Sou a irmã caçula de três. Mas não nasci apenas com o apanágio de vir no fim. Nasci também com uma distância temporal que lhes permitiu serem adolescentes quando eu era criança. Ou, melhor dizendo, que me permitiu ser criança quando eles eram adolescentes.
Cresci com dois guarda-costas e dois anjos da guarda, que me protegiam principalmente do mau humor parental, assumindo culpas das minhas tropelias ou interpondo-se, qual muralha, entre a figura austera e o meu pequeno (e não tão inocente) eu. Seguiam, provavelmente, o exemplo dos meus avós, que também me protegiam. Ou até o exemplo da minha mãe que, quando não era a fonte da discórdia, também não permitia que mais ninguém o fosse.
Serve esta introdução para explicar o seguinte: quando penso naqueles dois seres, penso em pessoas com quem partilho três coisas – pai, mãe e amor.
Acontece que ser criança perto de dois adolescentes – ou, melhor dizendo, ser adolescente perto de uma criança – é bastante difícil na época balnear. A época em que a adolescente quer banhos de sol sossegados. O adolescente quer movimento e aventuras de gente grande. E a criança quer brincar com os dois. Então, ao fim de muita insistência – muitas e muitas insistências, vá – era-me dada a orientação para que cavasse um buraco do meu tamanho. Forma simples de conseguirem descanso e evitarem que o meu eu infantil parasse de repetir “vá lá” e “só um bocadinho”.
Cavado aquele buraco, brincavam comigo. O jogo chamava-se múmia. No fundo do meu humilde buraco, punham uma toalha. Sobre o meu corpo, outra, ajustando-a como quem aconchega um filho antes de dormir. Sobre essa, toda a areia que eu tinha tirado do buraco, até que só a cabeça ficasse de fora.
Imóvel, com o peso do que parecia ser uma tonelada de areia e incapaz de me mover, eu aguentava algum tempo antes de gritar: “Tirem-me daqui”. Uma, duas, três vezes. “A sério, malta, já chega!”. Nunca tardavam muito a condescender, vindo com risos que me faziam rir também e dizendo-me que a pele, normalmente húmida dos banhos e agora com areia colada, me fazia parecer um croquete. E corria atrás deles. Atirava baldes de água. Riamos. Construíamos cabanas nas dunas. Éramos felizes.
Hoje sei que os meus irmãos me prepararam mal para a vida.
Sei-o porque vejo gente com milhões fazer comigo o mesmo que eles faziam. Mandam-me cavar a sepultura. Enterram-me. Nem cabeça de fora fica. E eu que grite “tirem-me daqui” quantas vezes quiser. Porque não há quem venha condescender, rir, deixar-me ser feliz em paz.
Enumero os grãos de areia que me enterram. Guerra. Fome. Miséria. Injustiça. Mentira. Ódio. Desassossego. Mês no fim do salário. Contas. Impostos. Mais contas. Mais impostos. Mais ódio. Mais mentira. Outra guerra. A mesma guerra. A mesma guerra outra vez. Invasão. Do país. Da carne. Dos dados. Da vida. Taxas sobre a vida. Sobre o viver. Sobre viver. Sobreviver.
Sob... um monte de grãos de areia. Paralisada. Com saudades de ser criança. Enterrada pelas mãos compassivas de quem sempre me salvava de si e de mim e do mundo.
Grito
“Malta, já chega!”
Vem um novo carregamento de areia.
Sufoco na ampulheta que eles viram entre os dedos da opulência.
Destinando-nos cabanas mais caras e com piores condições do que aquelas feitas de cana e limo.
Deuses. Era tão melhor ser criança entre adolescentes do que é, agora, ser lúcida entre tiranos. Que saudades desses dias de praia, em que a sepultura que escavava não era aquela em que iria morrer.
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