terça-feira, 28 de novembro de 2023

Sol cinzento

 

Para a minha avó, Maria Graciosa
6 de Outubro 1930 - 19 de Outubro 2020


Tolkien falou de anéis. Repletos de poder. Três para os elfos, sete para os anões, nove para os homens mortais e um que os dominasse a todos. Mas nunca falou deste. Este que tem o sol lá dentro. E que colocaram no meu dedo anelar, sob a forma de promessa inquebrável, indizível. E este é um anel que controla até os mundos que não sabemos que existem.

 

Foi em Dezembro. Um Dezembro como este que se aproxima. Foi em Dezembro que, vendo-me usar o polegar para tocar o anelar da mão direita, por sob o indicador e o dedo médio, a minha avó fez um sorriso triste, de compreensão. Também ela mexia constantemente na aliança. A dela no dedo esquerdo. Eu tinha tirado o anel. Ficara o hábito.

Da sua expressão de entendimento, que já tanto valia, seguiu-se o toque. A mão dela – sempre fria – sobre a minha – não mais quente. Olhou-me com olhos de mel e meiguice. E disse-me que escolhesse um anel que substituísse o antigo. Disse-me que mo daria pelo Natal.

O anel que escolhi, pequeno e de malha simples, de prata, lembrava-me dela. Metal corrente, mas valioso, de uma simplicidade extrema e sem artifício. Uma beleza singular, que muitos não notariam. Possivelmente passaria despercebido na minha mão, como passara despercebido a todos os que tinham visitado a loja antes de mim.

O preço baixo do anel escolhido desagradou-lhe, mas não se opôs à minha vontade. E, da pequena caixa expositora ele passou para outra, onde morou até ao dia de abrirmos prendas, todos juntos, celebrando mais a família que temos do que aquela que alegadamente terá abençoado o mundo com um filósofo comunista numa manjedoura algures.

Aproximei-me dela, agradecendo. E, estendendo-lhe a caixa, pedi-lhe: se este é um anel de compromisso, peço que sejas tu a pôr-mo. Olhámos uma para a outra. Sorrimos uma à outra. E ela, que quase sempre ripostava, não disse nada. Agarrou a minha mão com a sua mão fria. Mas parecia quente, quando firmou, num gesto, a nossa promessa eterna que nos dedicou uma à outra. E consagrámos o amor, debaixo das decorações festivas e independentemente delas. Sempre. Para sempre.

 

Todos os dias tiro o anel para dormir. Todos os dias o ponho logo pela manhã. E todos os dias me dedico a ela. Todos os dias lhe digo que a amo. Todos os dias cumpro a promessa que lhe fiz nesse silêncio pintado de burburinho alheio.

E, quando o olho na palma da mão, diretamente antes de me dedicar novamente a esse ritual de pertencer-lhe, todos os dias me sinto como se o toque frio da mão dela na minha me aquecesse a alma, exatamente como o fez ao pôr o anel no meu dedo pela primeira vez. E é uma espécie de sol cinzento. Pequenino. Onde o compromisso eterno aquece até o mais frio dos invernos.

 

Tolkien falou de muitos anéis. Mas nunca falou sobre este. O meu pequeno sol cinzento. Que nasce pela manhã na palma da mão. E ressuscita os mortos. E a traz de volta. Todos os dias.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 21 de novembro de 2023

Expoente máximo

 


O expoente máximo do amor é visto na dificuldade. Porque falar de entrega é mais fácil do que entregar-se, e falar de amor é só dizer uma palavra simples, pequenina, de leitura imediata e que nem faz gaguejar. Gosto de quem se identifica com o antigo e reconhecido cartoon dos velhotes à chuva. E entendo que, na minha vida, há muita gente sobre quem eu colocaria o guarda-chuva. Também sei que há algumas pessoas que o colocariam sobre a minha cabeça. Saber disto e não cuidar do outro é, talvez, o expoente máximo da estupidez.

 

Tenho visto muitas costas voltarem-se. Às vezes por razão nenhuma. Às vezes porque os ressentimentos, acumulados nos anos, explodem. Nós que, quando se desatam das gargantas, já vêm com o podre bolorento do que não foi dito. Silêncios que se prolongam e deixam desconforto sentado no lugar… vazio. E um amanhã que parece feito de muitas desistências inúteis, que serão arrependimento mais tarde.

Pessoas que se amam são mais cáusticas quando se magoam. Porque amar é conhecer o outro. E aceitar ser amado é colocarmo-nos numa posição frágil de abertura do portão mor das muralhas que erguemos aos outros. Magoar quem se ama é atacar por dentro. E são guerras que acontecem simultaneamente em dois campos de batalha, com muitas baixas. São muitas felicidades inocentes que vão morrendo, nesse bramir de espadas de palavra e silêncio, de ataque e de inação.

Por vezes, sento-me no banco que fica entre costas e costas. Tomar posição na guerra é acendê-la. E eu quero a paz. Tomar posição na guerra é incentivá-la. E eu quero sentir novamente o quente coeso dos abraços todos. Noto que as pernas da cadeira estão velhas e gastas. Podres como as emoções superficiais e imediatas que parecem suprimir as outras. Quando a cadeira range, afasto-a. Sento-me no chão com as pernas à chinês. E fico à espera que dele brotem novamente as flores sadias na Primavera que será perceção de que toda a guerra é inútil. Dentro, eu acredito, moram emoções boas. Amor que é amor não morre. Sentimentos eternos não perecem por causa de emoções fugazes.

 

O expoente máximo do amor é visto na dificuldade. Sentada no meu silêncio, tento estender um braço para cada lado, segurando dois guarda-chuvas. A minha treinadora ficaria muito impressionada com este exercício de isometria. Mas estou a ficar triste e cansada. Logo eu que sou feliz e enérgica. E gostava que as guerras parassem.

 

Não quero estar, do meu expoente máximo do amor, a olhar para o expoente máximo de estupidez dos outros. Quero que todos entendam. O passado já foi. O presente vai ser passado. O futuro pode ser escasso. Guerras passageiras não alimentam vidas plenas. O amor? Mesmo quando é difícil. Talvez mais quando é difícil. Esse é o expoente máximo da vida.

 

É só meia volta. De parte a parte. E costas voltadas são de novo um abraço.


 Marina Ferraz




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terça-feira, 14 de novembro de 2023

Morte aparente


 Para Ercília Ferraz

Nasceu com morte aparente. Poderia ter ficado por aqui, esta história. Não seria história que valesse um texto. Mas seria uma história. Uma que marcaria, certamente, mais tristeza no rosto da minha avó e mais agressividade nos gestos do meu avô. Muito parca de narrativa. Sem palavra ou acontecimento. Sem intriga nem enredo. Sofrimento só. Abençoaram-nos os Deuses – os meus e o deles, em perfeita harmonia – com outra. Uma que vale o texto.

 

 

Há uma mulher. A mulher que há é resiliente e metódica, diligente e lutadora. Companhia das trincheiras da vida. Aquela que – como dizia Hemingway – importa mais do que a própria guerra. Nessa guerra, é guerreira. Não só combatente, mas combativa. Teimosa e senhora do seu nariz. E se lhe chega a mostarda ao nariz... Focada. Sensível. Uma Força da Natureza. Há uma mulher. Uma mulher que antes de o ser foi moça. E que antes de ser moça foi menina. E que foi sempre assim. Fiel ao seu eu. Vivendo até hoje como a bebé que nasceu morta. Cada decisão honrando o seu nascimento. Tudo a seu tempo. Tudo a seu jeito. Até o que sabe, de instinto, que devia ser diferente. Tudo a seu tempo. Tudo a seu jeito. Como a primeira respiração. Retardada.

 

É a dona do canto que ocupa e não precisa de companhia, embora a aceite e valorize. Gosta de ler. Emociona-se com os livros inteligentes e de seres humanos bons. Mas acha que a maioria dos livros e seres humanos partilham o traço de não o ser. Inteligentes ou bons. Isso, meus amigos, já não é traço de carater, mas experiência de vida!  

 

Entusiasta de automóveis e detentora da capacidade de conduzir automaticamente carros com mudanças manuais, ela desliga-se quando o motor liga. Faz isso demasiadas vezes. Gosta de aventuras de estrada aberta. Aventura-se nos becos estreitos das cidades propositadamente. Tem um GPS incorporado na cabeça. Não se perde, mas faz por se perder. Ama a ideia de não saber onde vai dar a estrada a seguir. Talvez – penso – porque a vida lhe tenha dado estradas certas e lineares, um pouco monótonas na passagem pelas silvas e os ninhos de víboras. Sobreviveu a essa estrada e às outras. Muitas outras haverá ainda, esperando a sua alma destemida e o seu espírito ousado.

 

 Nunca bebe. É sempre abstémica. Até chegar a sangria e a jeropiga à mesa. É aguerrida na defesa dos seus valores. Intempestiva em muitas respostas. Mas sabe parar e pensar sobre si mesma nos mesmos termos. Aprendeu a bondade com a mãe. Aprendeu o companheirismo com o pai. Aprendeu sozinha a pedir desculpa quando a aspereza que não aprendeu mas herdou de signo a torna desnecessariamente o equivalente humano de arma nuclear numa conversa.

 

É incrivelmente bonita. Mas não sabe que o é. Elegante. Mas não sabe que o é. Não saber que o é torna-a ainda mais bonita. É uma beleza simples e humilde, que veste roupa casual, por vezes desportiva, sem tintas nem artifícios escusado. Faz a sua própria moda sem seguir a moda do impróprio conformismo. É o tipo de mulher que agarra o estilo eterno de que falava Chanel e que suplanta facilmente a norma chata das montras.

 

Pende-lhe do pescoço um pedaço da sua fé. Fica na sua passagem o aroma distinto de quem tem hierarquia mágica nas veias. Emana dela a energia que transforma a terra e faz crescer as plantas. Agarra o nome da religião que lhe deram e transforma-o na ideologia que a rege. Recusa os livros sagrados, mas não o sagrado dos livros. E resume tudo à bondade. Resume tudo ao amor. E diz que ama quem ama com cada gesto diário.

 

Nasceu com morte aparente. Vive. O seu nome não será, talvez, dado a nenhuma rua – a menos que eu venha a dar nome a uma rua! Mas é como se houvesse cidades inteiras com o nome dela. Tem plaquinhas eternamente gravadas com o nome dela a ornamentar as ruas do peito de muitas pessoas. Do primeiro momento e até hoje, foi essa inscrição que deixou nas vidas de quem com ela se cruzou. Fossem os amigos, a família, conhecidos de percurso, funcionários das lojas que frequenta ou completos estranhos. Não é pessoa que passe sem deixar algo de si.

 

Nasceu com morte aparente. É minha mãe. Não quis falar dela como mãe, embora por três vezes o tenha sido e de todas elas tenha feito trabalho de heroína de novela. É muito fácil lembrar-lhe os traços maternos. Os traços ternos do colo. O cuidado em noites e noites em claro. Não quis falar dela como mãe, ainda que nascer dela tenha sido a maior das minhas bênçãos.

 

Nasceu com morte aparente. Sobreviveu à primeira morte para ter uma vida que importa. Tornou-se mulher-modelo das mulheres. Tornou-se a mulher que fica, por vezes, oculta atrás da máscara que a camufla de mãe. Não quis falar dela como mãe. Quis falar da mulher que nasceu com morte aparente e cuja vida foi – é – grito silencioso. Da mulher que é tão mais do que os filhos que teve!

 

 

Nasceu com morte aparente. Felizmente vive. Se não tivesse nascido, muitas pessoas que caminham pelo mundo não teriam uma plaquinha com o seu nome no peito, marcadas pela sua valiosa vida.

 

Não eu.

Eu simplesmente não caminharia pelo mundo.

Eu simplesmente não teria nascido.

 

E não haveria este texto.

E ninguém saberia que a mulher mais perfeita do mundo nasceu com morte aparente.

 

 Marina Ferraz




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terça-feira, 7 de novembro de 2023

Pomba branca

 

 Fotografia de Vasco Inglez

A vida olhou-me nos olhos. Bem dentro dos olhos. Perscrutando a alma. Olhou-me. Assim. E soltou um “ups”. Troçando. Largando-me a inocência como pomba branca. Como pomba morta. Deixando apenas no ar as penas. E eu colhi. As penas. Sem saber muito bem carpi-las. Agarrando-as para delas fazer o colchão que me bebe as lágrimas na noite.

 

 

Os exércitos invadem cidades como a realidade invade as pessoas. O mundo nunca foi bom. Lembram-me. Mas eu não quero acreditar. Com a vida a invadir-me o corpo crente de outras vidas – aquelas que me dizem que nunca existiram - o negrume tenta levar-me para o lado da Força onde não quero achar que pertenço. E diz-me: já usas as vestes. Visto. Quero ocultar-me do mundo. Camuflar-me nas vielas dessa escuridão podre. Mas não lhe pertenço. Recuso. Recuso que a alma me mime a coloração sombria das vestes.

 

Vou olhando ao espelho para encontrar máscaras pretas que iludem os turistas que visitam temporariamente os meus espaços. Sei que se diz de mim o que não sou. E pouco me importam as palavras. Palavras – percebi, triste – não são a poesia que brota plena de Primaveras que o mundo não teve. Palavras – afinal – são só vazio quando não têm ação que lhes dê uma estação do ano. Palavras – quando sós – não servem para nada.

 

Na tentativa vã de sobreviver às guerras dos tiranos, à mágoa dos penitentes e à falsa diplomacia dos privilegiados, quero olhar para mim como se eu fosse indiferente. Olhar a vida, de volta, com o mesmo desapego. Com o mesmo gozo. Com a mesma maldade. Ainda tenho muito presente a voz da minha avó, falando da sua mãe: que lhe faziam mal e sempre era boa. E se ela não está no céu, ninguém está.

 

O céu é uma utopia. Mas olho-o, procurando ver o voo das palavras com ação que ela dizia e que, se não tornaram o mundo melhor, me inspiraram a querer ser parte dessa bondade que merece o que fica para além do visível. Não anseio por redenções nem partilho a fé nesse deus cru que ela imaginava. Mas quero deixar luz quando despir as roupas negras.

 

A vida olhou-me nos olhos. Bem dentro dos olhos. Perscrutando a alma. Olhou-me. Assim. E soltou um “ups”. Troçando. Largando-me a inocência como pomba branca. Como pomba morta. Eu ponderei. Eu descobri. O espelho. E era eu a vida. E era eu o indigente vulto negro que matava a inocência, tentando sobreviver.

 

Então, ajoelhei-me. Primeiro para colher as penas. Sem saber muito bem carpi-las. Agarrando-as para delas fazer o colchão que me bebe as lágrimas na noite. Por entre o choro, apercebi-me. Os exércitos invadem cidades como a realidade invade as pessoas. Então ajoelhei-me. Peguei na pomba morta da minha inocência e fiz-lhe respiração boca-a-bico. Agarrei-lhe os ossos meio partidos. Agarrei-a junto ao peito. Reacordada e moribunda.

 

 

Vais morrer disso. É isto que a lógica me diz, na voz dessa vida negra que me olha a partir do espelho. E eu concordo. Vou morrer disto. Soa bastante melhor do que estar viva. Sem isto.


Marina Ferraz




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