terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A família




Não gosto do Natal. Maioritariamente porque não sou católica. Mas não só. Caio frequentemente em conversas sobre o quanto não gosto do Natal. Especialmente quando saio para ir ver as iluminações de Natal. Ou para fazer as compras de Natal. Ao qual, já agora, chamo Yule.

Usualmente as pessoas não discutem o meu desamor natalício. Mas lá acontece, uma vez ou outra, cruzar-me com os espécimes raros no meu círculo, que mal ouvem a primeira canção de Natal, ainda em Outubro, já põe luzes na testa e guizos enfiados em locais que não se dizem para não ofender  os menores.

E lá calhou ouvir: “Eu gosto do Natal porque é o tempo da família”.

Ora. De todas as gotas que já me caíram no amargo do licor de bacalhau da consoada, esta foi a que fez o azeite subir e temperar-me as paredes do rosto inquieto. Que se fale de Natal, lançando a palavra para as ruas prostituídas da repetição, pouco me interessa. Porque não gosto do Natal. Mas gosto ainda menos de ouvir a palavra família assim gasta, rodada como os leitões no espeto, cada vez que precisamos de justificar a beleza da quadra natalícia.

O Natal não é o tempo da família.

A família é o tempo. E o Natal nem entra na frase.

Na minha casa, talvez não possamos sentar-nos todos à mesa, todos os dias. Mas fazemos por estar, sempre que podemos. Aniversários, festas, problemas e dificuldades. Não deixamos lugares abertos para que passem ventos. Nem ficamos à espera que existam prendas debaixo do pinheirinho de plástico dos chineses.

Discutimos feito idiotas muitas vezes. No nosso presépio sobrelotado, estou certa que todos nós já rodámos a personagem de um qualquer animal de manjedoura, em algum momento. E também todos nós já personificámos a estrela. E já todos nós derrubámos as paredes e as reerguemos. Como os porquinhos, que não fazem parte da história mas podiam fazer. Em cimento. Em madeira. Em palha. Com o que houver à mão. Porque sabemos que fazer algo pelo outro é importante, mesmo quando não temos meios para dar o melhor.

As nossas guerras são feitas de sal. Choramos feitos malucos porque a minha sobrinha fez 18 anos ou porque a minha mãe deu um murro no teto do carro a dançar o Mamma Mia. De rir, no segundo exemplo, mas ainda conta. E fazemos literalmente centenas de quilómetros para ver a miúda morder as velas ou aprovarmos a coreografia ilícita dos ABBA. A mesma que fazemos usualmente em trio feminino. Fazemos. Não porque é Natal. Porque nos amamos.

Tanto, mas tanto, que nem reclamamos – muito - de ter de ver 60 fotos desfocadas e consecutivas nos vídeos da primária do meu pai. Tanto, mas tanto, que ainda guardamos uma ou duas perguntas para aquela história que a minha avó já contou 100 vezes. Tanto, mas tanto, que desejamos loucamente a 101ª vez que ela vai contar aquela história.

A família é o tempo.

Estaria mal se a celebrasse no Natal ou se só a tivesse no Natal.

A família é tudo o que fica quando tudo o resto se vai.

Rotos, nus, descalços ou com os pés a sangrar iríamos ter uns com os outros ao inferno, se fosse preciso. E que se lixasse o Natal e todos os seus anjos celestes.

O Natal não é o tempo da família.

A família é o tempo. Porque tempo é tudo. E família também.

Tenho uma família de um. Estejamos onde estivermos, estamos sempre juntos. E seja que altura for, estamos sempre lá. Contamos uns com os outros e uns aos outros esta história que não se diz. No Natal, em redor da mesa, esquecemos até que é Natal. E só nos juntamos pela desculpa. Porque é mais uma desculpa na soma de todas as outras desculpas. E qualquer desculpa nos serve.

No Natal, lá damos um presente uns aos outros.

Mas é o ano inteiro que passamos a dar-nos uns aos outros.

O Natal não é o tempo da família.

A família é o tempo.

E o tempo é eterno.






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terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Caído no chão




Se me encontrares algum sonho caído no chão, por favor apanha-o e deita-o fora. Não quero deixar o solo imundo por onde passo, com esses cacos de mim. Caem-me inadvertidamente dos bolsos. Assim, sem querer. Ainda pensam que são sementes e que, se caírem na terra, talvez possam crescer e dar frutos. Coitados. Ignora-lhes a loucura. Se me encontrares algum sonho caído no chão, por favor apanha-o e deita-o fora.

Larguei os sonhos aos teus pés. Nesse tempo. No tempo em que também eu – louca – pensei que eles pudessem ser semente. Descobri que eram vidro. Sob a bota da tua desonestidade, vi que quebravam. Apanhei-os de corrida. Movimento tão rápido e intuitivo que cortei neles as mãos. E neles quis cortar os pulsos, mas não consegui.

Do sangue das feridas cultivou-se algo de pútrido. Talvez não uma infeção mas uma desilusão que crescia na mesma medida. E fui metendo nos bolsos os cacos. Pensando. Talvez um dia desses um passo atrás. Nesse passo, como por magia, talvez se reunissem as peças do sonho e ele respirasse. Talvez fosse semente outra vez.

Tu és inquieto. Não sabes, como nunca soubeste, dar um passo atrás. Quando recuaste não foi um passo. Foi uma milha. Porque não me querias perto. Nem a mim nem aos meus sonhos quebrados, que pendiam nos bolsos.

Limpei os olhos às mãos e as mãos às calças. Tentei ensinar os meus pés a andar outra vez. Dormentes e sem destino, eles lá obedeceram ao som tremeluzente da minha voz rouca de mágoas e doente de frios. Tropeçando aqui e ali nas memórias de pedra. Escorregando aqui e ali na lama da saudade.

Da cabeça aos pés eu fiz-me e construí-me na falta de noção. Afirmei que a nudez era sonho. Que a sujidade era sonho. Que o ardor dos olhos era sonho. Porque todos eles eram poesia. E sonho é esse. Não é?

Quedando-se dos meus bolsos, os cacos insistiam que não. Irritavam-se da minha presença, que tudo aceitava, de forma mais ou menos despreocupada e ausente. Nem os sonhos quebrados queriam a companhia da mágoa. Ainda que ela fosse poética e repleta de arcaicos arrebiques de semântica.

Então, olha, inadvertidamente e quase sem dar conta, os passos foram libertando os cacos do meu bolso. E é por isso que te peço que, se me encontrares algum sonho caído no chão, por favor o apanhes e o deites fora.

Acontece que o sonho não era a poesia. Era o amor.

Acontece que o sonho não era amar. Era amar-te.

Acontece que o sonho não serve para nada.

Por isso, não leves a mal. Não largo por aí esses cacos de propósito, nem para te recordar do tempo em que sonhar era a unidade cristalina de um nós. Eles caem-me inadvertidamente dos bolsos, enquanto me convenço de que está tudo bem. Não quero sujar o chão que tu pisas. Por favor, se me encontrares algum sonho caído no chão, apanha-o e deita-o fora.






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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A fonte da minha cidade

Autor da foto: José Luis Filpo Cabana

Na fonte da minha cidade há o salário de um ministro em moedas enegrecidas. Todas elas foram atiradas sobre o ombro direito, como manda a tradição. Desejos mudos, eternamente condecorados pela efemeridade do momento.

Ao lado da fonte, o Senhor Roberto pede esmola. Tem sempre o copo vazio, pousado ao lado do saco velho, onde guarda tesouros de cartão e lata. E rugas no rosto. Manchas do sol na pele. Uma palidez na debilidade da voz que amornece um pouco a cada dia.

Não tem destreza para se debruçar sobre a fonte e esticar a mão até às moedas que lhe pagariam uma refeição quente pela primeira vez naquela semana mas também não se importa de não ter. Não quer pagar o alimento com os sonhos de ninguém.

Calha a fonte da minha cidade ser mesmo em frente à Câmara Municipal. Por ela passam, de fato engomado e gravata, aqueles senhores de pasta de executivo, cujo nome não importa, posto que todos lhe chamam “senhor doutor”. Na sua maioria não têm doutoramento. E, alguns, se tiverem licenciatura, foi provavelmente às custas dos pais que pobres eram e pobres permanecem, numa aldeia qualquer, sem terem dos filhos nem visita, nem telefonema.

Os sonhos que construíram, sobre os ombros dos pais, são como as moedas que pintam o fundo da fonte. Também ninguém lhes toca. Nem mesmo eles, que se esqueceram, algures, de que os sonhos são mais do que zeros à direita, antes da vírgula.

Poderiam, talvez, ter tido o sonho de tirar das ruas todos os Senhores Robertos. Mas sonhos desses não cabem nas pequenas malas de executivo onde se acumulam vouchers de férias, acordos confidenciais com fundos em contas offshore e bilhetes secretos das amantes.

Os desafortunados têm a sorte de sonhar. São eles que se despedem das moedas que pintam o fundo da fonte. Os ricos trocaram os sonhos por outra coisa. E é nela que se deixam afundar, sem a noção de que os ossos que ficam por debaixo das carnes rechonchudas vão virar pó na mesma terra que acolhe os de todos os outros.

A Dona Maria não teve muita sorte na vida. Talvez por isso ainda tenha sonhos. Tirar o Senhor Roberto da rua talvez seja um deles, mas não pode. Vê mal e caminha com dificuldade. Vende a dúzia de castanhas por dois euros e meio. Tem o rosto farrusco do carvão. O que ganha mal lhe paga as contas. Mas oferta sempre um cartucho de castanhas ao mendigo, que lhe sorri e as recebe como se fossem uma dádiva divina. Partilham, ao lado da fonte, a miséria dos dias.

Os turistas passam. Atiram sobre o ombro direito uma moeda. Desejam ser uma pessoa sem sonhos, como os senhores doutores de fato executivo, ignoram o pedinte e não compram castanhas para não estragar a dieta.

Anoitece na minha cidade e a fonte ilumina-se nos rostos que enegrecem. Há silêncio e moedas na fonte. Uma mão estendida aos céus e um carrinho de castanhas que se vai.

O Inverno é frio na minha cidade. As pessoas são mais.

E as moedas são sonhos plantados na fonte, alimentando sonhos que morrem, ao lado de gente condenada a morrer sem sonhos.





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terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Lágrimas no estendal





Adormeci de lágrimas nos olhos. Com a cama meio vazia. Uma sensação de frio que se plantava à esquerda de mim. E os lábios que murmuravam. Agarra-me. Ao ar. Aos cobertores. Aos vidros embaciados. Esses que talvez agarrassem. Mas não têm braços. Adormeci de lágrimas nos olhos. Um poema mudo numa palavra que já foi romance. E que hoje é gelo. Depositado na memória. Fazendo lascas de mim onde houve lascas de mimo.

Lá fora chovia. Podia ouvir. As gotas inusitadas contra os vidros. O seu som suave, no toque das folhas das árvores da praceta. Lá fora chovia. Eu queria dormir. Cerrei os olhos molhados de luar. E adormeci. Adormeci de lágrimas nos olhos.

Acordei para um mundo distinto. Havia um tom dourado a resplandecer no alcatrão do estacionamento. E um sol que se exibia no céu, vitorioso, enchendo o peito por entre as nuvens ocasionais, como se as tivesse vencido.

Saudou-me e eu saudei-o. Ele, com um toque breve de calor nas minhas mãos despidas. Eu, agarrando a chávena de café com açúcar. E trocámos um leve olhar de compreensão, enquanto eu decidia que era hora.

Era uma manhã de sol. Agarrei as minhas lágrimas. Pendurei as minhas lágrimas no estendal. À espera que secassem. Que se fizessem em bruma cadente, desvanecendo de mágoas pelo brilho quente e soalheiro do dia. Pendurei as minhas lágrimas no estendal.

O dia avançou. E escureceu. O sol bocejou antes de se deitar e agitou as copas das árvores, que deixavam cair mais algumas folhas outonais pelo chão sem tempo. Fizeram um tapete de tonalidades mornas para cobrir a sepultura das lágrimas que tinha estendido no varal, pela manhã. E, depois, o sol despediu-se. Foi-se. Deixou-me o estendal vazio de lágrimas.

Ao deitar-me, adormeci de olhos secos. Com a cama meio vazia. Uma sensação de frio que se plantava à esquerda de mim. E os lábios que murmuravam. Agarra-me. Ao ar. Aos cobertores. Aos vidros embaciados. Esses que talvez agarrassem. Mas não têm braços. Adormeci de olhos secos. Um poema mudo numa palavra que já foi romance. E que hoje é gelo. Depositado na memória. Fazendo lascas de mim onde houve lascas de mimo. E percebi. Doíam-me os olhos que não choravam.

Adormeci de olhos secos. A dor que não escorre, inunda. Afoguei nos olhos ressequidos. Tive saudades das lágrimas que secaram no estendal. E da chuva que não caía. E tuas também.






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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Ganchos, palhetas e más notícias



Encontramo-los. Um pouco por todo o lado. Ganchos de cabelo. Palhetas. Más notícias. Parecem migalhas pelo chão da casa. Obrigando-nos a fazer vénias desassossegadas a cada dois passos. Como se fossemos servos da vida e não seus convidados.

Brilham no encontro do sol. Ou camuflam-se nas frestas da madeira. Maquilham-se de novidade. E lá ficam. Dentro dos tubos das máquinas de lavar. Dentro das ranhuras dos móveis. Encostados aos cantos do azulejo. Perdidos no meio dos lençóis. Ganchos e palhetas. E más notícias. Perdidos por todos os espaços plausíveis e implausíveis.

Os passos que nos separam do encontro com o inesperado tornam-se eternidade. E podemos passar a vida de joelhos. A apanhar o metal dos ganchos. O plástico das palhetas. A inquietude das más notícias. Se nos deixarmos levar pela tendenciosa esperança de que não exista caos onde a ordem nunca governou.

E avançamos. A casa é um mundo maior nos olhos que buscam o equilíbrio. E torna-se difícil gerir o encontro caótico com objetos inusitados pelo soalho. Agimos como se eles tivessem alma ou resposta pronta. Intempestivamente gritando com eles. Ao mesmo tempo que nos curvamos, num gesto mecânico e que pouco diz sobre as nossas crenças ou lealdades.

Ganchos, palhetas e más notícias. Podemos esperar encontrá-los por aí. Espalhados no chão das nossas vidas. Perdidas e à espera do encontro. Encontradas e à espera de se perderem. Objetos e sentidos com vida própria. Que nunca sabemos onde estão e que estão em todo o lado. Fazendo-nos revirar olhos. Olhos que se pousam no chão. E que os encontram, no vento que nos sai dos lábios frustrados. Outra vez. Raios.

Desconfio que os ganchos de cabelo, as palhetas e as más notícias não tenham culpa. A culpa reside nos olhos que, cansados do confronto, se prendem no chão. O problema reside mais no curvar do pescoço do que no curvar de costas. Talvez os olhos no chão sejam a vénia mais usual da atualidade e a que mais dano causa a uma alma que nasceu para as vistas panorâmicas do ser.

Confesso. Estou farta de os encontrar. Ganchos, palhetas e más notícias. Talvez seja hora de largar o chão. Se não com os pés, ao menos com os olhos. O horizonte fica em frente. E o pôr-do-sol também está lá todos os dias. Não tem más notícias. Nem ganchos de cabelo. Nem palhetas. Tem raios e tonalidades quentes. Tem a novidade repetitiva da noite que cai e anuncia o dia que se segue. Ainda que o vejamos de rosto erguido, esse sim, merece que nos curvemos na mais sentida das vénias.





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terça-feira, 20 de novembro de 2018

As meias




Sempre gostei demasiado de meias para alguém que não gosta de metades. Meias, entendam, não é metade de nada. Por exemplo, enquanto um amor pela metade não é coisa nenhuma, as meias podem ser um amor inteiro.

Na minha vida, as meias têm sido um amor inteiro. Devo ter um par de meias oferecido por cada pessoa que amei. Não porque as coleciono ou porque as pessoas o saibam. Mas porque, de alguma maneira, friorenta e impossível, as pessoas habituaram-se a tentar buscar o meu conforto e me estenderam sempre, sem sequer saberem disto, esses pedaços quentinhos de carinho.

Isto vem desde há muito tempo. Quando, em menina, num Inverno friorento de pés-gelo, a minha avó me calçava um segundo par de meias e me deixava deitar no sofá, de pezinho infantil enfiado no bolso do seu xaile favorito. E o meu avô retorquia, quando ela não o fazia depressa “vai calçar mais um parzinho de meias ao pinguim, vai”.

Pela história de mim, houve momentos de ternura imprevista. Um amigo nortenho que me estende as meias de lã castanha. “Estas são mesmo quentinhas”. Uma forma de dizer “gosto de te ter aqui, sei que está frio mas quero que estejas bem”.

O namorado que, em eras mais amenas, vendo-me a paixão pelas riscas cinzentas e pretas, me oferece um dos seus pares de meias. “Estas fazem conjunto com as tuas cuecas favoritas e a camisola de malha”.

A minha mãe, que todos os anos lá encontra um par mais quente do que o anterior, ora com motivos natalícios, em turquesa; ora com pelinho por dentro; ora com antiderrapante “porque o chão cá de casa está uma desgraça”. E ninguém quer que eu caia das escadas abaixo… outra vez. Ou que me queixe de frio. Outra vez.

O facto é: aprendi a amar as meias. Logo eu, que detesto as metades. Amo as meias. E vejo nelas expressão de amores maiores do que a casualidade.

Gosto de meias. De meias caminhadas de sorriso no rosto. De comer o crepe com gelado a meias. De meias conversas, permeando instantes de pausa entre o trabalho. Gosto de meias de lã. De meias de algodão. De meias-calças. E do sorriso cativo que deixam no rosto, a par com o calor nos pés. Na alma. Em mim.

As meias. Tão cheias de história e com histórias tão cheias de amor. Gosto de meias. E, volta e meia, pensar nisto aquece-me por dentro e faz-me sorrir.






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terça-feira, 13 de novembro de 2018

Aprender a ser feliz



Aprender a ser feliz é horrível. E é por isso mesmo que a maioria das pessoas não quer fazê-lo. Aprender a ser feliz é horrível.


Desencantam-se as vozes para contar tragédias. Há marés de comiseração e pena. Coitadinho: tão boa pessoa e não merecia. Foi a vida. Foi o mundo. Foram os outros. Foi o desígnio dos Deuses. Coitadinho. Uma mão que bate nas costas. Um olhar de ternura, quase materna. E, de repente, um calor na alma amarga que até parece acalmar as mágoas e trazer um pouco de aventurança ao dia que, não tendo terminado ainda, poderá trazer o bom e o mau, conforme a sina assim o ditar. 

Esta é a tua história. Mas não leves a mal. Porque esta também foi a minha história. Esta é a história de muita gente que gosta de insistir na ideia criada, globalmente sustentada e filmicamente reproduzida de que a nossa felicidade está nas mãos de entidades, critérios e condições que nos escapam e nos transcendem.

Estendemos a mão à cigana e focamos os olhos nas cartas de tarot. Queremos ver nas borras do café e descobrir nas rachas da bola de cristal. Será que vamos ser felizes? Será que esta dor passa? Será que o sofrimento não tem fim? E, por detrás de panos e instrumentos, de toques e de análises estruturadas, a resposta dada depende sempre da mesma condicionante e tem sempre o mesmo obstáculo. Sim, dizemos, vais ser feliz mas (existe este mas) vais fazer por isso?

Dizemos que sim. Que vamos fazer por isso. Mas a ideia de termos de fazer algo nas nossas vidas para sermos felizes é algo que frequentemente se interpreta muito mal. Vou, é claro. Pensamos. E depois enchemos os dias de pessoas. Ou de gatos. Ou de filmes. Ou de álcool. Ou de drogas. Ou de roupa. Ou de promoções. Ou de viagens. A busca pela felicidade passa, de forma mais ou menos explicita, pela procura daquilo que nos dá um momento de prazer.

Ser feliz não é ter um momento de prazer. Ser feliz nem sequer é ter, em soma, mais momentos prazenteiros do que desagradáveis. Isso é estar feliz. Ser feliz é outra coisa. Uma que não acontece de forma natural nem por se tentar enfiar dentro do vazio, que é nada, um sem fim de coisas que são sugadas e se mesclam com o vazio até serem, também elas, fragmento de coisa nenhuma.

Ser feliz é uma aprendizagem. Quem aprende a ser feliz não vai ter sempre sorte na vida nem vai, de súbito, conhecer apenas a parte mais doce da existência. Não existe um recanto do mundo programado e modelado para aqueles que aprendem a ser felizes. Não! A dinâmica do mundo é a mesma para todos. Não há ninguém que não acorde mal disposto sem razão. Não há ninguém que não tenha um acidente, uma discussão, um problema, uma dificuldade. A vida de uma pessoa feliz é igual à de uma pessoa triste. E a diferença fundamental está na escolha que se faz. Na postura que se adota. No olhar que se lança sobre a mesma situação.

Mas aprender a ser feliz não é fácil. Implica, para começar, que se olhe para fora, para compreender quão pequeninos somos, no meio de um mundo com tanto potencial e com um potencial tão mal aproveitado. E que, nesse olhar que se dá ao outro, sejamos capazes de nos despir de nós, das nossas ideias e preconceitos, para ver e aceitar que a dor alheia, ainda que não nos doa na pele, pode tomar proporções que nem ousamos pensar e conhecer.

Depois de olhar para fora, é importante olhar para dentro, para percebermos que, na nossa insignificância, somos ainda dotados do privilégio de existir e da inteligência para superar as perdas, conquistar batalhas e resolver problemas.

Uma vez feito isto, é ainda necessário que se encontre espaço para pensar nela. Na palavra proibida. Na inimiga comum, que permeia os tempos, qual presença demoníaca sob o véu do pensamento. A morte. É importante pensar a morte para ser feliz. Porque ela, pela sua iminência e infalibilidade, tem o duplo poder de intensificar os momentos e abrir uma porta de saída de emergência. Saber que vamos morrer faz-nos amar a vida. Saber que podemos morrer faz-nos largar o temor do erro, da falha, da privação.

E, nesse olhar para dentro, para fora e para a morte, há uma coisa que salta aos olhos. Podemos aprender a ser felizes. Porque a felicidade não é um momento e não é uma situação. Não é uma circunstância nem uma casualidade. A felicidade é uma escolha.

Mas aí é quanto tudo se complica! Quando sabemos que a felicidade é uma escolha. Quando sentimos esta certeza, feito toque do sol na pele, torna-se muito mais difícil viver. É horrível. Porque, a partir daí, se não formos felizes não há espaço para desculpas. Não há espaço para atribuição de culpas alheias ao mundo, à vida, aos outros ou aos Deuses. Sim! Torna-se muito mais difícil viver. Porque ninguém quer olhar ao espelho para saudar o único culpado da sua própria miséria. Aprender a ser feliz é horrível. E é por isso mesmo que a maioria das pessoas prefere agarrar-se às convenientes cordas de fatalidade. E sofrer alegremente na inábil e asnada libertação de ser servo das sádicas linhas do destino.

Aprender a ser feliz é horrível. E é por isso mesmo que a maioria das pessoas não quer fazê-lo.


Isto deixa-me triste. Mas a culpa não é minha.






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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Até logo




Eu podia sentir sobre as minhas costas nuas o toque da palma da tua mão. Quente. Era sempre quente a palma da tua mão. Especialmente depois de fazermos do corpo um do outro templo. E de orarmos essas rezas unânimes e tão despidas de pudores. Com lábios arrancando beijos do suor da pele. E com dedos riscando traços um no outro. Escrevendo a história da paixão. Naquele dia, podia sentir sobre as minhas costas nuas o toque da palma da tua mão. E imaginava-te os olhos fechados e serenidade no rosto. Imaginava. Embora não pudesse olhar para ti. De rosto mergulhado na almofada, a única coisa que me sobrava era a tentativa. Essa de chorar baixinho e sem estremecer, para que não notasses.

Disseste que me amavas. E eu disse que te amava. E os lençóis debaixo de nós riam-se da ironia das palavras que trocávamos.

A hora do jantar estava perto e tínhamos mesa marcada no nosso restaurante favorito. Quiseste apressar-te no vestir da roupa e que eu fizesse o mesmo, para não nos atrasarmos. E, eu pedia aos ponteiros para terem calma. Para podermos continuar ali. Na cama. Com a palma quente da tua mão nas minhas costas nuas. Lembrando a tensão de corpos que vibravam ao toque e arrepios de prazer que se entoavam em murmúrios ou gritos, conforme mandava o desejo. A hora do jantar estava perto e tínhamos mesa marcada. A tua mão quente largou as minhas costas nuas e a almofada bebeu-me a última lágrima, antes de eu atuar um sorriso e plantar um beijo em ti.

Disseste “vamos”. E eu disse o mesmo. E fomos.

Na mesa, com a simpatia usual, foram colocadas as iguarias de sempre. Não arriscámos no menu semanal nem nos pratos que nunca tínhamos provado. Escolhemos os nossos favoritos. Da entrada à sobremesa. Vivendo, sem ousadia, os sabores que escondiam o suor e a saliva desenvergonhados que ainda trazíamos nos lábios. Demos as mãos sobre a mesa. Separando-as só quando as travessas se pousavam no meio. E o funcionário ria amigavelmente de nós e dos nossos pedidos expectáveis. Sorriamos. Um ao outro e àquele homem, alheio à realidade.

Pagaste a conta. Ao sair, puseste a mão na minha cintura. E entrámos na carrinha.

A trivialidade da conversa não rimava com o ardor crescente que eu tinha no nariz nem com o olhar embaciado que pedia socorro. Pedi à estrada para ser longa. Aos ponteiros para se estenderem nos segundos. Mas nada, nada me respondia. Cravei as unhas nos joelhos e disse a mim mesma que não ia chorar. Uma norma que quebrei ainda antes de acabar a frase. Paraste o carro no estacionamento à frente da nossa casa. Lá fora chovia. Trocámos um beijo apaixonado, com lágrimas à mistura. Provei o sal dos teus olhos e tu o sal dos meus. Repetimos que nos amávamos. Porque nos amávamos. E, depois, demos um abraço que nos partiu os ossos da alma.

Tinhas estacionado o carro à frente da minha casa. Essa que, agora, não seria a nossa.

E não tornaríamos a fazer amor. Nem a trocar um beijo. Nem a dizer que nos amávamos.

Dissemos “até logo” para não dizer “adeus”. A chave que rodei na porta do prédio foi a que rodaste no carro. Virei costas e dobraste a esquina.

Matámos o “nós” para que o “eu” vivesse. E a esperança do calor a troco de um amanhã ameno. Limpei as lágrimas antes de entrar em casa. Disse a mim mesma que não ia chorar. Não chorei. Arrastei o móvel pesado dos livros para outra divisão. Sentei-me no chão a olhar para ele.

A minha gata cheirou-o de ponta a ponta e deu-me uma cabeçada felina em cumprimento.

“Fica bem, não fica?”, perguntei-lhe. Ela não parecia discordar. “Ainda bem que gostas… agora somos só tu e eu.”

E a solidão. Mas não lhe disse. Não queria que ela ficasse triste.





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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Neg(r)o



Visto-me de negro para negar a morte no meu reino de caos. E sigo os passos da sombra para honrar o sol do meu mundo de ocaso. Se me fazem rainha do tempo, destruo os ponteiros. E a eternidade começa assim, no definhar da vida que me fecha os olhos.

Sejam bem-vindos. É assim que cumprimento os espíritos dos meus antepassados. Sentam-se comigo à mesa e comem da comida farta que lhes oferto. Bebem do mesmo vinho que eu. E fingimos todos que não bebemos o sangue do infortúnio que nos colocou um véu de invisibilidade.

Rimos de piadas óbvias e mórbidas, que alguém diz. E esquecemos, por dois segundos, que distância entre mim e eles é a do corpo que eu tenho e eles já não. Mas relembramos que somos pó. Mais ou menos compacto. Sobre a terra ou sob ela. Alimentando raízes e encontrando espaços de sonho.

Conto-lhes que os meus dias são caminho para o sono eterno. E eles contam-me que estão à minha espera, tentando tirar-me agruras do caminho. Conto-lhes que tento dignificar os seus esforços de pão e labor, com amplitudes mornas de esforço que os não suplantam. E agradeço. Porque, não fossem eles, e eu não estaria aqui, sentada à mesa, a falar com as paredes e o prato cheio que permanece em frente à cadeira onde se senta a memória de alguém.

O que sobra da memória humana responde-me com um traço saudoso de alívio quente por entre a noite fria. E imagino rostos que me sorriem. E vozes que me prometem proteção e alento para os dias mais árduos.

Mas nem todos os que se sentam à mesa comigo esta noite têm rosto de gente. Alguns têm bigodes e patinhas. Mau feitio, de pelo mais curto ou mais longo, com ou menos trejeitos de donzela felina. Os seus nomes enunciam azar ou realeza. E saúdo esses nomes com guloseimas. E uma festinha imaginária nas cabeças.

Os dias que vivo, vivo-os porque alguém os viveu antes de mim. E, neste dia que é de passagem, desvelo aos poucos a ideia dessa eternidade de separação e sento-me com eles à mesa.

Sinto-os na minha pele porque os trago na minha pele. E no meu sangue. E na minha memória. Atirados para as minhas veias por cada batimento cardíaco. Sinto o sabor do mel nas palavras que sei que ouvem. E um travo de whisky envelhecido. E um toque de mousse de chocolate. E um ronronar distante na ideia da saqueta azul.

São os que me fizeram quem sou. E é por eles que me visto de negro e nego a morte. Porque não morre jamais o que permanece vivo na memória.

Bebo um travo agridoce de saudade nesta noite. Saúdo os meus ancestrais e sento-me com eles à mesa.

Há afeição servida nos pratos de todos nós. E vinho tinto nos cálices. E mãos dadas na invisibilidade dos corpos. Sinto-os em mim. E sou deles. Mais uma vez.

Visto-me de negro. Nego a morte. Faço um brinde. A todos eles. A quem foi para que eu viesse a ser e a quem me fez ser o que hoje sou. Estamos todos vivos esta noite. Estaremos todos vivos enquanto houver mesa posta a preceito. E uma vela acesa. E uma memória em chama. E um copo de vinho. E amor.


Se a donzela da primavera pode ser rainha do submundo por seis bagos de romã, eu posso ser anfitriã de quem amo por uma noite, trajando negro e negando a morte.






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Fotografia de Analua Zoé 




terça-feira, 23 de outubro de 2018

As nuvens



Há nuvens no horizonte. E nos meus olhos que nunca choram. Porque é que eles não choram?


Desespero de fragilidade. E mãos de metal. Clicando mecanicamente nas teclas. Procurando sentidos, sem sentir. (Ou será por sentir demais?). Oceanos díspares no centro de mim. Que me procura e me arrebata. E desassossego onírico nos traços mais concretos da minha insensatez. Robustez de fragilidade. E mãos de madeira. Desenhando traços mais ou menos díspares, que navegam pelos ares. Nuvens no meu olhar. Nuvens no meu pensamento. E uma história calada.

Tenho segredos. Os meus segredos são uma espécie de sol matinal que, ao refletir no mar dos meus anseios, parece sempre lua. E no manto luminoso do meu teto há resquícios da noite mais escura, que me serve de chão. Permaneço, caótica, entre ambos. Com tanto no peito e tão pouco no semblante.

Quem passa por mim diz que sou forte. Enaltecem-me a coragem, sem saber os medos que povoam o meu peito. E aqueles que povoam as nuvens dos meus olhos. E as nuvens do outro lado da janela, sobre o horizonte. Toda eu sou temor de algo ou por alguém. Mas é tão difícil ver o medo sob a armadura cutânea do meu sorriso, que ninguém o vê. Exigiria um mergulho em profundidade em mim. E quem se aventura pelas estradas penosas desse inferno, onde só eu descobri os segredos da sobrevivência e do equilíbrio?

Há nuvens no horizonte. E nos meus olhos. Mas os olhos estão secos. Como um céu nublado que não chove, por recusar o Inverno. A história das nuvens dos meus olhos tem muitas nuances. Gotas etéreas que falam sobre tempos idos e tempos que regressam amanhã, apenas para atormentar. Cada gota é uma mágoa. E cada mágoa é um poema que termina ali. Há quem chore lágrimas, eu choro textos. E é neles que coloco a infinitude do que se enraíza dentro de mim. As minhas lágrimas não se vêem. As minhas lágrimas lêem-se. As minhas lágrimas não se limpam. Fecham-se no canto superior direito do ecrã.

As nuvens dos meus olhos não choram. Escrevem. Ponteando o céu do olhar com farrapos de emoção que se dizem estação terminal na viagem ao caos de mim. A história das nuvens é uma história de aqui e de ali. Minha e de todos os outros. Minha para todos os outros.


Desculpem se os meus olhos são reflexo outonal da noite no oceano da vida. E se as nuvens não chovem. E se o caos não ecoa. Eu não nasci para chorar. Nasci para escrever.





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terça-feira, 16 de outubro de 2018

Lena, sem dona




Ouvia-se a voz dela a meio quilómetro de distância. Cada frase pontuada no seu começo por um “eh”, orgulhosamente lançado por entre olheiras e sardinhas do sol, que se esqueciam nos traços sempre ténues e mornos do sorriso. No sorriso dela, era sempre Verão. Ainda que nevasse. E os olhos se entristecessem atrás de cortinas de tempestade. E havia um tom meio estridente, meio orado, nas palavras que se diziam, gritadas e omnipresentes, como se a própria Terra chamasse.

Não faltavam, nunca, no tom das ondas sonoras da sua voz, palavras de conforto e de crítica. Mulher de semblante franzino e humilde, ela trazia até ao público (geral ou particular, conforme calhava) uma cegarrega de ideologias pacatas, que tanto ofendiam como incentivavam mas que, duras ou suaves, retratavam sempre a crença que ela trazia no peito. Não tinha “papas na língua”. Mas tinha sempre o abraço pronto no fim, se fosse preciso amarrar as feridas abertas por verdades inusitadas com um pouco de calor e de amabilidade.

Dos filhos – dois – fazia o mundo. Deles, falava com orgulho e devoção. Contando traços superficiais de dificuldades que todos sabíamos mais profundas e mais caóticas, insistia no futuro como um espaço de realização e nunca deixava de lado o orgulho para lhes mencionar os feitos, fossem grandes ou pequenos. Os filhos não eram apenas os seus heróis. Eram a sua religião, a sua alegoria, a sua força vital. Neles se sustentava e por eles se fazia como era. Mulher simples e forte, sempre com um sorriso.

Era uma boa amiga. Até de quem, tão evidentemente, não era amigo dela. Até de quem, por ditos e desditos, lhe fazia a vida da cor das olheiras. Largava tudo para ajudar os outros. Prejudicava-se para ajudar os outros. Parava, quando perguntava se os outros estavam bem. E queria ouvir a resposta. Não lhe faltavam, nos meandros da voz e da fé, palavras de alento sobre um amanhã melhor. E havia tanto de vida nela que, por entre a depressão dos dias, quase nos sentíamos forçados a concordar que amanhã ia ficar tudo bem.

Ia ficar tudo bem. Mas nem sempre ficava. E notava-se nela um traço de irritação latente com as injustiças do mundo. De duas coisas, ela não gostava! Injustiça e arroz de tomate com pimentos. E dizia-o, de uma forma muito própria, que trazia mensagens de choro enquanto nos despoletava o riso.

Helena de nome e Dona Lena nos traços mais jovens da minha voz, ela insistiu sempre na receita que eu, igualmente teimosa, insisti em nunca seguir: “Dona não”. Não lhe chamava só Lena. E ela não gostava disso. E eu, que sabia que ela não gostava, lá ia fazendo mousse de chocolate, para me retratar desta falha, que era frequente mas nunca por desrespeito ou desatenção.

Um dos companheiros dela era o cigarro. E as piadas sobre a morte quando alguém lhe dizia que não fumasse, ditas de forma tão leviana, tinham graça na altura. Agora já não. Tinham piada enquanto a voz dela se ouvia a meio quilómetro de distância. E enquanto falava dos filhos, sentada na mesa de jardim. E enquanto reclamava das fotos do meu ex-namorado, fixadas na parede durante mais de seis anos. E enquanto reclamava da mousse de chocolate que lhe apetecia e já não comia há muito tempo. Nessa altura, as piadas tinham graça porque a morte era um pesadelo muito distante e uma imagem desfeita no fumo da possibilidade inconcreta. Mas um dos companheiros do cigarro era a doença. E um dos companheiros da doença era a morte.

Sem voz estridente e pontuada com “ehs” no começo da frase, sinto uma espécie de vazio onde havia riso e vontade de dizer, como antes disse, que gosto dela. É uma falta que começa a tomar forma quando a vida se apaga, como uma beata, no cinzeiro do mundo. Quando tudo o que resta é um espaço vazio na mesa e um espaço cheio no coração.

Com dificuldade e pela primeira vez, tento honrar o pedido que me fez e pensar nela como a Lena (sem dona). Nas suas olheiras e nas sardinhas do sol, que se esqueciam nos traços sempre ténues e mornos do sorriso. Nas palavras, duras ou suaves, mas que retratavam sempre a crença que ela trazia no peito. Na amiga que largava tudo para ajudar os outros. E consigo fazê-lo. Pela primeira vez. Porque a Lena era o conforto de um “tu” sempre presente. Foi assim que se marcou nos outros. É assim que permanece. E é assim que, mesmo depois da noite mais fria ter caído nos seus olhos e temperado os nossos com água e sal, continuará a viver em cada um de nós para nos fazer acreditar que amanhã vai ficar tudo bem.





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terça-feira, 9 de outubro de 2018

Jogo de interesses




Isso não foi uma relação. Foi um jogo de interesses. Foi o que me disseram. E eu, que me levantei num repente e usei de todas as minhas forças para não dizer nada, devia ter dito. Devia ter falado. Devia ter começado assim: “tens razão”.


Tens razão. Foi um jogo de interesses.

Eu e ele. Que nos demos como poucos se dão e sentimos o que poucos sentem. Fomos isso. Só isso. Um jogo de interesses. Tens razão.

Quando começou, por exemplo, estávamos os dois interessados em dar um ao outro o mundo. Claro que nenhum de nós tinha um mundo para dar. Éramos meros mortais, ambos de mãos vazias e com trocos no banco. De bolsos rasgados. De sapatos que diziam ao chão que íamos descalços mas enganavam os céus. O que tínhamos? Tínhamos um corpo. Então, foi isso que demos. Vez após vez. Uma entrega fatalmente condenada pelas horas de sono, que nos obrigavam a parar e pelas horas de refeição que nos forçavam a comer. Fora isso, demos o corpo. Tantas vezes que, em alguns momentos, pareceu que eu não começava e não terminava. Como se fossemos um.

Mas os dias passam e nem toda a vida é cama. Então, interessámo-nos pela arte um do outro. Um interesse mútuo que chegou a render trabalhos conexos, alguns dos quais nos pagaram dívidas e nos puseram comida na mesa. Mas eram poucos, esses que fazíamos os dois. Então, interessámo-nos em ter uma vida melhor. Arranjámos novos trabalhos, que nos faziam dormir no acordar do sol ou não dormir de todo. Esgotámos energias, na demanda por essa vida melhor que estávamos interessados em ter juntos.

Interessámo-nos em quebrar as distâncias e fomos viver juntos. Partilhámos tarefas com o interesse de que o outro soubesse sempre que não estava só. E, quando um não podia, o outro ia. Quando um não conseguia, o outro fazia. Quando um caía, o outro segurava as pontas acutilantes da vida. Tínhamos interesse em ser o sol e o solo um do outro. E fomos, muitas vezes. Tantas vezes que, pensando nelas, parecem um contínuo de histórias abraçadas para que ninguém se afundasse nas amarguras do mundo.

Interessámo-nos em seguir. De tal forma que, por entre conversas que viravam discussões e discussões que se faziam pedidos de desculpa, demos por nós a anular a parte de nós que nos fazia ser gente. Fomos a ideia que tínhamos do que o outro queria de nós. E perdemos, aos bocadinhos, numa completa ausência do “eu”, aquele ego que bem conheces e que primas por cuidar e acarinhar, como nunca fizeste aos teus filhos.

Neste eterno jogo de interesses, interessámo-nos por voltar a ver um sorriso nos lábios sedentos de beijos e recheados de mágoas. Dissemos um adeus que se concretizaria apenas depois e partilhámos, em despedida, amor feito de cama e de palavras que eram já memória, assente no prazo de validade de nós.

Interessámo-nos em ficar. Cheios de amor um pelo outro. Mas amigos. Ainda que a amizade fosse um corte e uma brecha, entre o que podia ter sido tanto mais. Como nunca amaste mais do que o teu reflexo e nunca deste mais do que produtos físicos e adquiríveis no teu fundo de previdência, provavelmente este é um conceito que te escapa. Mas interessámo-nos em que o outro fosse mais feliz do que nós mesmos.

O meu jogo de interesses foi uma instituição. Dessas que não cabe no diâmetro da aliança e que não se concretiza com a procriação ausente de seres indesejados. Nunca tivemos contas em nome dos dois nem bens comuns. Mas partilhámos uma vida, um coração, um amor… de uma forma tão interessada e presente que em nenhum momento sentimos que estivéssemos a perder a noção da vida.

Perdemos. Perdemos tudo. É o que acontece quando nos interessamos a ponto de apostar tudo. Perdemos tudo. E a perda, ao que parece, define agora tudo o que fomos.

Boa educação e pouco afeto foi uma máxima que aprendi há muito tempo, pelas mãos de uma relação de sangue que me fez gente… mas não pessoa.

E, se o que tu e eu temos é uma relação… tens razão! Com ele, eu não tive uma relação. Tive um jogo de interesses. Perdi. Mas ainda me interesso. Porque amar é isso mesmo. Estar interessado no outro. Desejar que ele esteja bem. E sofrer calado… se isso significar que, ao longe, podemos vislumbrar um sorriso.




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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Cor de âmbar


Para o meu avô

Sento-me na varanda. Há amendoins. Cascas espalhadas pelo cinzeiro, onde algumas beatas se deixaram e a cinza se desfaz. Tens o cigarro entre os dedos e olhas o mar. O pôr-do-sol raia nos teus olhos e confere-lhe uma cor de âmbar, semelhante ao do whisky puro que diariamente agitas no copo largo antes de beber um pequeno golinho. E olhas para o horizonte. Esse que se reflete nas lentes dos teus óculos. E que te deixa os olhos mais claros. Mais doces. Ainda mais doces quando largam o horizonte e se pousam em mim. A noite cai. Tu fumas. Eu como amendoins. Uma confusão de cinza e cascas sobre a mesa, agitados e movidos pelo vento. E o verão está todo no som da televisão, atrás de nós, que debita palavras de um mundo que começa a desfazer-se. Tu sabes que o mundo está desfeito e eu não. Eu sou só uma criança. Sentada na varanda a comer amendoins até que o sol desapareça e as sombras da noite cheguem.

Elas chegam. Mas eu não tenho medo da noite. Estás ali. E eu sei. Não há sombra noturna nem mundo desfeito que vença esse teu jeito de homem forte. Sinto-me protegida ao teu lado, com o cheiro acre do teu cigarro e o toque inebriante do teu copo de whiskey, agora vazio. Sinto-me segura com o teu sorriso e com os teus olhos castanhos. Sinto-me segura contigo.

Pergunto-te se amanhã podemos ir ao parque infantil. E dizes que sim. Não o dizes porque te apeteça cumprir os três passos que nos separam do parquezinho central, onde se agitam baloiços e gritam crianças mais desinquietas do que eu. Dizes que sim porque não sabias – e nunca soubeste – dizer-me outra coisa. Nem mesmo quando eu queria torradas com manteiga e Chocapic ao lanche, pelo gosto de molhar no leite esse universo gorduroso de manteiga, depois do travo doce dos cereais já o ter maculado com a tonalidade beje. Nem aí me dizias que não.

Tentei não abusar muito dos meus pedidos mas sei que o fiz. Sentada naquela varanda, que ainda permanece, porque a pedra não se desgasta ao ritmo dos homens, eu fiz muitos pedidos. E ali comi muitos amendoins ao pôr-do-sol, depois de dias de praia que começavam pela madrugada, depois do leite com chocolate e das padas com manteiga. E, um a um, foste acedendo a todos. Porque os teus olhos, que eram castanhos, tinham a tonalidade do âmbar quando o sol se punha. E todo o seu mel vertia na minha direção, como seu fosse o mundo.

O tempo passa. A varanda vendeu-se, com o resto da casa, para nos livrarmos da garagem inundada e da confusão da avenida. O tempo passa. E a varanda, que permanece, quase sempre sem vida, sem alma, vazia de tudo, ainda está lá. Enquanto que tu, com toda essa vida, toda essa alma, tão cheio de tudo, já não estás.

Sinto que vivi o âmbar dos teus olhos com pedidos feitos aqui e ali, na voz de criança que sei que tive e que tu recebeste com ternura. E sei que cresci a fazer pedidos nunca negados. Fomos novamente essas duas pessoas sem idade que se sentam na varanda da minha memória, quando eu já não tinha a varanda e tu já não tinhas a energia.

Uma noite, levantaste-te da tua cama de hospital. Vestiste a camisa e puseste o boné. Libertaste-te dos fios que te prendiam às máquinas e caminhaste até ao meu sonho. Sorriste. Eu sorri. Falámos com os olhos sobre o que sentíamos, porque nunca fomos bons a usar os lábios para falar de sentimentos. Deste-me um beijo na bochecha, em despedida. Tinhas novamente o reflexo do sol poente nos olhos cor de âmbar quando viraste as costas. E eu, que sempre te pedi demais, chamei por ti e disse: “despede-te também deles”.

Nunca me negaste um pedido.

Nessa noite, toda a gente sonhou contigo.

E o sol que se pôs nos teus olhos, nunca mais nasceu.



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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Amor de folha caduca




Meu amor de folha caduca. O Outono chegou e tu não estás. A tua ausência já me dura há uma Primavera e um Verão. E o relógio continua a marcar a hora do Inverno. Não quis que houvesse hora além dessa, na qual me deixaste com tempo para olhar para os ponteiros do relógio e pensar.

Há um cheiro a canela no ar e tu não estás. Há pedaços de chama que se esbatem em fumo e dançam, antes de desaparecerem no inconcreto de tetos e paredes, e tu não estás. Há um bolo de cenoura a cozer no forno, e tu não estás. Há um lago inteiro de mágoas nos meus olhos secos e tu não estás.

Confesso-me incapaz de sentir. Como se o coração, demasiado cansado de amar até ao limite da loucura, tivesse finalmente feito greve. Tirado folga. Férias. Bem merecidos dias de repouso. E, então, é como se ele não sentisse mais do que a vontade de não sentir. De malas feitas, o meu coração sabe que está mais disposto a largar as possibilidades do que a somá-las à longa lista de nuncas e sempres. Está mais disposto a dizer “adeus” do que a ficar. E tudo o que a ele se somasse o reduziria. Porque os abraços sobre o coração o oprimem, o amassam, o amarrotam. E as sistoles e diástoles solitárias, nesse inferno sem anjos nem demónios, são o que, aos poucos, estão a permitir que ele retome a forma e se faça inteiro. É um processo moroso e que me dói até nos espaços vazios do eu. Ainda bem. É o pouco que me resta para lembrar os tempos em que o coração, hoje grevista, nem folgas tirava.

As folhas começam a cair. E tu não estás. Também não é como se conseguisses, agora, desbravar o mato por entre as silvas para chegar às flores amenas da suavidade que eu não tenho. Sinto que não quero nem posso amar nada além de mim. E tu não estás. Faço-me amante de mim mesma. E tu não estás. E falta-me, talvez, a amargura de te ouvir dizer que eu estou errada, que eu sou o erro, que eu nunca vou aprender. Sinto nos lábios o travo saudosista por essa miséria desanimada e depressiva, cheia de angústias e tormentos, que me torturava e me desfazia, orientando-me para o abismo. Amar-me é também amar o abismo. E a ideia das tuas palavras, que me partiam as asas, osso a osso e pena a pena.

Apetece-me gritar e tu não estás. Ainda bem. Não quero gritar contigo. Nem para ti. Nem para a aura inebriada de sobriedades toscas que ainda ondeiam em teu redor e te retiram da pele o sal marinho dos olhos cada vez mais azuis. As sombras dos meus querem apenas paz e vazio. Querem apenas que me respeitem a paz e a vontade do vazio. Porque, se eu escolher morrer sozinha, com gatos e memórias a encher a casa, essa é uma escolha cujo direito reclamo.

O temporizador do forno toca e tu não estás. Desenformo o bolo de cenoura e tu não estás. Sirvo o chá de canela e tu não estás. Há fumo no ar. Saúdo o Outono. Beijo apaixonadamente essa ideia das folhas que caem, algures, enquanto eu olho pela janela, para ver andaimes e tela de construção.

A vida passa e tu não estás. Se estivesses, terias beijos só teus. Um amor perene à tua espera. Bolo de cenoura e chá de canela.




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terça-feira, 18 de setembro de 2018

Uma parte dele




Há uma parte dele que tu nunca vais ter. Por mais que queiras. Por mais que faças. Ainda que te quebres em dois, na ânsia desenfreada pela plenitude dos sentidos. Há uma parte dele que tu nunca vais ter.

Hás-de dar por ela ao longo do dia. Quando acordares para o olhar disperso, em busca do aroma a café e lhe notares, na sonolência dos passos, a inquietude da madrugada incerta e cheia de nuvens.

Vai ser muito subtil. Um sorriso que se atrasa por segundos. Um toque que se afasta antes de o ser. O ouvido atento, aguardando por fantasmas de anteontem. Tão subtil será que talvez não percebas ao acordar. Mas há uma parte dele que tu nunca vais ter.

Avançará pelo dia. No almoço, em mesa posta a preceito. Ou no restaurante, entre fatias de piza e sabores orientais. A procura da familiaridade entre as palavras que se repetem, enquanto escolhes. E o afastar do pensamento dos pimentos removidos e do picante, médio ou intenso. Ficará nos trejeitos da voz, num pedido que soa sempre a pergunta. Como quem não entende. Como quem não sabe. Mas sabendo.

As mãos no volante, a caminho de casa, irão, por vezes, à maneta das mudanças. Mesmo de sexta metida e a 120 quilómetros por hora. Não procurarão, nem a tua, nem a redução rotativa. Ele estará apenas ali. À distância de um toque. E a 10 mil anos-luz. Agarrando a memória do riso. E da viagem. Mas mais do riso, preso na maneta das mudanças. E, aí, talvez comeces a desconfiar. Há uma parte dele que tu nunca vais ter.

Na manta – ou cobertor – sobre o sofá manchado. Ecoando no papel de parede mal amanhado e cheio de altinhos. Na motivação dos dedos sobre as teclas gastas de jogos intermináveis e na rapidez da paragem no permeio da história que te habituaste a ver de corrida. Hábitos inusuais de outras atmosferas. Silêncios cheios de palavras que se perdem. E documentos de identificação que pouco primam pela seriedade e bons costumes sociais. Estranheza que, de entranhada, passa de feitio a defeito, qual pedaço desabotoado de um pano de linho puro.

Estranharás. A quebra – primeiro diferente e depois horrífica – de um sonho que, afinal, era só isso. Pela certeza do amor, começarás, aos poucos, a sentir a falta. E a falta é como um aroma leve mas pútrido de uma certeza. A de que existe uma parte dele que tu nunca vais ter.

Será no toque. Na permissividade do toque. Na plenitude do toque - por vezes agreste na intensidade e nos jeitos. Desconfortável no seu conjunto, pelo inusitado da temporalidade que o molda. Uma ausência de regras que se faz regra. Ou o medo de errar, exposto em questões dúbias que se ancorarão numa só. Sabes que há uma parte dele que tu nunca vais ter?

Acabará em noites na cama. Na espera pela tua última excursão – que, provavelmente, não terá lugar - ou pela procura do teu corpo, voltado para o infinito, para te agarrar pela cintura e te prender à terra dos homens, com medo de que voes e não voltes mais. Como não podes ir lá – ao mundo do voo – não compreenderás a urgência das mãos ou da distância depois do toque. E vais saber então, se não o descobriste ainda – que há uma parte dele que tu nunca vais ter.

Perdoa. Perdoa essa falta de entrega, quase ínfima, que impede que o tudo seja um todo. Ele quererá, por certo, dar-te tudo o que é. Entende. Eu passei. Passei como só passa quem fica. E a parte dele que tu nunca vais ter, sou eu.



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