terça-feira, 16 de outubro de 2018

Lena, sem dona




Ouvia-se a voz dela a meio quilómetro de distância. Cada frase pontuada no seu começo por um “eh”, orgulhosamente lançado por entre olheiras e sardinhas do sol, que se esqueciam nos traços sempre ténues e mornos do sorriso. No sorriso dela, era sempre Verão. Ainda que nevasse. E os olhos se entristecessem atrás de cortinas de tempestade. E havia um tom meio estridente, meio orado, nas palavras que se diziam, gritadas e omnipresentes, como se a própria Terra chamasse.

Não faltavam, nunca, no tom das ondas sonoras da sua voz, palavras de conforto e de crítica. Mulher de semblante franzino e humilde, ela trazia até ao público (geral ou particular, conforme calhava) uma cegarrega de ideologias pacatas, que tanto ofendiam como incentivavam mas que, duras ou suaves, retratavam sempre a crença que ela trazia no peito. Não tinha “papas na língua”. Mas tinha sempre o abraço pronto no fim, se fosse preciso amarrar as feridas abertas por verdades inusitadas com um pouco de calor e de amabilidade.

Dos filhos – dois – fazia o mundo. Deles, falava com orgulho e devoção. Contando traços superficiais de dificuldades que todos sabíamos mais profundas e mais caóticas, insistia no futuro como um espaço de realização e nunca deixava de lado o orgulho para lhes mencionar os feitos, fossem grandes ou pequenos. Os filhos não eram apenas os seus heróis. Eram a sua religião, a sua alegoria, a sua força vital. Neles se sustentava e por eles se fazia como era. Mulher simples e forte, sempre com um sorriso.

Era uma boa amiga. Até de quem, tão evidentemente, não era amigo dela. Até de quem, por ditos e desditos, lhe fazia a vida da cor das olheiras. Largava tudo para ajudar os outros. Prejudicava-se para ajudar os outros. Parava, quando perguntava se os outros estavam bem. E queria ouvir a resposta. Não lhe faltavam, nos meandros da voz e da fé, palavras de alento sobre um amanhã melhor. E havia tanto de vida nela que, por entre a depressão dos dias, quase nos sentíamos forçados a concordar que amanhã ia ficar tudo bem.

Ia ficar tudo bem. Mas nem sempre ficava. E notava-se nela um traço de irritação latente com as injustiças do mundo. De duas coisas, ela não gostava! Injustiça e arroz de tomate com pimentos. E dizia-o, de uma forma muito própria, que trazia mensagens de choro enquanto nos despoletava o riso.

Helena de nome e Dona Lena nos traços mais jovens da minha voz, ela insistiu sempre na receita que eu, igualmente teimosa, insisti em nunca seguir: “Dona não”. Não lhe chamava só Lena. E ela não gostava disso. E eu, que sabia que ela não gostava, lá ia fazendo mousse de chocolate, para me retratar desta falha, que era frequente mas nunca por desrespeito ou desatenção.

Um dos companheiros dela era o cigarro. E as piadas sobre a morte quando alguém lhe dizia que não fumasse, ditas de forma tão leviana, tinham graça na altura. Agora já não. Tinham piada enquanto a voz dela se ouvia a meio quilómetro de distância. E enquanto falava dos filhos, sentada na mesa de jardim. E enquanto reclamava das fotos do meu ex-namorado, fixadas na parede durante mais de seis anos. E enquanto reclamava da mousse de chocolate que lhe apetecia e já não comia há muito tempo. Nessa altura, as piadas tinham graça porque a morte era um pesadelo muito distante e uma imagem desfeita no fumo da possibilidade inconcreta. Mas um dos companheiros do cigarro era a doença. E um dos companheiros da doença era a morte.

Sem voz estridente e pontuada com “ehs” no começo da frase, sinto uma espécie de vazio onde havia riso e vontade de dizer, como antes disse, que gosto dela. É uma falta que começa a tomar forma quando a vida se apaga, como uma beata, no cinzeiro do mundo. Quando tudo o que resta é um espaço vazio na mesa e um espaço cheio no coração.

Com dificuldade e pela primeira vez, tento honrar o pedido que me fez e pensar nela como a Lena (sem dona). Nas suas olheiras e nas sardinhas do sol, que se esqueciam nos traços sempre ténues e mornos do sorriso. Nas palavras, duras ou suaves, mas que retratavam sempre a crença que ela trazia no peito. Na amiga que largava tudo para ajudar os outros. E consigo fazê-lo. Pela primeira vez. Porque a Lena era o conforto de um “tu” sempre presente. Foi assim que se marcou nos outros. É assim que permanece. E é assim que, mesmo depois da noite mais fria ter caído nos seus olhos e temperado os nossos com água e sal, continuará a viver em cada um de nós para nos fazer acreditar que amanhã vai ficar tudo bem.





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