lhes a verdade. A verdade sobre como o amor tem altos e baixos, sobre como o casamento é um contrato num papel que não define sentimentos, sobre como perdes noites em claro sem dormir para cuidar dessas crianças. Diz-lhes que, por vezes, desejavas ter tido melhor sorte, a sorte de te bastares.
Já chega, princesa. Chega de destinos pré-feitos, de roupas que te prendem e te limitam, de meias palavras, ditas com doçura. Cria o teu destino. Segue o teu caminho. Entende: não há nada de mal com o amor, ou o casamento ou a maternidade. Mas, se for esse o caminho, que o seja porque o queres e não porque o achas mais certo.
Já chega, princesa. Já chega de seres chamada de princesa. Segue o teu caminho e sê mulher!

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 31 de julho de 2012

O teu nome



O oceano ecoa o teu nome. Pedi o silêncio, para poder dormir esta noite. Mas ele ecoa o teu nome na rebentação das ondas. Chama por ti. Acorda-me os sentidos.
Não lhe bastou o que nos fez. Não lhe bastou atirar-me para os teus braços e colar os meus lábios aos teus, destruindo tudo o que eu levara tanto tempo a construir. Não lhe bastou condenar-me outra vez, com esse encanto devoto de um amor sem retorno. Ele ecoa o teu nome em cada onda que rebenta na areia húmida da praia.
Dou por mim a culpar o mar. Quem mais teria culpa da minha infelicidade? Quem mais poderia ter enfeitiçado a minha alma? E surge o som da calúnia nos meus lábios pagãos, que amam a água. Como pode o meu mar ter-me traído?
O oceano ecoa o teu nome na noite. E o seu som chega até mim tal como música. Cada acorde com a naturalidade corrente de um sem fim de saudosas ilusões. Durmo, sim. De lágrimas nos olhos e desespero no peito. Com o teu nome nos ouvidos e no coração.
E, a cada onda, sinto no meu peito o desapego da realidade e o desejo cada vez mais forte de me afogar no mar salgado das minhas lágrimas. Ouço o mar chamar por ti. E sei que é ilusão. Ainda assim, quero viver de ilusões ou não viver de todo.
O oceano ecoa o teu nome. E sou eu que lhe respondo, tentando fazê-lo entender que não podes ouvi-lo, da mesma forma que não podes ouvir os gritos desesperados da minha alma. E o mar chora comigo. Lágrimas de sal. Lágrimas de saudade. E eu tento consolá-lo com palavras vãs.
O oceano chama por ti. Ecoa o teu nome por entre o negrume da noite. Dormir e sonhar. Afogar-me nesse mar e morrer com o teu nome nos lábios que sorriem. O oceano ecoa o teu nome e não o ouves. Mas eu ouço-o e invento palavras para que ele te perdoe. E, de alguma maneira, embora chame desesperadamente por ti, o mar perdoa-te todas as noites, exactamente como a minha alma aprendeu a perdoar-te todos os dias, sem sequer entender porquê...

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 24 de julho de 2012

Gaveta de sonhos



Não. Não é pelas coisas que eu quero. Não acalentas as minhas esperanças e não constróis os meus sonhos. Na verdade, por vezes, és o primeiro a destruir tudo aquilo que eu teria desejado para mim. Mas está tudo bem. Nunca fui tão feliz.
Aprendi a ser feliz contigo. Com os teus olhos tristes, atirados para trás da máscara eterna do riso e da alegria. Aprendi a ser feliz com o teu toque dançado, que fazia valsas pela minha pele e me tartamudeava melodias mudas aos ouvidos. Aprendi a amar no desapego do inevitável.
Não foi nem nunca há-de ser pelas coisas que eu quero. Eu quero o que fica além do horizonte. Quero ter a altura das estrelas, a profundidade dos oceanos, a luz do sol. Não podes. Ninguém poderia, ainda que tentasse, dar-me tudo aquilo que eu quero. Eu quero depender de mim. Eu quero a liberdade. Eu quero a independência da fuga e a constância de não haver rotina.
Paris. Cairo. Edimburgo. Londres. Toulouse. Salem. Minas Gerais. Eu quero conhecer o Mundo. Quero conhecer as pessoas do Mundo. Quero escrever. Quero ter asas nas mãos fechadas ao redor de uma caneta. Quero conhecer a imensidão de um amor maior do que o tempo. Quero ver tudo. Sentir tudo. Saber tudo. Por isso não... não é pelas coisas que eu quero. É pelo nada...
O nada é assim: feito de tudo o que eu nunca quis. Feito de coisas pelas quais não teria dado um passo. Criado no negrume de coisas que podiam ser-me indiferentes ou das quais, simplesmente, teria dito não gostar. E tu acalentas esse nada. Contigo, não preciso de conhecer o Mundo. Contigo, não preciso de conhecer as pessoas do Mundo. Contigo, não preciso de fazer da caneta a minha amiga de todas as horas nem de desejar viver um romance de cinema. Contigo, o sonho sonhado morre. Contigo, a vida começa a virar um sonho.
Não. Não é pelas coisas que quero. Qualquer um podia entrar na gaveta dos meus sonhos de criança e brindar-me com mil promessas de perfeição. Mas tu entendes a simplicidade dos espaços brancos da gaveta. E ensinas-me a ver, nesses espaços, as pessoas e os mundos que ficam perto de mim. E, quando me apercebo, não quero ser livre. Quero ser prisioneira dos teus braços, depender de ti, precisar da tua protecção. Quando me apercebo, quero a rotina. Uma rotina de dias que comecem nos teus braços e acabem nos teus braços, venha o que vier pelo meio.
Não. Não é pelas coisas que eu quero. É porque és o único que me faz querer coisas que eu não sabia que queria. É porque és o único que me faz desejar ficar em vez de fugir. É porque me mostras que o sonho e a realidade se podem unir num momento maravilhoso chamado vida.
Por isso, entende, és tu. Não pelas coisas que sonhei ou quis. Não porque ache que possas dar-mas ou que mas queiras dar. É simplesmente porque, olhando para um futuro onde tu estejas, acordo do meu sonho e nunca fui tão feliz.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 17 de julho de 2012

Medo



Se me perguntarem qual o meu maior medo não saberei dizer. A vida não me criou na coragem e o mundo não me aclamou heroína. Sou humana. Sabem os Deuses quantos medos me correm nas veias. Mas, se me perguntarem do que mais tenho medo, não saberei dizer.
Acho que tenho medo de ter medo. Medo de não saber enfrentar de cabeça erguida o que quer que venha. Tenho medo do silêncio e do esquecimento. Tenho medo que a vida me ponha à prova nos vales da solidão e eu não saiba bastar-me.
Às vezes é assim. Não importa se o mundo nos puxa e nos mói. Não sabemos. E é nessa inconsciência que a loucura ganha raízes, nos perfura a alma e nos corrói os sonhos até não sermos mais do despojos de tudo o que poderíamos ter sido. E, por isso, também tenho medo de não saber...
Não deixar nenhuma rua por trilhar, nenhuma pedra da calçada sem pegadas, nenhum vinho sem prova, nenhum sonho por realizar, nenhum amor por viver. Queremos tanto. Somos tão plenos de desejos. O medo é natural. É-nos inato como uma respiração. Todos nós temos medo de acordar um dia no Outono dos tempos para descobrir que deitámos fora as oportunidades do mundo. A plenitude está nisso mesmo: no desejo e na falha e em todas as coisas que ficam de permeio.
Não sei do que mais tenho medo. Posso enumerar os meus amores na singularidade e contar os amigos pelos dedos das mãos. Mas não posso dizer que medos me assombram sem despertar outros fantasmas, de temores que foram e de temores que estão por devir.
Venha o que vier... tenho medo. Tenho medo mas sou forte. E, quando o medo me assombrar, sei que hei-de arranjar maneira de sobreviver.
Mas sobreviver é pouco. Não é? Acordar de manhã e rastejar até à morte. Sobreviver é não viver de todo. E também tenho medo disso. Medo de sobreviver a uma vida sem vida. Medo de acordar de manhã a esperar a noite e de acordar um dia a desejar que a morte me tome nos braços.
Não sei do que tenho mais medo. Mas não preciso de saber. O medo é apenas uma barreira em nós. Há-de estar sempre presente. Mas vale a pena construir degraus de sonhos e superar as barreiras. Vale a pena desistir da sobrevivência fria e procurar um pouco de fogo em nós.
Não é o medo que nos define. Não é o medo que nos move. A maior expressão da coragem está em erguer a cabeça e admitir que tememos tudo mas que, mesmo assim, não desistimos de nada.

Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 10 de julho de 2012

Nada nem ninguém



Com as mãos coladas ao teu rosto e os olhos perdidos nos teus. O meu coração grita e eu sussurro. "Nada nem ninguém, acredita em mim, nada nem ninguém". E tu ouves, sorris... mas não acreditas. Os teus olhos brilham das lágrimas contidas e o rosto pálido ruboriza. "Nada nem ninguém", repito.
Tu e eu. Nascemos das improbabilidades, tu e eu. Filhos de céus e amantes do mar. Fomos criados para sermos tudo menos um do outro. E, no entanto, as minhas mãos têm o tamanho certo para segurar as tuas. Os meus lábios o formato certo para encaixarem nos teus. Contra tudo e todos, encontrámo-nos.
E, de mãos fechadas ao redor do teu rosto, tento que compreendas. "Nada nem ninguém!" Mas tu tens medo que eu esteja errada. Tens medo que eles ganhem essa batalha sem sentido. E semeias o medo no meu peito. Não quero perder-te.
Eu ouço as vozes. Elas dizem que não posso estar contigo. Elas dizem que pertences a outras gentes, a outros mundos que não o meu. Mas o meu coração fala mais alto e a sua voz é mais pura. Tão pura que me sai por entre os lábios e te promete que nada nem ninguém nos pode roubar um do outro.
Por momentos, queria ser poeta. As palavras fogem no vento e restam as minhas mãos cheias de ti e os meus lábios cheios de promessas mudas. Demorei a encontrar-te nos espinhos da vida. Não podem roubar-te de mim. Quero dizer que te amo. Quero dizer que a lua é nossa guardiã e que, de alguma forma, tudo ficará bem. Mas as palavras fogem-me e eles continuam a falar. E tu ouves o que eles dizem. Acreditas. Quem me dera que acreditasses antes em mim.
O nosso amor é a expressão concreta da felicidade. Mas eles invejam-nos e atacam-nos. Não nos compreendem. E nós somos fortes juntos mas eles são mais do que nós e não dormem, não comem, não sonham. Por favor... sonha tu, comigo!
"Nada nem ninguém, nunca!". As palavras, repetidas até à exaustão perdem a força nos teus olhos descrentes. Então, os meus lábios perdem a força de falar e encostam-se aos teus, com ternura. Um beijo quente e leve, cheio de tudo o que as palavras não dizem.
E afastas-me. O teu olhar brilha levemente, enquanto me passas a mão pelos cabelos revoltos. "Nada nem ninguém", repetes. E, de súbito, descubro que é verdade. Descubro que tu sabes que é verdade. E, nesse segundo, não há nada mais certo: podemos lutar contra tudo e nada nem ninguém nos vai destruir. Eles podem ter todas as palavras do universo mas, tu e eu...  bem, nós temos o verbo amar.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 3 de julho de 2012

De olhos fechados



Quando fecho os olhos, eu vejo o mar. O horizonte. Os vales encantados da memória, onde floresce a ilusão de um amanhã mais puro. Quando fecho os olhos, eu ouço a voz das árvores. Vejo o sorriso das flores. Respiro melhor.
Quando fecho os olhos, eu vejo mais do que o mundo permite. Voo por céus de eternidade. Atiro-me de falésias de esperança. Corro sobre as nuvens mais altas.
Quando fecho os olhos, enrosco-me no teu abraço quente. Sinto o teu cheiro. O teu sabor. A tua insanidade e a tua força. Quando fecho os olhos, sou tua. Tu és meu. Juntos somos donos do para sempre e filhos de uma Natureza divina.
Abrir os olhos é morrer. Morrer no horizonte cinzento de uma estrada de alcatrão. Morrer na cidade pardacenta. Morrer na voz de quem não entende porque roubaram a voz de quem sabe melhor. Abrir os olhos é estar sozinha. É estares longe. É não sermos nada nem de ninguém.
Vou fechar os olhos. Correr por esse prado verde, onde as flores silvestres começam a nascer sob as gotas do orvalho da manhã. Vou seguir o rio. Vou dar-me a beber à poesia.
Vou abrir as asas. As minhas asas de veludo negro. As minhas asas de imensidão. Vou voar no céu azul-escuro do fim da tarde. Vou passear sobre o arco-íris.
Quando fecho os olhos sou a pessoa mais simples de todas. Ando descalça sobre a relva e sob a chuva. Rodopio loucamente no desapego do óbvio. Rio às gargalhadas, até a barriga doer e os olhos lacrimejarem. Sou tão feliz, quando fecho os olhos.
Então, não tenho medo da morte. Gosto da vida que tenho no fechar dos olhos. Quando me canso do mundo. Quando me canso de esperar que o mundo se torne outra coisa ou que seja melhor. E morrer é fechar os olhos de vez.
Quando fecho os olhos, eu vejo a vida que não tive. A vida que nunca vou ter. Não é o tempo nem o local para se ser um servo da Natureza. Para se ser um filho do divino. Para se ter uma fé inabalável no amor. Nasci no sitio errado para ter os olhos abertos. Nasci no tempo errado para admitir o que encontro quando os fecho.
E quem me entende? Quem pode entender que falo com plantas e espero amores perdidos? Quem pode entender que me ria das certezas dos que se afogam em teorias comprovadas? Quem pode entender que eu acredite no invisível, no indizível, no inadmissível e não consiga ter fé na ciência?
Quando fecho os olhos, entro num mundo de magia. Pode não ser real. Mas é real para mim e isso basta. Chegará o dia de fechar os olhos de vez. Nesse dia riam comigo. Nesse dia festejem. É de olhos fechados que sei ser feliz. Foi de olhos fechados que aprendi que a cegueira é uma doença para quem acredita que ter os olhos abertos é o mesmo que não acreditar em nada. Foi de olhos fechados que aprendi a ver...

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet

terça-feira, 26 de junho de 2012

O sentir das folhas brancas




Eu escrevo para pessoas de coração partido. Não porque tenha o meu coração destroçado mas porque sei como dói ter um coração quebrado e não sentir que alguém entenda.
Escrever é mesmo assim. É escolher viver de sentimentos, sejam eles quais forem. É oferecer a alma ao povo. É estropiar sentidos e espetar punhais de passado, vez após vez, no centro da ferida sarada.
E é verdade. Às vezes as palavras magoam. É uma escolha. É uma decisão que tomei cedo e por mim mesma. E, entre dias melhores e dias piores, é nessa decisão que encontro a força porque não acredito num mundo sem poesia.
Vou alimentar-me da minha dor. Vou alimentar-me dela enquanto não puder alimentar-me da minha felicidade, de uma forma tão pura e constante. É assim que sobrevive a escrita. Foi assim que se inventou a poesia. Foi assim que o mundo aprendeu a girar sobre si mesmo.
Vou alimentar-me da noite enquanto não houver dia e da escuridão enquanto não houver luz. Vou venerar a Lua e o Sol. Vou fazer vénias às estrelas e chamar a Natureza para me abraçar os medos. Vou alimentar-me dos medos, também. Vou retirar deles a força enquanto não houver paz. Vou viver uma morte sem vida neste caminho sem regra tomado pelo meu coração.
Nem todos podemos viver nos campos da vitória. Nem todos podemos procurar apenas o melhor da nossa alma. Escrever é aceitar o que existe. Viver a dor e a saudade. Viver a ternura e o carinho. Viver a mágoa e a desolação. Viver a alegria e o contentamento. Escrever é aceitar cada sentimento como igual e beber dele cada palavra.
Então, durante muito tempo, talvez até para sempre, vou alimentar-me da minha dor e da minha felicidade ou do meu sentimento, seja ele qual for. Por vezes, vão elogiar-me. Outras, vão criticar-me. Por vezes, vão atirar-me pedras e palavras duras. Mas está tudo bem. Porque, no fim, resta a consciência límpida, a decência e a paz de saber que não preciso de me alimentar da dor dos outros.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet 

terça-feira, 19 de junho de 2012

Filha da Noite



Também sou filha da noite. Sombra de estrelas e irmã dos ventos. Serva das marés e cortesã das horas. Vivo no cativeiro da Terra, humildemente acorrentada às maravilhas do mundo e às vontades insaciáveis do meu coração.
Ouve  e vê com cuidado. Ouve mesmo esse silêncio que julgas despojado de tudo. Vê mesmo esse espaço desfeito onde nada se ergue e nada se assume. O vazio é apenas feito de imaginação mortal. Vivemos rodeados de tanto quanto nos cabe nos sonhos. Somos apenas cegos e surdos. Incapacitados pelos olhos cheios de ciência e as mãos fechadas em redor de teorias.
Também sou filha das trevas. E são as trevas que trago no meu olhar despido de luz. Mas, não duvides: ainda amo o sol. Amo-o como se ama alguém  muito querido que sabemos que não podemos ter. Na certeza insensata de que estaremos sempre no outro extremo da vida. Na saudade que vem da consciência de que toda a luz tem sombra.
Não tenhas medo! Faço parte da escuridão e corro com os ventos, atiço as marés e transformo segundos em anos que não passam, que congelam e permanecem. Mas estou aqui e também sou menina. Também sou criança. Também sou tua... E morreria para que não tivesses medo de nada. Morreria para que fosses feliz.
Sim. É verdade. Eu sou o que fica sombrio atrás do brilho de uma estrela. Sou o que fica invisível depois da onda ter rebentado na praia. Sou o que desvanecesse no ar quando a brisa sopra, no último rasgo de sol. Sou o que fica esquecido por entre memórias que se esbatem e o rosto que se perde na multidão que percorre as ruas.
Também sou filha da noite e irmã dos ventos e serva das marés. Mas, na maioria dos dias, sou apenas uma rapariga. Uma rapariga quebrada e indolente, apaixonada por uma luz que se afasta um pouco mais a cada segundo. E o Inverno brota-me no peito, acorrenta-me ao gelo dos sentidos e torna-me escrava do meu amor.
Sou filha da noite mas não lhe pertenço. Não sou dela e não sou minha. Vivo cativa, escravizada, de rojo aos pés do amor. Pertenço ao meu coração. Pertenço ao sentir insensato que me corre nas veias. E estou só... porque nenhum vento e nenhuma maré assume o negrume da dor que trago no peito. O negrume que vence a noite e as trevas... e onde não há luz nem sombra... mas apenas solidão.

Marina Ferraz

*Imagem retirada da Internet