segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Canto da Noite

O seu canto ecoou pela cidade. Um choro. Um grito. Uma melodia. Ninguém sabia dizer... Ecoou pelas paredes nuas do luar, desvanecendo nas ondas de um mar sem céu. Estava na hora de perder o medo e erguer a voz ou de calar para sempre os anseios, nesse silêncio de emoções rotas e despidas, que jamais são despojadas do derradeiro corpo do desejo.
Então, perante esse ultimato infernal da escuridão, ela correu, com os pés nus, pela areia fria da noite e deixou que as palavras saíssem... choradas, gritadas, cantadas, num misto de encantamento e dor que não podia ser descrito por nenhuma palavra humana.
As estrelas cintilaram nos seus olhos de amargura e as ondas rebentaram, cruéis e indiferentes, na sua pele calejada pelo tempo. Por esse tempo que não sabe esperar um pouco, para dar uma oportunidade cálida a um ser privado de vida. Ela ignorou-os. Ignorou as estrelas e o mar, como se não fossem os seus melhores amigos e tornou a libertar as palavras ao vento.
Mil crianças adormeceram na sua voz. Calmas, puras, indiferentes. Mil pessoas sonharam os mais belos sonhos do mundo. Distantes, egoístas, mudas. Mas ela? Ela gritou! Um grito que foi um choro. Um choro que se transformou na eterna música desse bramir materno e imortal das ondas. Não arredou pé a noite inteira porque tinha de dizer tudo o que guardava. Tinha de dizer as palavras que a fariam morrer, ou dormir, ou abrandar um pouco esse ritmo infernal que trazia sempre consigo.
O primeiro raio de sol veio iluminar-lhe o rosto. E, qual fantasma, ela viu-se desvanecer com a noite, evaporar nas ondas, enquanto a última sombra de escuridão vinha acariciar-lhe o rosto, com o primordial gesto de ternura.
E ela sorriu. Sorriu, enquanto chorava, cantava e gritava pela última vez, naquela noite de estrelas trocistas. E fechou os olhos, enquanto eu abria os meus, para receber a madrugada, com os olhos vermelhos e uma alma silenciosamente dorida.
Olhei de mansinho para o céu que aclarava e procurei-a na areia dos meus pensamentos, julgando-a ausente. Antes que tivesse tempo de o fazer, no entanto, senti-lhe os dedos suaves sobre o meu coração e soube que ela tornaria a cantar, a gritar, a chorar... para que um dia a possas ouvir. Para que possas ouvir o seu canto na noite. Para que saibas que ela é a Saudade. E que toda ela mora no meu peito, sabendo que é eternamente tua...

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Armadilha

Debati-me. Debati-me tanto que os meus pulsos ficaram feridos e os meus joelhos rasgaram e começaram a sangrar. Debati-me por horas, por dias, por semanas. Mas, então, a minha alma deixou de sentir. Doía-me o corpo e a incerteza. Doía-me o vazio que veio substituir esse grito constante da minha alma. E parei.
Parei, como um animal, numa armadilha, que aceita, em plena consciência ou por mero instinto, que o caminho a seguir é a morte. E tive tempo para lutar, tempo para negar, tempo para deprimir e tempo para aceitar… acabou.
Debati-me por horas, tentando alcançar aquele sonho que sempre se exibiu exoticamente mesmo à distância de um toque. Mas o sonho estava um milímetro longe demais e, por um milímetro, não pude agarrá-lo e obrigá-lo a libertar-me das amarras frias e dolorosas que me mantinham cativa de certezas que não tinha e de um futuro que eu não queria para mim.
Em tempos, acusaram-me de viver na escravidão do meu passado, como se ele pudesse fazer mais do libertar memórias, como se pudesse gerir a minha forma de viver. E foi com essas palavras que caminhei sempre, porque me cegaram com elas. Foram palavras insensatas, de quem não sabia que era muito mais fácil eu ser escravizada por esse futuro que se aproxima lenta e demoradamente, abraçando-me com a força inevitável de não me deixar escapar.
Sinto-me escrava do abismo. Como se as minhas correntes me arrastassem na sua direcção, afastando-me, passo a passo, de tudo o que sonhei para mim.
E choro. Antes debati-me e agora choro. Tenho de chorar. Tenho de chorar pelos passos que dei, rumo a esse abismo sem esperança. O abismo no qual acabarei por mergulhar nos anos de todos os sonhos que deixei, de todas as pessoas que não esqueci e de toda uma vida que não tive.

Marina Ferraz
*imagem retirada da Internet