quarta-feira, 21 de maio de 2025

Egoísmo

 

Imagem gerada por I.A.

Já me disseram muitas vezes que sou egoísta. Recordo particularmente o dia em que mo disseram porque afirmei não querer ter filhos – posição que mantenho, apesar de tantas vezes me terem dito “isso muda com a idade”. Nesse dia – que era um dia de sol – havia crianças a chapinhar na piscina e o semblante seco e altivo de quem me dizia que era egoísta. Descobri, pela voz de outrem, que eu não queria filhos porque isso implicaria ter de olhar para além do meu umbigo... e dar-me a outros... e ser por outros... pelos outros...

 

Este é o contexto. Mas o contexto tem pouca pertinência para o que te quero dizer. É que hoje... hoje, é para ti que escrevo. Para ti, filho nunca gerado e que, por isso, não nasceste, tal como longamente previsto. Escrevo-te para te pedir que não ouças as palavras cruéis que me disseram naquele dia de verão, porque não são verdade... embora talvez eu seja egoísta em muitas coisas... e ande longe da retidão santificada que vai retomando o seu lugar nas narrativas do que é ser-se “uma boa mulher”. A tua inexistência, no entanto, não é fruto de egoísmo, mas de amor... e posso prová-lo!

 

 

Eis o ente que nasce da luz. Assim sagraria o teu corpo pequenino. Havia de conhecer-te os pormenores do corpo. De contar cada um dos vinte dedos. De aguardar pelos olhos abertos. Pelo sorriso primeiro. Por todos os que se seguissem. De beber-te as lágrimas, como quem sorve a tua dor. De embalar-te. De palmilhar os quilómetros da Terra na minha sala de estar, até que a agitação se transformassem em acalmia e dormisses. De proteger o teu sono. Os teus sonhos... os teus sonhos... os teus sonhos. O mundo gosta de os roubar, então teria de protegê-los assim. Como quem obsessivo-compulsivamente quer roer a desumanidade e envolver-te na manta etérea da utopia. A tua avó diria que é utopia, como diz quando eu falo do mundo que quero e de como é para ele que tento caminhar, esbarrando em barreira, após barreira, após barreira...

 

Quando nascesses, havia de te erguer à janela e dizer: Natureza, eis o meu filho. Filho, esta é a tua Mãe Maior. E ela havia de lançar sobre ti o pólen protetor, que ao tocar a pele seria armadura.

 

Quanta beleza!

 

Mas cortaram as árvores que te seriam madrinhas para abrir a autoestrada. E entraram tanques de guerra e bombas. E 48 horas bastam para que 14 mil bebés sucumbam à miséria da fome, enquanto fogo chove e a terra treme. A luz apaga-se. Toda a luz se apaga. Governos caem e homens comuns votam como se fossem deuses. Ditam as pragas egípcias ao mundo, até quando o mundo é no fim do mundo, na ponta mais ocidental de uma europa diluída, onde só à palavra Euro se diz Amén. Depois, água vira sangue, gafanhotos, rãs, piolhos e moscas infestam o espaço, o gado sucumbe, úlceras comem a gente, o céu vai cuspindo rocha, primogénitos morrem... tu morres. Ou, se não morreres, não viverás.

 

Quererás amar, e não podes. Quererás escolher, e não podes. Quererás ser, e não podes. Odiar-te-ão. Porque és mulher, porque és homossexual, porque és autista. Porque tens uma trisavó indiana. Porque tens um avô retornado. Porque tens uma mãe artista, mulher, autista... Porque trazes nas veias Abril. Porque queres ser livre. Não te quererão para que sejas soldado, mas para que sejas bala. Arma de arremesso. Assim, morres mais depressa e não ocupas espaço, não gastas recursos. A tua morte serve a economia.

 

Então, dizem-me para te ter. Porque, se estiveres vivo, podem garantir que vais morrendo. Sonho a sonho. Ideia a ideia. Liberdade a liberdade. Mente, alma, corpo... até que vires o pó branco que alinham com cartões e inalam, entre copos de gin, rindo nos seus palácios, erguidos sobre a vala comum do povo.

A tua inexistência não é fruto de egoísmo, mas de amor...

 

Em tom mais brando, perguntaram-me uma vez: “Porque não queres ter filhos? Acho-te tão maternal!”. Respondi: “Eu não tenho dúvidas de que teria criança para dar ao mundo... mas não tenho mundo para dar à criança.”

 

Hoje, acrescento: a ti, que não nasceste, deixo a herança. Um voto dobrado em quatro, que não vence a maioria, mas fala sobre o mundo que queria dar-te, se existisses. Uma lágrima nos resultados que, como a tua avó, chamam utopia a esse mundo. Um pensamento simples, sobre a falta que me fazes e como, ainda assim, não te quero aqui. E a liberdade. Deixo-te a liberdade toda. Porque a terei até ao fim. Mesmo que seja o meu fim. (E desconfio que será!)

 

Um dia, tu que não nasceste, e eu, que morrerei a lutar, havemos de nos encontrar nesse universo utópico. Egoistamente, vou agarrar-te contra o peito e contar-te, de viva voz, esta história.

 

 Num dia de sol, com crianças a chapinhar na piscina, alguém de semblante seco e altivo me disse que era egoísta, que não queria filhos porque isso implicaria ter de olhar para além do meu umbigo... e dar-me a outros... e ser por outros... pelos outros... E, então, eu, que não tive filhos, dobrei o meu voto em quatro... e fiz da humanidade a filha que não tive, tentando dar-lhe o presente mais bonito de todos. Ela recusou. Gritantemente. E eu vivi. E eu morri. Sem ti. Por ti. Para ti. Num mundo que – honestamente – não merecia nenhum de nós dois.

 Marina Ferraz




Fiquem atentos ao meu Instagram para saberem todas as novidades em primeira mão!




Se quiserem adquirir o meu livro "[A(MOR]TE)"

enviem o vosso pedido para marinaferraz.oficial@gmail.com

Sem comentários:

Enviar um comentário