terça-feira, 24 de abril de 2018

Tu-és-louca




Ele morreu. E ela olhou para mim. Tudo no universo caótico da sua dor era apelo. E tudo no seu apelo era incompreensão. Disse-lhe. Porque ela não falou. Então eu disse. Vai ficar tudo bem. E ela olhou para mim. Dentro de mim. Rasgando-me as camadas de dermes e epidermes e órgãos e almas. Chegou aos meandros do impossível. Com um olhar. Um olhar rouco. Um olhar massacrado. Um olhar materialmente despido de entendimentos e de vontades. Por momentos, ela foi só o olhar que me deu. Só olhar. Sem palavra. Incomodou-me. Não o silêncio, que era conforto. Mas o olhar, que era crítica.
Houve mil anos nos segundos sem palavra do seu olhar. E ela entreabriu os lábios sofridos. Ele morreu. Não disse isto. Era isto que eu esperava ouvir. Não o disse. Disse outra coisa. Inesperada. Fria. Com um toque de raiva transtornada, que depressa tomou tonalidades de inveja cálida. Havia pó nas suas palavras. Como se quisesse dizê-las há muito tempo. E quando falou. Esse inesperado todo que me roubava a paz. Soou como se agredisse. Porque as palavras não foram para constatar a verdade. Ele morreu. Não! As palavras foram para dizer outra coisa. Tu – és – louca - ! E eu olhei para ela. E para o seu olhar. Todo ele feito de caos. Todo ele feito de dor. Todo ele feito de incompreensão.
Ele morreu. E ela não o dizia. Que ele tinha morrido. Dizia, em vez disso, que eu era louca. Não que fosse mentira. Não que fosse a primeira vez. Mas ele morreu. E ela escolhia, agora, dizer antes outra coisa. Não que doía. Não que tinha saudades. Não que ficaria sempre agarrada à vida de quem não a tinha mais. Olhando para mim. Os seus olhos. Os seus lábios. As suas palavras. Apontavam-me dedos. Tu – és – louca - !
Onde esperei que ela buscasse conforto, vi-a procurar o confronto. E não para me dizer que nada ia ficar bem. Para me dizer que eu – não ela, nem o destino, nem a morte – eu era louca. E havia nos seus olhos uma acusação tão severa, que eu não pude negar que o era. Sabia, de mim, medidas de insensatez que eram alheias aos outros. Eu, a louca. Em pensamentos? Em ações? Em palavras? Por dizer, talvez, que tudo ia ficar bem quando ele morreu? Eu sabia. Sabia que era louca. Sei que sou louca. Mas, quando ela o disse, eu não sabia porquê. Onde estava essa loucura que, de olhos feitos em mágoa, ela via?
Vai ficar tudo bem. Repeti. E ela ergueu o indicador. Cheio de implicações e de denúncias intermináveis. Tu – és – completamente -louca - ! Sou. Respondi. Mas porquê?! Questionei.
Olhando nos meus olhos. Com um toque de raiva transtornada, que depressa tomou tonalidades de inveja cálida. Rasgando-me as camadas de dermes e epidermes e órgãos e almas. Ela lá explicou. Ele morreu. E eu não posso fazer nada. E tu aí, a três passos da respiração de um amor que vive e sobrevive apesar de tudo. Parada. Se eu pudesse. Se eu pudesse lutar. Um segundo. Por um segundo dele. Vivo. Ali. Mas não. Ele morreu. E tu? Tu – és – completamente -louca - ! Por estares aí. A perdê-lo para o mundo. Sem luta. Sem dizeres ou implorares. Além de orgulhos toscos e de estupidez silenciosa. Eu faria isso. Mas ele morreu. E tu – és – louca -! Porque estás viva. E ele está vivo. E nenhum dos dois entende. O tempo passa. O amor é raro. As pessoas morrem. E tudo o que é alheio ao amor. É só loucura.




*Imagem retirada da Internet


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terça-feira, 17 de abril de 2018

Equilíbrio




Talvez seja porque eu acho que o amor só pode existir onde há loucura. E tu julgues que tudo tem peso e medida. Ou talvez seja porque te tentavas encontrar onde eu ainda queria estar perdida. E talvez more nessas pequenas, enormes, gastas ilusões de que o mundo se alinha para dar oportunidades toscas de felicidade.

A minha visão do amor cria uma versão desta história que é só minha, falando de pontos vibrantes, onde os sentidos eram lava e ora queimavam de paixão, ora explodiam de raiva. Eu aprendi a ser na cama, como na vida, tudo ao mesmo tempo. Eu aprendi contigo que há pontos certos que apenas o são entre lençóis. Mas eu não posso ser eu apenas quando os corpos se dão. Também o sou quando o corpo me pertence e o futuro é todo incógnito. E há muralhas ocultas no tanto que eu posso ser, ardendo de paixão por um mundo que abomino.

Não faço sentido. Não sinto que possa – ou deva – fazer sentido. Acredito que também o amor não faz. Sentido. São só sinapses descontroladas. Electricidade pura. Raciocínios pouco eficazes. E uma escolha que se aceita e questiona mil vezes.

Eu não fui. Não sou. Talvez nunca venha a ser. Essa balança onde tudo se pesa e tudo tem medida concreta. O que sou tem nuances. E extremos. E excessos. E faltas. Acima de tudo, faltas. Tantas que não as pudeste aceitar. Tantas que te tornaste uma delas. A maior delas.

Dizes que me amas. E eu digo que te amo. Mas não me amas como eu te amo. Não conheces nem desejas o amor como eu o sinto. Tu e o teu amor são missas de equilíbrio. Fazem adventos e missões de peregrinação na ideia de que tudo tem uma fórmula certa, um tempo definido, um princípio válido.
Eu levo o meu amor de arrasto aonde vou. Caminhe ele a meu lado ou venha de rojo, sangrando. Dele, não espero outra coisa senão a loucura. Sei que ele grita à meia-noite. Que chora com filmes animados. Que se debruça em precipícios. Diz que quer morrer às terças-feiras, depois de ter passado as segundas a ver-se ao espelho, contemplando e amando a luminosidade dos seus reflexos. E pouco se importa com a formulação frásica das ideias ou com todos os seus sinónimos.

O meu amor não se pauta pelo equilíbrio. É uma corda bamba sem estabilidade e que sonha, sabe-se lá porquê, que alguém (se) mantenha uma rede de segurança sob os pés. No meu amor, a queda é inevitável. E a dor também.

Um amor avulso, com peso em escrutínio e um equilíbrio perfeito com a norma será certamente amor. Talvez seja o único amor que me fez amada. Mas não é um amor que eu saiba amar.
Eu sou fruto das árvores da insanidade. Amo com tudo. Apesar de tudo. Além de tudo. E para sempre.

O meu equilíbrio é pouco.

Tropeço nos meus próprios pés e caio quase sempre.

Levanto-me. Continuo.

Mais ou menos ferido, o meu amor também!




*Imagem retirada da Internet


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quarta-feira, 11 de abril de 2018

Não venhas



Não venhas falar-me de solidão
Tu que caminhas por desertos
E falas em silêncios incertos
Perdendo o olhar n' imensidão.
Tu não sabes nada sobre a solidão!

Eu caminho firmemente nos passeios,
Converso sobre tudo e, de permeio,
Olho bem dentro dos olhos de mil gentes
E sinto essa solidão no peito
Essa solidão que tu, de só, não sentes.

Quem passa por mim deixa um sorriso
E parte sem ficar nada p'ra trás.
Vivo em lágrimas, fingindo o paraíso,
Fingindo que o mundo sabe o que faz.
Fingindo, em solidão, sempre fingindo

E é pior estar na multidão,
Todos ouvem mas ninguém sabe a razão
Que me faz perder o olhar no infinito
E não sabem que peço à imensidão
Um futuro que não esse que está escrito.

Estar só por entre tanta gentia
Em cada passo firme no passeio,
Em cada conversa que se anuncia,
Em cada sorriso falso de permeio
Num mundo que se assume em agonia…

Não venhas falar-me da solidão
Não estás só apenas de estares sozinho
Eu tenho o mundo inteiro na mão
Um futuro à espera, 'inda que vão,
E estou só em cada passo do caminho.

E dói mais caminhar nas vozes frias
Que não sabem que assumi já a derrota.
Perdi a vida entre mãos vazias
Na solidão constante dos meus dias
Tão cheios de gente... e ninguém nota...





*Imagem retirada da Internet



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terça-feira, 3 de abril de 2018

Tudo me dói


Tudo me dói menos a dor. A dor, em mim, tinha-se esquecido de como era. Doer. Tirando férias do meu peito, ela pouco fez além de contemplar a possibilidade. Esta possibilidade. Mas, sem acreditar muito nela, depressa se desfez, também, do pensamento. Então, enquanto tudo em mim era prazer (ainda que angustiado), felicidade (ainda que entrecortada) e sonho (ainda que acordado), a dor fazia uma espécie de tricô e esquecia-se. Esquecia-se de doer. E era miseravelmente infeliz na sua narrativa enfadonha.
Tudo me dói menos a dor. Há recantos do meu corpo que me doem e ligamentos da alma que padecem, estremecendo medos com o frio e com o tempo. Deito-me na cama e o teto é tela de um filme. Dancemos, diz ela. Não sei dançar, diz ele. E depois beijam-se. Fecho os olhos. E doem-me os olhos que fecho. Doem as imagens que dançam. E as que não sabem dançar. À medida que se movem entre as conexões infindáveis de um cérebro que não desliga e que, por isso, também dói. O coração, atormentando-se pela ideia de um tango que se faz a solo, falha um batimento e tenta arritmicamente recuperá-lo durante algumas horas. E, nesse processo, também lateja, obrigando as respirações profundas a lembrar-me de que me dói o ar que inalo e o que exalo. Inspiro. Expiro. Suspiro. E dói. Tudo me dói. Menos a dor.
Sem nada que traga recordações nas paredes da casa, eu vou descobrindo que a casa é recordação. E, em vez de a rasgar, dou por mim despida, debaixo da água corrente do banho, a tentar lavar da pele o toque pelo qual anseio. A tentar arrancar dos lábios os beijos que ainda desejo. A tentar proibir-me de fazer amor com a memória dos corpos dados debaixo de lençóis de desejo. E há dores nestas ansiedades. Como se a água fosse espinhos. E a cama fosse abismo. E o que fica entre o corpo e a alma fosse um rio de lava ardente, deixando golpes esfolados por onde passa. Arde. Tanto que o tempo pára nesse azedume tolhido de pesar e de sofrimento. Somo um mais um e descubro que dá um. Dói-me a sanidade. Dói-me a loucura. Dói.
Tudo me dói menos a dor. Nos pés nus, descubro que me doem os passos. No aroma do incenso que queima, descubro que me dói a fé. No reflexo que me devolve olhares complacentes descubro que me dói a auto-comiseração. E dói-me também a mão depois de reduzir a cacos o espelho, para que não olhe mais para mim, lamentando a triste sorte do meu triste eu. Subitamente, há gotas rubras no chão. Descubro que me dói o sangue. Rubis tristes de vida, ainda quentes e salutares, agarrando-me à terra dos vivos, com grilhetas. A vida também me dói.
E, por entre todo este universo de mim que dói confinadamente no meu pequeno eu, eu sei que tudo dói e sei, porque o sinto, que a dor não. A dor, em mim, tinha-se esquecido de como era. Doer. E era miseravelmente infeliz na sua narrativa enfadonha. Mas, agora – agora que tudo me dói – a dor não. A dor lembrou-se. De como era. Doer. E, pela primeira vez em muito tempo, ainda que tudo o resto doa, a dor está feliz.





*Imagem retirada da Internet



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