terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Carnavalesco



Foguetes, fogueiras, folclore. O meu povo gosta de palavras começadas por F. Há algo de carnavalesco nelas. Como se pudéssemos enunciar festividades, falando felizes das forças que movem este festejo.
Fogo! Pensar que há alguns anos, fatos e figuras e festejos me faziam feliz. Faz-me ficar parada, olhando as folhas finas com uma sensação de fugacidade.
Fico. Fico na fossa. Felicitando a fraca e frágil inocência fugidia que me fica da infância que foi. Não festejo. Festas e frivolidades começam a fazer-me pesar. Máscaras. Formas. Formas irregulares e toscas. Informes. Descoladas da realidade.
Faz falta ver. De frente. Com frontalidade. E firmeza. Nas ruas dos festejos há quem passe fome. Frio. Ficam a ver passar a festa. Com olhares frisados e testa franzida. Fazem de conta que festejam também. E ficam atentos ao filme ambulante de fracas figuras fingindo que rir do que é fraco faz bem. Se cai uma moeda, fixam o movimento e forçam o corpo, fraco e frágil, franzino, a furar a multidão. E fogem. De dia ganho. Felizes.
Foguetes, fogueiras, folclore. O meu povo gosta de palavras começadas por F. Há algo de carnavalesco nelas. Farsa. Facécia. Toda a gente gosta de riso fácil. E de samba nas ruas fechadas por senhores de farda. Fazem frente à pobreza. Para que fique de fora e não faça ficar feia a festa.
A fachada provisória fica até ao final. E ficam no chão serpentinas e frascos e imundície. Funcionários farão tudo fugir pela manhã. Num passo de mágica que se funde na paisagem que olvida festas e figuras e desfiles de fraca forma.
Foguetes, fogueiras, folclore. O meu povo gosta de palavras começadas por F. Tem algo a ver com a fama final do fino foco da epopeia. Fomos. Insistimos que fomos. Porque não somos. Mas fomos. Fortes. Famosos. Felizes. Fragmento de sonho comum e familiar, feito de ouro e mar.
Fomos. Hoje não. Ficamos pelos foguetes, fogueiras e folclore. Pela festa da cegueira frente a quem faz do frio e da fome uma firme realidade. Festejemos. Fomos. Vamos firmemente fechar o espaço da fala. Deixar que fique o silêncio. É mais fácil. Uma forma carnavalesca de fugir. Senão está tudo f…


Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Insatisfação



Ele entrou. Já não era o mesmo homem. Carregava sobre o casaco, que despia à entrada, o peso que lhe ficava nos ombros e que transportava porta adentro, por incapacidade de o deixar, também, pendurado no cabide. Selava, nos lábios dela, o beijo. Mas não um beijo de tentação e apego. O beijo do hábito, encostando os lábios aos dela como se apaticamente o fizesse num copo de cerveja, mas sem o mesmo prazer. E a pele cinzenta servia de moldura ao lugar onde os olhos, meio mortos, permaneciam presos ao anteontem e os lábios, na sua linha, cada vez mais fina e severa, desapareciam por entre a barba de dois dias.

Ela ouviu-o entrar. Já não era a mesma mulher. Escondia sob o avental, que nunca despia, o rasgo quente da raiva que, por mais que tapasse com sorrisos, lhe fazia doer o estômago, como uma azia onde os ácidos nada mais eram do que o refluxo da vida que odiava. E ele entrava – já sem casaco, só com o peso – e beijava-lhe os lábios. Um contacto de dois segundos que lhe parecia uma hora de penosa tortura nas catacumbas do mundo. Passava do beijo à tarefa, com uma profundíssima competência. Nunca uma panela de sopa era melhor mexida. A colher de pau dançando por entre o líquido amarelado, como se essa dança a distraísse da chegada dele. E os olhos dela, movendo-se com a colher, apreciando com agrado os riscos levemente mais escuros que ficavam na sua passagem, focando neles uma atenção pouco sadia e mergulhando neles à procura dos sonhos.

Sentavam-se os dois à mesa. Ela ligava a televisão para ver a novela. Ele abria o jornal para ler a secção de desporto. Mas nem ela ligava à novela nem ele a futebol. Queriam apenas a tranquilidade de não precisarem de se falar. Para não precisarem de falar sobre as formas como ele procurara mundos de luxúria e paixão onde, primeiro, devia ter havido amor. Sobre a forma como ela procurara realização e conforto onde, antes, devia ter havido amor. Sobre a forma como ambos se tinham esquecido, completamente, de amar-se – a si mesmos e um ao outro.

Um dia ele entrou. E pendurou o casaco. E beijou-a, ao de leve, sobre os lábios carentes. E sentou-se com ela à mesa. Naquele dia, ele não trouxera o jornal. Naquele dia, o serviço de televisão tinha sido cortado. No lugar do jornal ficava o espaço da madeira demasiado lustrada de uma mesa meio vazia. No monitor, o aviso saltitante da operadora dizendo que restauraria o serviço assim que possível. Havia o barulho das colheres a irem ao prato e um espaço de silêncio que pedia, implorava, por ser cortado. E os olhares fixos na sopa.

E foi naturalmente, para quebrar o silêncio, que se fizeram ecoar as palavras, como se fizessem sentido:
«Devíamos ter um bebé», disse ele.
«Devíamos ter um bebé», repetiu ela.
Não concordavam há tanto tempo… parecia fazer sentido!


Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Sinergia



Para o meu "evidentemente"

Preciso de ti. Precisas de mim. Respiramos, juntos, o ar que o mundo dá. Eu por ti. Tu por mim. Sabendo que de pouco valeria a respiração se nos faltássemos.
Damos passos coordenados. Nem sempre sobre as mesmas pedras. Às vezes, vou à tua frente, puxando-te pelo braço. Às vezes, quedo-me atrás de ti e deixo que me arrastes. Pergunto onde vamos e nunca sabes dizer. A resposta vazia basta. Porque sei que vou contigo, seja lá onde for.
É o nosso universo. O meu. O teu. O nosso. No meu, moram as perguntas. No teu, a espontaneidade. No nosso, a confiança que se ancora no desejo do amanhã. Respiro-te. Respiras-me. Respiramos juntos o mesmo ar. O do mundo. Que não nos entende. Que não nos respeita.
Preciso de ti. E tu precisas de mim. Somos dois completos que se encaixam na perfeição. Sabes que me basto. Sei que te bastas. Mas não chega. Queremos mais da vida do que o completo no qual se fazem fórmulas de sobrevivência. Queremos o que mais ninguém tem.
Sejam palavras. Beijos. Abraços. Corpos dados sem pudor nas noites de lua cheia. Ou simplesmente filmes na tela da televisão. Queremos isto. Isto que ninguém tem. Não como nós.
Porque preciso de ti. Porque precisas de mim. Mas somos inteiramente completos no seio da necessidade que nos move.
Tenho vinte dedos nas mãos. Escrevo com eles canções de amor que não veriam a luz do dia se não tivesse dois corações. Não! O teu coração não é metade do meu. O meu não é metade do teu. São inteiros. Batendo em compassos ritmados que musicam a vida de uma forma muito peculiar.
O meu bate. O teu bate. Não há silêncios entre o bater do teu e o bater do meu. Rodas dentadas, movendo os ponteiros da paixão. O meu bate. O teu bate. E que o teu bata uma vez depois do meu, se puder ser.
Preciso de ti. E tu precisas de mim. Isto acontece sem acasos nem senãos. É uma necessidade desnecessária que se estende, fluída, por entre os espacinhos seguros nos quais ainda cabe algo além de nós. Antes amor do que ar. Antes amor do que água. Prefiro sufocar de excessos do que de vazios.
É um sufoco que me acorda da dormência inconstante e insaborosa dos tempos. Lembrando a plenitude do ar que respiramos juntos, na luta por uma coisa que é outra coisa. Diferente do permeável. Diferente do mundo.
Preciso de ti. E tu precisas de mim. Não me falta nada. Não te falta nada. Temos mãos. Mas queremos dá-las. Sabemos que, juntos, suportamos mais do que a soma das nossas forças. Uma imortalidade dispersa que move as mais pesadas montanhas de senso comum.
Temos corações. E eles batem. O meu bate. O teu bate. Na necessidade inexplicável, preenchem os silêncios como espaços de roda dentada. O meu bate. O teu bate. E, assim queiram os Deuses, possa o teu bater mais uma vez depois do último pulsar do meu.




Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet




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terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Hierarquia


Há gente. Há pessoas. E pessoinhas. E pessoinhas que se acham pessoas. E pessoas que se acham gente. E gente que é gente. Para destoar. Todos sabemos como é.
Na maioria das vezes as pessoas vão. Cumprem horários vastos. E seguem linhas detalhadas. Montadas. Disseminadas. Cuidadosamente tratadas e esmiuçadas. Pelas pessoinhas que se acham gente. E algumas que se fizeram gente. À conta da determinação das pessoas. Da gente. De quem precisa de pão na mesa. Ou de viver.
Às vezes, gente que é gente pede esmola na rua. Ouvi, senhores do alto, as preces. Da gente. Da gente que é gente e que tem a gentileza de pedir… porque roubar é viver da esmola gananciosa do que não nos mata a fome. As pessoinhas fazem festas e entram nos círculos mais elitistas. Comem para matar a gula. Engordam para encher as roupas. Cortam o que adiposamente se amontoa debaixo das peles para pagar a dívida da vaidade. E criam regulamentos. Nas horas vagas, entre a festa e o luxo.
Fazem cópias do regulamentado. Porque a lei é lei. Desde a Grécia. Desde a democracia. Demo. Cracia. A lei é a lei. Das horas de trabalho escravo, que somadas às assalariadas ainda não fazem um dia. Mas por sorte. Ou jeito. Ou defeito. Ninguém é louco de pedir vinte e cinco horas num dia. Mas o mundo é das pessoas que dão. A mais. Porque quem dá o que deve, dá pouco. E quem dá menos morre de fome.
Escalam-se degraus, deixando pedaços de moralidade atrás das costas. Porque pesam. E a escadaria é alta. E não é pior escrever o regulamento do que seguir-lhe à risca as regras. Até porque a vista cansa e o mais importante vem sempre nas letrinhas pequenas do fundo da página três mil. Às vezes é gente que começa a subir a escada. E quer-se crer que gente chegará ao topo, para que seja justo. Mais justo. Equilibrado, ao menos. Melhor?
Chega ao topo a pessoinha. E, ao fim de pouco tempo acha-se gente e esquece-se do tempo em que de mãos estendidas pedia esmola e se oferecia para ser escravo na base menos estruturada das pedras de calçada empresariais.
Há gente. Há pessoas. E pessoinhas. E pessoinhas que se acham pessoas. E pessoas que se acham gente. E gente que é gente. Para destoar. Todos sabemos como é.
Sabemos mas não sabemos. Porque não querem que saibamos. Está nos regulamentos. Façamos silêncio. É o que dizem. Mas calados. Porque dizê-lo pode ofender.
Hierarquia.
Hierar. Quia.
Hierarqu. Ia.
 Ia. Até ia. Mas não vou.
Tenho medo de subir os degraus. E de deixar de ser gente. E de passar a achar que o sou. Parece triste, olhando de baixo. Porque se acham sol. E só fazem sombra.



Marina Ferraz



*Imagem retirada da Internet




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