terça-feira, 28 de agosto de 2018

A temperança




As mãos. Olho para as minhas mãos. Segurando copos e jarras. De onde se vertem agruras e amenidades. Traços de frio. Traços de calor. Sensações. Sentimentos. Sentidos. As mãos. Olho para as minhas mãos. Nuas. Segurando entre os dedos o que é invisível aos olhos.

Cuida de mim – pedem essas mãos – e acreditam que sim. O futuro parece todo a seu favor. Excepto pelos dedos. Onde só há o vazio de copos e jarras. Temperando, aos poucos a solidão de dedos nus e solitários.

Gosto das minhas mãos, embora as ache feias. Com os dedos curtos, roliços, anafados, que lembram a preguiça e o desajuste. Gosto delas porque, da mesma forma que seguram canetas e mexem tachos de comida, elas fazem amor com a vida. Ou, melhor dizendo, enquanto seguram canetas e mexem tachos de comida, elas fazem amor com a vida.

São amantes exímias, as minhas mãos. Colocam um pouco de amor em todas as suas ações. Temperam, frequentemente, todos os momentos com um pouco de carinho e de tolerância. E procuram trazer ao mundo apenas o melhor.

Gosto delas, não só porque conhecem os caminhos da beleza dos sentidos, mas também porque conhecem o limite onde a aceitação termina e não temem o voo altivo pelo ar, na direção de rostos cujos lábios não conheçam os traços do respeito. As minhas mãos são assim. Trazem um copo de violência e uma jarra de amor. E vão temperando, aos poucos - seja com essa violência ou esse amor - o carinho, a rudeza e o desacato. Até haver equilíbrio outra vez.

Olho para as minhas mãos. Numa mão trago o meu desassossego e na outra a certeza de que tudo passa com o tempo. Imagino que uma terceira mão segure essa ampulheta. A do tempo que passa. E que sara. Mas nas mãos. Nas duas que trago em frente aos olhos e que limpam lágrimas. Nessas, trago essencialmente o desassossego e a esperança. Vou temperando a vida assim. E nenhuma delas se importa com o resultado efetivo do momento que ainda não chegou. Porque se ocupam do presente e tentam transformá-lo, modelá-lo, torná-lo melhor.

As mãos. Olho para as minhas mãos. Essas que, de percorrerem rostos e corpos alheios guardaram, em si, traços mágicos de paixão; essas que, de embaterem em rostos e corpos alheios guardaram, em si, traços de força; essas que, de trabalharem em prol de rostos e corpos alheios guardaram, em si, traços de aptidão. Numa, seguro a jarra da ousadia. Na outra, o copo de insegurança. E existe um traço de audácia no verter destemperado do orgulho líquido de um recipiente para o outro. Vai ficar tudo certo – diz esse movimento.

É o leite, o sangue e a seiva de mim que verte de um lado para o outro, temperando-me a vida com a ideia da concretização. E há o jarro. E há o copo. E há a temperança. Mas olho. Olho para as minhas mãos. Segurando copos e jarras. De onde se vertem agruras e amenidades. Traços de frio. Traços de calor. Sensações. Sentimentos. Sentidos. Olhando para elas – para as mãos – sei que elas são donas de uma tolerância feliz, de uma praticidade profícua, de uma paciência sã.

Tempero. Com elas. Com as mãos. A minha vida. Os dedos - curtos, roliços, anafados - têm espaços vazios entre si. Mas tocam com ternura o universo onírico do mundo. E sabem que precisam de segurá-la: a esperança. E sabem que precisam de usá-la para minorar o desassossego. Os espaços vazios preenchem-se. Um dia, quem sabe, talvez o façam com outras mãos que entendam. E que temperem o meu amor com mais amor. No sentido mais amplo da temperança.




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terça-feira, 21 de agosto de 2018

A lista IV



Eu fiz uma lista. Duas. Três. Gosto de fazer listas. E pus-te nelas.


Começou por ser uma lista de sonhos para amanhã. Sobre as mãos que viríamos a dar, sobre o mar que veríamos em olhares de contentamento, sobre os dedos que enlaçaríamos, cheios de desejo pela vida. Uma vida que só seria plena se a lista nos incluísse aos dois.

Disseste que eu era a metade de ti que faltava e eu disse-te o mesmo. Sussurrámos. Enquanto enumerávamos as estrelas e lhes dávamos nomes. Uma delas – determinei eu, à revelia da NASA – era tua. Eternamente tua. Porque as estrelas são de todos e te dei a minha parte. Então, tinhas sobre ela poder de decisão.

Essa primeira lista que eu fiz, sobre tudo o que não éramos e podíamos vir a ser, foi uma espécie de trampolim do sonho para a realidade. E, então, fiz outra lista.


A minha segunda lista falava de perfeição. Em pontinhos muito concretos dizia que sabia que eu tinha chegado a um ponto de entendimento onde o próprio ato de fazer listas poderia não fazer sentido.

Não tínhamos espadas. Nem revólveres. Tínhamos as mãos dadas. Poemas nos olhos que sorriam. E éramos crianças a brincar ao faz de conta, acreditando ser mais fortes do que um exército e estar prontas para enfrentar, da vida, as agruras.

Rasguei essa lista. Rasguei-a porque acreditei que éramos donos do mundo e não nos faltava nada. Não fiz listas durante muito tempo.


O tempo. Foi o tempo que me levou de volta. “Apanha agora os cacos dessa folha de papel e os do teu coração!”. Uni-los era impossível. Então, escrevi outra lista. Nela, escrevi os meus motivos para ir embora e os meus motivos para ficar. O meu motivo para ficar. Tão forte, tão débil; tão certeiro, tão imaturo; tão quebrável.

Fiz essa lista para te dizer: eu sei que dói. Eu sei que custa. Eu sei que não é tão perfeito como a estrela que roubei do céu. Mas eu amo-te e pode ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem. Amo-te. Amo-te. Amo-te.


Não ficou tudo bem. E, hoje, sentada entre quatro paredes cheias de sombra, nas ameias recolhidas da persiana, sinto entrar o toque do vento morno do verão. Não vai ficar tudo bem.
Esta é uma lista que podia estender-se por folhas e dias e universos. Não faltarão palavras. Nem sentimentos. Talvez falte apenas a vontade que me move pelos dias e me faz capaz de as escrever.

Se esta é uma lista sobre o que falta, eu poderia usar esta vida e as próximas com ideias e pensamentos.

Mas existe muito mais espírito de síntese na dor do que na felicidade. Porque, quando falar magoa, evitam-se palavras e pensamentos. Procura-se outra coisa, ainda que ela própria seja dor. Para camuflar dor com dor, esperando que ela pare de doer; tal como fazem os sábios dos ventos nos incêndios, quando erradicam fogo com fogo, esperando que pare de arder.

E a minha lista de um é bastante simples, para dizer o que foi e o que é. Quando tu estavas, eu tinha tudo. Quando tu estavas, estragámos tudo. E, agora que não estás, falta tudo.


Enumeremos o meu coração. Que já foi um. Elogiemos o meu coração. Que já foi teu. Enumeremos agora. O coração. De cacos no soalho. E nem a madeira é real. Flutuando. No centro de uma casa que não é um lar. E de uma vida onde falta tudo.

Tu-do.
Tu.
Uma vida onde faltas tu.


Esta é a lista. É uma lista muito breve. De tudo o que eu preciso. E nunca mais vou ter.





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terça-feira, 14 de agosto de 2018

A caixa




Têm tentado. Continuamente. Desde sempre. Rotular-me e pôr-me numa caixa. Limitada pelas suas paredes. Feitas de preconceito. Feitas de noções redutoras. Feitas das linhas do ar. E de betão.

Têm tentado. Justificar-me com ideias e frases feitas. Explicar-me com conceitos e limites. Como se um traço de mim aniquilasse o outro. Ou me definisse concretamente. Ou fizesse de mim uma coisa só.

Têm tentado. E têm descoberto que eu sou um ser sem filtro, com traços de luz e sombra. Com traços de riso. Com traços de depressão. E de alheamento. E de apreciação do mundo. Têm descoberto que eu sou beleza e feiura. Preguiça e tarefa e desporto. Escrita e silêncio e palavra dita. Têm descoberto que, sempre que me colocam numa caixa, eu intempestivamente a derrubo e salto para outra… e outra… e outra a seguir.

Irritam-se com os traços de mim. Que se colocam no espaço da menina e os seus livros, por um segundo. Para saltar para o espaço da futilidade e das roupas, por outro segundo. Para adentrar os universos da política e as discussões acesas do feminismo e da equidade, por mais um segundo. E para tocar nos nervosinhos que compõem a alma de cada um, por um segundo de eternidade que lhes baralha as ideias e os deixa sem saberem bem onde podem colocar-me.

Peço que não me coloquem numa caixa. Faço-o insistindo que não é esse o meu lugar. Mas insistem. Insistem em tentar fazer de mim objeto redutível à descomplexificação do eu. E a reduzir-me a uma das minhas partes. Porque será mais simples ver-me como um fragmento de mim. Ou simplesmente porque existem traços de inconsequência na divisão de parcelada de mim em milhares de fragmentos de poeira, que sejam catalogáveis e passíveis de colocar nas caixinhas mentais dos outros.

Não me coloquem numa caixa. Mesmo que cause estranheza que, pela manhã, eu seja atleta; pela tarde, artista; pelo crepúsculo, contestatária; e pela noite, bailarina de fogueiras nuas. Não me coloquem numa caixa. Tenho demasiada liberdade em mim para encaixar nos espaços determinados pelas mãos dos outros.

Podem colocar-me numa caixa. Quando eu morrer. Só quando eu morrer. Antes não. Ou, se puserem, vão ver que as caixas não me seguram. Que salto de uma para a outra. E que me completo com um pé em cada uma. Com uma mão em cada uma. Com um olhar estendido sobre tantas quantas o olhar me abarca.

Sim. Podem colocar-me numa caixa. Quando eu morrer. Só quando eu morrer. Aí podem. Prometo ficar dentro dela, se nela me depositarem. Mas, mesmo aí, devo confessar. Preferia ir livre na respiração do vento. E ficar um pouquinho em toda a parte. Com os rios. E com as flores. E com as árvores. Para lhes contar que faço parte da terra. E que o meu mundo se fez fora da caixa. Para voar. Outra vez. Livre.




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terça-feira, 7 de agosto de 2018

Deitei fora a minha infância



No dia em que te escolhi, deitei fora a minha infância. Troquei-a pelos teus dedos na minha pele nua. Porque pensei que nua e no toque dos teus dedos o sonho também sobrevivesse.

Ser criança era querer fechar os olhos à realidade. Viver na imersão completa das minhas ilusões. Mergulhar na profundidade inóspita dos meus pensamentos e dançar com as cascatas e as flores, juntamente com as criaturas. Uma vinha e dava-me um medalhão. E ele permitia que respirasse sob as águas. E eu nadava. Lado a lado com as sereias do meu pensamento.

Ser criança era fazer jogos inocentes de apanhada. Correr com os ventos. Sentir a liberdade como um sopro e a adrenalina como uma dormência no nariz e um aperto no estômago. “Não me apanhas”. E fugir. Ser criança era fugir do tempo que me determinava os traços, cada vez mais patentes, de uma forma de estar construída em tudo o que ficava depois da fronteira de mim.

E as fadas perguntavam. Não queres amar? E as sereias perguntavam. Não queres amar. E as ninfas perguntavam. Não queres amar? E os faunos perguntavam. Não queres amar?
Ser criança era ser louca. Ser criança era responder-lhes que sim.

E tu vieste. Uma emoção feita de uma loucura maior do que a meninice dos meus jeitos. E as fadas sorriram. As sereias sorriram. As ninfas sorriram. Os faunos sorriram. Mas eu não os vi sorrir. Porque tu sorriste. E, subitamente, o teu sorriso era o único que iluminava os meus passos.

Todos os meus caminhos. Todas as minhas possibilidades. Todos os meus trilhos. Subitamente, tudo era uno e levava a ti. Senti o sopro do vento na tua direção. Senti o curso das águas na tua direção. Segui a corrente, despindo-me da infância no caminho para os teus braços. Neles, nua, achei que o toque dos teus dedos bastaria para manter vivos todos os meus sonhos.

Escolhi-te. Como te escolhi! Acima das selkies e das fadas e dos universos oníricos que, em tempos, tinham preenchido os meus dias. Fui tua como nunca fui deles. Fui tua como nunca fui minha. Fui tua como nunca julguei vir a ser de ninguém.

No dia em que te escolhi, deitei fora a minha infância. Orgulhei-me de ser mulher. Um orgulho vazio de quase tudo. Na esperança de que os teus dedos, na minha pele nua, mantivessem vivos os sonhos.

Cansados, talvez, da minha pele, os teus dedos acenaram em adeus. E fiquei só. Em meu redor, notei: não havia fada ou fauno que sorrisse. Havia vazio e descontentamento. E vontade de os afastar de mim. Ainda nua, percebi o frio dos dias. Ainda nua, percebi que cresci. Ainda nua, percebi que os teus dedos na minha pele não tinham servido para manter vivos os sonhos mas apenas para os roubar.

Escolhi-te. Deitei fora a minha infância. Quando te escolhi. Porque te escolhi. Não existe ser mágico que me pergunte. Não queres amar? Todos eles sabem que te amo. E nenhum deles está.

Estou sozinha. Sozinha e vazia da criança que sorria em mim. No dia em que te escolhi, deitei fora a minha infância.





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