Ele entrou. Já não era o mesmo homem. Carregava sobre o
casaco, que despia à entrada, o peso que lhe ficava nos ombros e que
transportava porta adentro, por incapacidade de o deixar, também, pendurado no
cabide. Selava, nos lábios dela, o beijo. Mas não um beijo de tentação e apego.
O beijo do hábito, encostando os lábios aos dela como se apaticamente o fizesse
num copo de cerveja, mas sem o mesmo prazer. E a pele cinzenta servia de
moldura ao lugar onde os olhos, meio mortos, permaneciam presos ao anteontem e
os lábios, na sua linha, cada vez mais fina e severa, desapareciam por entre a
barba de dois dias.
Ela ouviu-o entrar. Já não era a mesma mulher. Escondia sob
o avental, que nunca despia, o rasgo quente da raiva que, por mais que tapasse
com sorrisos, lhe fazia doer o estômago, como uma azia onde os ácidos nada mais
eram do que o refluxo da vida que odiava. E ele entrava – já sem casaco, só com
o peso – e beijava-lhe os lábios. Um contacto de dois segundos que lhe parecia
uma hora de penosa tortura nas catacumbas do mundo. Passava do beijo à tarefa,
com uma profundíssima competência. Nunca uma panela de sopa era melhor mexida.
A colher de pau dançando por entre o líquido amarelado, como se essa dança a
distraísse da chegada dele. E os olhos dela, movendo-se com a colher,
apreciando com agrado os riscos levemente mais escuros que ficavam na sua
passagem, focando neles uma atenção pouco sadia e mergulhando neles à procura
dos sonhos.
Sentavam-se os dois à mesa. Ela ligava a televisão para ver
a novela. Ele abria o jornal para ler a secção de desporto. Mas nem ela ligava
à novela nem ele a futebol. Queriam apenas a tranquilidade de não precisarem de
se falar. Para não precisarem de falar sobre as formas como ele procurara
mundos de luxúria e paixão onde, primeiro, devia ter havido amor. Sobre a forma
como ela procurara realização e conforto onde, antes, devia ter havido amor.
Sobre a forma como ambos se tinham esquecido, completamente, de amar-se – a si
mesmos e um ao outro.
Um dia ele entrou. E pendurou o casaco. E beijou-a, ao de
leve, sobre os lábios carentes. E sentou-se com ela à mesa. Naquele dia, ele
não trouxera o jornal. Naquele dia, o serviço de televisão tinha sido cortado.
No lugar do jornal ficava o espaço da madeira demasiado lustrada de uma mesa
meio vazia. No monitor, o aviso saltitante da operadora dizendo que restauraria
o serviço assim que possível. Havia o barulho das colheres a irem ao prato e um
espaço de silêncio que pedia, implorava, por ser cortado. E os olhares fixos na
sopa.
E foi naturalmente, para quebrar o silêncio, que se fizeram
ecoar as palavras, como se fizessem sentido:
«Devíamos ter um bebé», disse ele.
«Devíamos ter um bebé», repetiu ela.
Não concordavam há tanto tempo… parecia fazer sentido!
Marina Ferraz
*Imagem retirada da Internet
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