terça-feira, 3 de abril de 2018

Tudo me dói


Tudo me dói menos a dor. A dor, em mim, tinha-se esquecido de como era. Doer. Tirando férias do meu peito, ela pouco fez além de contemplar a possibilidade. Esta possibilidade. Mas, sem acreditar muito nela, depressa se desfez, também, do pensamento. Então, enquanto tudo em mim era prazer (ainda que angustiado), felicidade (ainda que entrecortada) e sonho (ainda que acordado), a dor fazia uma espécie de tricô e esquecia-se. Esquecia-se de doer. E era miseravelmente infeliz na sua narrativa enfadonha.
Tudo me dói menos a dor. Há recantos do meu corpo que me doem e ligamentos da alma que padecem, estremecendo medos com o frio e com o tempo. Deito-me na cama e o teto é tela de um filme. Dancemos, diz ela. Não sei dançar, diz ele. E depois beijam-se. Fecho os olhos. E doem-me os olhos que fecho. Doem as imagens que dançam. E as que não sabem dançar. À medida que se movem entre as conexões infindáveis de um cérebro que não desliga e que, por isso, também dói. O coração, atormentando-se pela ideia de um tango que se faz a solo, falha um batimento e tenta arritmicamente recuperá-lo durante algumas horas. E, nesse processo, também lateja, obrigando as respirações profundas a lembrar-me de que me dói o ar que inalo e o que exalo. Inspiro. Expiro. Suspiro. E dói. Tudo me dói. Menos a dor.
Sem nada que traga recordações nas paredes da casa, eu vou descobrindo que a casa é recordação. E, em vez de a rasgar, dou por mim despida, debaixo da água corrente do banho, a tentar lavar da pele o toque pelo qual anseio. A tentar arrancar dos lábios os beijos que ainda desejo. A tentar proibir-me de fazer amor com a memória dos corpos dados debaixo de lençóis de desejo. E há dores nestas ansiedades. Como se a água fosse espinhos. E a cama fosse abismo. E o que fica entre o corpo e a alma fosse um rio de lava ardente, deixando golpes esfolados por onde passa. Arde. Tanto que o tempo pára nesse azedume tolhido de pesar e de sofrimento. Somo um mais um e descubro que dá um. Dói-me a sanidade. Dói-me a loucura. Dói.
Tudo me dói menos a dor. Nos pés nus, descubro que me doem os passos. No aroma do incenso que queima, descubro que me dói a fé. No reflexo que me devolve olhares complacentes descubro que me dói a auto-comiseração. E dói-me também a mão depois de reduzir a cacos o espelho, para que não olhe mais para mim, lamentando a triste sorte do meu triste eu. Subitamente, há gotas rubras no chão. Descubro que me dói o sangue. Rubis tristes de vida, ainda quentes e salutares, agarrando-me à terra dos vivos, com grilhetas. A vida também me dói.
E, por entre todo este universo de mim que dói confinadamente no meu pequeno eu, eu sei que tudo dói e sei, porque o sinto, que a dor não. A dor, em mim, tinha-se esquecido de como era. Doer. E era miseravelmente infeliz na sua narrativa enfadonha. Mas, agora – agora que tudo me dói – a dor não. A dor lembrou-se. De como era. Doer. E, pela primeira vez em muito tempo, ainda que tudo o resto doa, a dor está feliz.





*Imagem retirada da Internet



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2 comentários:

  1. Great post!

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